Ao longo dos anos que nos conhecemos, uns quarenta, vi-o transformar-se de bardo gentil, apaixonado, sequioso de emoções, num dispéptico chavão da arte, cuidadoso no polir da sua imagem.
Preocupação avassaladora: marcar presença em manifestações e festividades. Júri de concurso de poesia sem ele é impensável. Júri em que não participe põe-o de cama. Já o vi na televisão em júris de misses, em programas de canções folclóricas, de culinária, a explicar os imbróglios dos Balcãs e o progresso económico da China.
No dia-a-dia é burocrata. Pessoalmente, um torturado. Na juventude, por razões que se compreendem, escondia a sua homossexualidade. Mas mais tarde, quando pôde assumi-la, continuou encoberto, o amante que tem há dezenas de anos obrigado a viver noutra casa, proibido de o acompanhar a cerimónias. Isso mau grado o “grande amor” cantado em odes e sonetos.
Faz tempo foi informado de que por altura dos festejos do lançamento da edição integral dos seus poemas, seria interessante, valioso, publicar também a sua correspondência amorosa.
Fora o destinatário ninguém a tinha lido, mas dado o modo como esse se lhe referia, e uma ou outra citação do “Mestre”, corria à boca pequena de que era obra-prima da epistolografia erótica.
Todavia, ou arrependido dos seus arrebatamentos, ou porque temeu pela qualidade da prosa, uma tarde foi em segredo à casa do amante, roubou-lhe as cartas, e lançou-as ao lume.
Dias atrás vi a sua fotografia no jornal. Escaveirado. Envelhecido. A calva circundada por guedelhas esfiapadas a cair-lhe sobre os ombros. O olhar febril do egocêntrico sempre esfomeado de atenção.