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Pobre de mim e dos outros como eu que, vendo, medindo e ajuizando por padrões fora de moda, desactualizados que baste, ameaçamos perder a tramontana, porque o mundo não é como nos parece e, julgando-nos ainda nele, provavelmente estamos já fora, com os percalços que isso acarreta.
Porque, sejamos francos, adianta ter princípios? Ser
livre e consequente em todo o tipo de escolhas, sejam elas políticas, morais,
sociais, sexuais? Remar contra a maré, só porque achamos que, embora custe e
canse, é essa a boa direcção?
E que tempo é este, em que não posso atravessar a rua sem
temer o meu próximo, desconfiar dele, examinar-lhe primeiro o rosto antes de
lhe dar os bons-dias?
Há felizes, ou ingénuos, convictos de que o mal, o
desastre, o atentado, acontece sempre aos outros, sempre longe. Porém, eu e os
meus iguais não dormimos descansados, sentimos
o mal à porta, lemos com tristeza os cabeçalhos: “Tudo o que deve saber
sobre o atentado de …” Como se esse “saber” possa ter utilidade, nos ajude a
compreender a tragédia, ou de qualquer modo contribua para podermos sair à rua
com o desprendimento e a liberdade a que julgamos ter direito.
De vez em quando escrevo aqui histórias da carochinha,
umas vezes casos, outras amores, tristezas domésticas, vidas de garagistas, e um
ou outro leitor com razão se perguntará se a idade não me está a pregar
partidas, se as artérias já não me irrigam o cérebro com sangue suficiente, ou
o meu interesse está a escorregar para a superficialidade. A quem isso teme posso
com verdade afirmar que ainda assim não é, mas que para meu desassossego talvez
nunca eu tenha visto com tanta clareza o mundo que me rodeia, nem nunca antes
tenha sentido tão grandes medos, aqueles em que, mais que a segurança minha e
alheia, conta a visão de que talvez não demore a que percamos tudo o que, mais
do que o bem-estar pessoal ou o conforto, nos deve ser caro: a liberdade; a
crença nos valores da civilização em que nascemos, fomos criado e temos vivido;
a riqueza das artes e da literatura; e sim, mesmo que já comecem a soar patéticos,
também os da igualdade e fraternidade.
Quando esses medos ameaçam esganar-me, me deformam o
entendimento e levam, com receio e
desconfiança, a encarar o meu vizinho, o homem que atravessa a rua e caminha
direito a mim, a rapariga que me sorri mas veste um niqab, então, procurando
conforto e paz, digo-me que o mundo em que ainda julgo estar, não pode ser o
real, mas um de pesadelo e desnorte, feito das sombras e dos temores que em vão
tento descartar.
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Publicado na DOMINGO CM