domingo, maio 5

A mesa do canto

 

Na roda que há vidas fazemos no café, sempre a mesa do canto e longe da porta, as mais das vezes somos seis. Mais ano menos ano todos da mesma idade, excepto o Valentim, que se tudo correr como ele prevê, e cansativamente repete, será o primeiro a chegar aos cem.

Um estranho com menos anos, que por acaso ou curiosidade se nos viesse juntar, logo notaria a duração dos silêncios, a frequência dos resmungos, o tom azedo dos comentários e miudezas, mas sobretudo a quase ausência de saudosismo e suspiros sobre o antigamente, as coisas boas que definitivamente se perderam.

Não se vá, contudo, deduzir que esse comportamento é voluntário, pois uma vida de muitos anos, porque acarreta uma carga substancial de vivências, recordações, dores e alegrias, necessita por vezes, como diz o Fonseca, de um “tubo de escape” por onde saia o que vai cá dentro, evitando assim o que de mau pode acontecer.

Esse “tubo de escape” foi-nos negado de mau modo pelo Magalhães, na tarde em que estávamos a recordar a saudade que tínhamos dos aviões da nossa infância: ronceiros, com hélice, quatro asas, a voar tão baixo que se acenava adeus ao piloto. E daqueles Citroën Traction do comissário Maigret. Mais ainda das...

De facto é possível que já estivéssemos há um bom bocado nessa conversa do antigamente, o que nos surpreendeu foi que, ao contrário do que julgávamos conhecer do seu pensamento e maneiras, vimos o nosso camarada levantar-se agitado, fazendo voz grossa para avisar que se continuássemos com as merdices do “antigamente era melhor, ninguém precisa de tantas novidades, o telemóvel só é bom prós  putos...” e outras que tais, ele não nos ia negar a amizade, mas podíamos ter a certeza de que se viesse uma vez por mês seria o máximo, ou talvez mudasse para a mesa do Ginja, porque aí pelo menos era só política.