domingo, abril 16

O professor inglês

Moramos na mesma rua, mas seria exagero chamar-lhe vizinho, já que que a rua é quase uma  avenida, e não faço ideia em que prédio mora. Por razões que só ele sabe, se por acaso nos cruzamos faz uma espécie de aceno, mas logo desvia os olhos, dando a impressão de se envergonhar ou arrepender.

O Filipe, esse sim, vizinho e amigo, já numa ocasião mo quis apresentar, mas recusei sem lhe dizer porquê. Acontece que se o conhecesse de modo íntimo, certamente compreendia e aceitava os seus tiques, o que, por muito estranho que pareça – adiante explicarei porquê – resultaria para mim num prejuízo.

Personagem de certeza é, e dos melhores, muito actor festejado nem de longe lhe chega aos calcanhares na capacidade de representar. Segundo o Filipe explicou, é proprietário de uma sapataria que herdou dos sogros, mas quem com ele se cruza, talvez devido ainda ao seu metro e oitenta e ser ruivo, há-de supô-lo um professor inglês de meia idade, desses que vêm a férias com fome de sol e, sobranceiros, olham de alto para os locals com o mesmo modo que os seus antepassados tinham para os indígenas.

Ligeira­mente desleixado, veste fatos dum tweed tirante a verde, pullovers de lã grossa à moda dos anos trinta, sapatos de um vermelho que hesita entre o roxo e o sangue-de-boi. Fuma cachimbo, e num exagerado fingimen­to de excentricidade que se lhe tornou natural, ao caminhar olha vagamente para o ar e parece sorrir, ao mesmo tempo que mexe os queixos como quem masca. De vez em quando hesita no andamento, tropeça, e se alguém de repente lhe quer falar, dá a impressão de não ter ainda acordado.
Insistem em mo apresentar, mas nunca aceitarei, porque se o conhecesse pessoalmente teria um acesso de fúria com os seus tiques, e acabaria por matá-lo. Não como pessoa, pois não sou dado a violências, mas como personagem.