domingo, março 10

Prima do Sócrates

 

É melhor esconder a verdade, pois logo diriam que não se deve supor nos outros a boa-fé que só se espera nos ingénuos, nos crentes de seitas, e naquele tipo de gente que, como  ouvi a uma bem intencionada alma: “Basta pedir à prima do Sócrates, que ela arranja tudo”.

Limito-me então a dizer que foram muitos, os anos que li um colunista neerlandês, tanto pela riqueza e originalidade do seu vocabulário, como pelo invulgar talento de observador de taras e comportamentos, espírito crítico, pontos de vista, e ainda -  para mim preguiçoso nato – a espantosa e diária capacidade da escrita. Como se para ele o tempo tivesse uma dimensão sobrenatural e exótica, semelhante às que inventam os escritores de ficção científica.

Volta e meia senti-me tentado a forçar um encontro, perguntar-lhe como conseguia aquele tour de force, mas quando o sugeri a amigos logo mo desaconselharam. O homem era de repentes e mau génio, não se lhe dava ser malcriado.

Porém, como é sabido, há horas em que o acaso se encarrega de dar um jeitinho, fora que nem tudo é como parece, e a reputação da cada um depende às vezes de preconceitos, boatos, ou apenas ciumeira.

Atrasado para o encontro, vi-me uma tarde a correr escadas acima para o escritório do meu editor, e quando esperava encontrá-lo sózinho vejo-o na companhia do “homem de repentes e mau génio”.

À boa maneira local nada de cortesias. Foi “Olá!”, acenos, o editor apontou a garrafa de genebra, eu enchi um cálice e esperei vez. Da sequência sei ainda que falámos muito, bebemos demais, saímos dali tarde e más horas, boa sorte termos encontrado onde jantar.

Em especial recordo, mas guardo para mim, a melancólica resposta do talentoso colega, quando lhe perguntei como conseguia que os seus dias fossem de quarenta e oito horas.