Com ou sem hibernação que me permita tomar distâncias, alijar os maus pensamentos e observar com olhos ingénuos, a verdade é que, actualmente, se me torna difícil o julgar sem preconceitos a sociedade que me rodeia. Não somente porque a Holanda se me tornou tão cara como a minha primeira pátria, mas porque, vivendo há tanto tempo nela, tendo-me imbuído dos seus usos e costumes, da sua língua, as impressões que agora recebo forçosamente não são como as do começo.
O estrangeiro que fui, quando o recordo parece-me ter sido uma identidade de empréstimo, um papel de actor, uma distração do Destino que primeiro me fez errar por outras bandas. Porém, em certas ocasiões, o holandês em que me tornei também me parece irreal, porque aos sentimentos, às ideias e às visões adquiridas, constantemente se sobrepõem as visões, as ideias e os sentimentos da minha vivência anterior.
Sobrepõem, aliás, não é bem o termo, pois sobreposição implica ordenamento, e isso definitivamente lhes falta. Se os sentimentos e os pontos de vista se sobrepusessem, nada custaria arrumá-los doutro modo ou noutras sequências. Facto é que eles se misturam e antagonizam, que dentro de mim ruge em permanência uma batalha entre duas maneiras diferentes de ver e de sentir.
Isso há muito me levou à conclusão de que poucas das minhas críticas à Holanda ou aos holandeses podem ser tomadas a sério. O que a alguns parecerá veneno rabioso, não é mais que exercício literário; o que outros considerarão crítica fundada, é apenas um irreverente piscar de olho.
Além disso, sejamos francos, que vale o juízo de um indivíduo sobre um país? Quem sou eu para julgar? A única autoridade que possuo é aquela de que eu próprio me revisto, a de escritor. E na medida em que ninguém a ela põe peias, não é virtude por aí fora dizer o que me apetece da maneira que suponho mais atractiva. Dando forçosamente mais valor ao efeito do que aos factos. Se bem que dos juízos sobre os países e os seus povos também se possa dizer o mesmo que se diz dos tiros de escumilha: há sempre um grão que acerta no alvo.
Todavia, se fosse hoje, eu creio que não teria escrito do mesmo modo o livro que vinte e cinco anos atrás escrevi sobre os holandeses, pois me incomoda vê-lo cheio de certezas aparentes e juízos que, parecendo definitivos, definitivamente o não são. Se antes de morrer ou de se me desarranjar a cabeça tiver ocasião de voltar a escrever sobre este país - não como agora, em ligeira conversa, mas num livro maduramente pensado - creio que começarei por procurar na história de Portugal e da Holanda os laços que são bem mais remotos do que os que existiram no séc. XVI, quando ambos os países eram poderosos e, com a Espanha, se disputavam a supremacia dos mares e do comércio com o remoto Oriente.
A navegação dos portos da Holanda e da Flandres para os de Portugal e vice-versa, documentados no séc. XII, deve datar de muito antes. E não é preciso repetir a importância que teve a vinda dos judeus portugueses que aqui procuraram asilo. Novidade para alguns será, de certeza a notável presença dos holandeses que no séc. XVII se estabeleceram nos Açores.
Em lugar de oposições procurarei encontrar concordâncias e paralelos, embora para realizar tal objectivo defronte uma dificuldade de monta. Provavelmente a maior que se põe a quem, como eu, em simultâneo vive duas vidas, sente com duas sensibilidades, fala e pensa em duas línguas, pertence a um país rico e a um país pobre.
Aos que não se encontram em circunstâncias semelhantes, o sofrer de uma situação assim parecerá rebuscado, um exercício de intelectual que procura obstáculos onde os não há, um artifício para criar conflitos existenciais.
Nada menos justo. Quando critico o holandês na sua rudeza, no desprezo que em geral demonstra pelas coisas da sensibilidade, ou mesmo no racismo de alguns, não me fica a impressão de estar a criticar estranhos, mas gente minha. Por sua vez, quando rio do desleixo crónico que os portugueses mostram, da sua aparente incapacidade de, duma vez para sempre, libertarem Portugal da condição de parente pobre da Europa, também não estou a falar de quem não me interessa, mas dum povo a que tão intensamente pertenço, ao ponto de me iludir que todos eles são meus irmãos.
Desse modo, e em quase tudo dividido em dois, ao mesmo tempo que zombo do afã maníaco com que os holandeses viajam, lamento que os portugueses possam viajar tão pouco; se me irrita a falta de maneiras duns, irrita-me igualmente a cortesia por vezes bizantina dos outros; quanto mais aplaudo a eficiência dos primeiros, mais me dói que os segundos com tanta frequência sofram de desorganização.
Não seria fácil realizá-lo, mas contornando os obstáculos que a minha própria vida me levanta, talvez valesse a pena tentar. Se bem que, em situação semelhante, a cada mostra de objectividade se contrapõe uma suspeita de partidarismo, cada cumprimento recebe logo o contrapeso duma crítica.
O livro que eu um dia gostaria de escrever sobre a Holanda, além dos laços que já apontei e que, com outros, unem os "meus" dois países, seria pois aquele em que eu conseguiria o tour de force de passar ao papel, sem malícia nem bonitezas literárias, os meus quarenta anos de vivências aqui. Acrescentando-lhe o muito que no país admiro, aquilo que nele me fascina, as razões porque preferi ficar quando poderia ter partido, a saudade que me toma quando me encontro longe.