sexta-feira, novembro 11

O Inferno fica à esquerda

                                                                            

 - É questão de doença?

Se fosse, o senhor Pimenta, taxista em Vila do Conde, recomendava-me que não perdesse tempo com santos. Ele já levara dezenas de pessoas a um médico de Tordesillas que curava verdadeiramente tudo: cancros, paralisias, reumatismos, pulmões, pressão alta, cataractas... Era na Espanha, e portanto longe, e portanto caro, mas valia a pena porque o doutor garantia a cura. À volta de cinquenta contos para a consulta - os remédios à parte -  e sessenta para o táxi.

Poderia parecer caro, mas por experiência própria assegurava que não há dinheiro que pague a saúde. Felizmente para mim não era questão de doença, só curiosidade, e o senhor Pimenta saiu do táxi para me explicar como ir para a casa da Alexandrina, a santa de Balazar (1904-1955).

Entre os videntes e iluminados a que os portugueses recorrem, Alexandrina ocupa lugar eminente, já que ao iniciar-lhe em 1967 o processo de beatificação a Igreja Católica sancionou as suas visões e as estranhas circunstâncias em que viveu. Paralítica aos quatorze anos, depois de ter saltado duma janela para escapar a uma tentativa de violação, Alexandrina permaneceu em jejum total durante os últimos treze anos e sete meses da sua vida.

Simultanea­mente começara a ter êxtases e visões, revivendo semanalmente a Paixão de Cristo na presença de testemunhas, desde Outubro de 1938 a Março de 1942. Examinada pelos médicos do hospital de Santo António, no Porto, estes constataram tratar-se de 'um caso inexplicável de inédia e anúria'.  

Quase só pele e osso, um dia que quiseram levantá-la da cama não foi possível, porque ela 'tinha o peso da cruz'; e se por qualquer motivo  o pároco local não podia ir-lhe dar a comunhão, 'comungava de uma hóstia que um anjo lhe trazia do céu'.

É extraordinário, e provavelmente verídico, mas gente de fraca fé como eu sente um certo embaraço ao ler depois as respostas que a vidente dava a Jesus durante os êxtases, anotadas verbatim pelo padre Mariano Pinho.

'Como vos amo no meio de tanta dor? E Jesus, não foi no meio da dor que nos amaste também? Tendes muita pena de me fazer sofrer? Mas eu ofereci-me com toda a generosidade! Eu queria amor, Jesus! Não mo dais? Dai-mo! Eu queria morrer de amor! Jesus, eu sou vossa! Sempre fui! Sou a vossa heroína? Sou toda para vós, Jesus! Sou uma louquinha consumida, perdida no amor de Jesus!'

Desde a sua morte em 1955 os desesperados, os doentes, os aflitos, acorrem aos milhares a Balazar, e aos que dela recebem graças ou são curados pela sua milagrosa intervenção, pede-se que o comuniquem na secretaria da igreja, para assim se poder apressar o processo no Vaticano.

 

Entro respeitosamente na humilde casa onde a santa viveu o seu calvário. Oiço a zeladora que me conta que Alexandrina falava repetidamente com Jesus. Agradeço a sugestão, mas não compro Eis a Alexandrina, a biografia escrita pelo padre Umberto Pasquale, e vou-me dali a cismar sobre quais serão os motivos que fazem da metade oeste de Portugal, acima do Tejo, a zona por excelência dos bruxedos, das aparições, dos mistérios e dos milagres.Trás-os-Montes produziu uma única estigmatizada em 1946, em Vilar Chão, mas para tristeza das dezenas de milhares de crentes que a tinham venerado, cinco anos depois veio a descobrir-se que se tratava dum grosseiro embuste comercial.

O produto genuíno, se assim se pode dizer, manifesta-se de preferência no litoral. Em Arcozelo, por exemplo, freguesia de Vila Nova de Gaia onde existe o impressionante culto de Santa Maria Adelaide, que na segunda metade do século passado foi irmã leiga e organista no convento de Corpus Christi.

Falecida em 1885 em cheiro de santidade, o seu corpo mostrou-se incorrupto quando o desenterra­ram em 1906, e desde então tem resistido a violências tão radicais como atentados à bomba, marretadas, tentativas de dissolução com cal viva, e outras.

 Os milagres que realiza, e esse extraordinário poder de resistência, atraem devotos em número suficiente para que as ofertas em dinheiro ultrapassem por ano a centena de milhar de contos. Fora disso recebe dádivas de ouro e jóias, relógios, louças, objectos vários que expostos em museu próprio constituem o mais destrambelhado dos bric-à-brac.

Pendentes do tecto ou coladas nas paredes da Casa dos Milagres, anexa ao mausoléu, acham-se ainda milhares de fotografias dos favorecidos pelas intervenções da santa. Pendurados também, ou dobrados, são às dezenas os vestidos de noiva e as fardas militares de que só os interessados sabem porque razão se encontram ali. E incontáveis miniaturas de máquinas, de barcos, colecções de selos, moedas, bonecos, imagens, crucifixos, reproduções em cera de membros e órgãos humanos, testemunham de aflições sofridas e favores recebidos.

Noutra ocasião, noutro estado de espírito, eu com certeza teria rido de tanta ingenuidade, mas o desespero dos fiéis a rezar abraçados ao túmulo, e a angústia dos que na loja anexa compram velas que irão acender para que lhes seja resolvido um problema urgente, não se prestam ao escárnio, antes à compaixão.

Rio no dia seguinte, na vizinha praia de Miramar. São seis da manhã e bruxas de longe e perto - as 'senhoras do poder' como aqui lhes chamam - começam a chegar à capela do Senhor da Pedra, acompanhadas dos seus clientes e, sinal dos tempos, de guarda-costas encarregados de barrar a passagem aos curiosos como eu.

Mas algumas notas de conto também fazem milagres e posso aproximar-me para ver como as bruxas levam os suplicantes para a Capela do Senhor dos Amarrados (padroeiro dos que se deixaram 'amarrar pelos espíritos da escuridão') e aí os benzem, defumam, apalpam e põem em transe.

Esfregam na imagem do santo roupa interior dos adúlteros e assim os curam do adultério. Libertam com bofetadas na cara os homens 'possuídos' pelas amantes. Curam o reumatismo obrigando os doentes a ir de joelhos até à orla do mar. Garantem com ervas e chás o resultado favorável dos exames escolares, dos exames de condução e das análises médicas.

Vêem-se ali ataques de histeria e pseudos-êxtases, ouvem-se gritos de arrepiar, imprecações, pragas soltas pelos espíritos maus quando as feiticeiras os intimam a deixar as suas vítimas e a desaparecer no 'mar coalhado'. Mas nada daquilo é sobrenatural, antes representação dramática. As 'senhoras do poder' desempenham o papel para que lhes pagam, e os seus clientes sofrerão de males reais, mas tem-se  a impressão de que no papel de vítima ou possesso encontram o aprazimento de mortificações que doutro modo não saberiam como realizar.

Falta-me tempo para visitar os santuários do Boi-homem, da Santa Leiteira, da Campa do Preto. Não vou a Arouca ver a Santa do Tropeço, uma mulher acamada desde 1975 e que nos jejuns, visões e diálogos com Cristo oferece uma imitação aguada da Santa de Balazar.

Passo de largo por Fátima, com o seu ininterrupto cortejo de padres e peregrinos, e rumando para sudeste percorro os trinta quilómetros que me separam de Torres Novas. Mais três quilómetros pela estrada velha do Entroncamen­to e chego à Ladeira do Pinheiro, termo da minha jornada.

Painéis que guiem o romeiro não os há em parte nenhuma, mas logo à esquerda distingo a cúpula azulada da igreja da Mãe Maria e para lá meto por um caminho de terra batida.

Uma monja sorridente e bem humorada pára o arranjo do altar e diz-me que se venho para a santa terei de ir um pouco mais adiante. Vou, passo um portão, e inesperadamente encontro-me num largo rodeado de edifícios díspares em que predomina a cor azul, e que assim à primeira vista desempenham as funções de lugar de culto, de asilo para velhos, internato infantil, estabeleci­mento hoteleiro, loja de relíquias, e ainda, o mais estranho, de jardim zoológico. Em jaulas e gaiolas diminutas há cães, gatos, papagaios, macacos, pombas, cobras, tartaru­gas...

A um sacerdote quarentão e barbado pergunto se os animais têm a ver com o culto e ele responde-me desabrido que não, que são o hobby do senhor Humberto.

- Falar com a Mãe Maria? Sem audiência? - a irritação com que me olha é a de quem atende um débil mental, mas nesse momento surge a irmã Clara, e a irmã Clara nasceu com um dom tão evidente para as relações públicas que logo me dá a impressão de que nenhuma das minhas perguntas ficará sem resposta, nenhum milagre sem explicação.

- Falar com a Mãe Maria? Ela vai ver se se arranja. Visitar os edifícios? Certamente, menos os aposentos da Mãe e o andar onde se instala Sua Beatitude quando vem ao santuário. De resto tudo o que eu quiser. O senhor Humberto? O padre Stefan não me disse? O senhor Humberto é o marido da Mãe. Marido místico, claro, porque seria impossível ser-se marido carnal duma pessoa tão próxima de Deus. 

- Vamos primeiro ver os cabelos?

 Durante um êxtase a santa arrancou da cabeça uma pequena madeixa e Jesus disse-lhe que a não deitasse fora, pois se daria um milagre. Os cabelos, expostos numa caixa com tampo de vidro, vão já em quase dois metros e continuam a crescer.

No mesmo quarto está o Cristo que sua sangue e a cama onde a partir de 8 de Dezembro de 1965, rodeada de testemunhas, Mãe Maria permaneceu quarenta dias e noites sem dormir, em jejum total e sem beber água, tornando-se em tabernáculo vivo com a sagrada hóstia na boca.

'Porém - continua a infatigável irmã Clara - o prodígio não ficou por ali, pois o arcanjo São Miguel administrava diariamente a comunhão à Mãe Maria. Em cada dia, antes de comungar, a hóstia que ela tinha recebido no dia 8 de Dezembro desaparecia para reaparecer no tabernáculo que se encontrava no seu quarto sobre um altar. Logo após ter engolido a hóstia quotidiana, a hóstia de 8 de Dezembro reaparecia na sua língua. Tudo isso constatado pelas muitas pessoas constantemente presentes.'

Parecem-me já milagres de sobra, mas a irmã Clara tem mais. Mãe Maria subiu corporeamente ao Céu pelas 12,30 horas de 12 de Junho de 1968, regressando às 15,00 horas. Os que testemunharam esse prodígio viram-na erguer-se no ar e desaparecer a grande altitude, seguindo-se uma chuva de rosas e registando-se correntes de ar intensamente perfumadas.

De regresso à barraca onde então morava, a vidente entrou em posição horizontal por uma janela fechada que se abriu misteriosamente para lhe dar passagem.

Relatando em livro a sua digressão celestial, Mãe Maria diz ter sido acompanhada por uma numerosa milícia de anjos, e que a dada altura seguiram uma estrada. Para a esquerda havia um ramal que levava ao Inferno, encontrando-se aí três lagos fedorentos. Um outro ramal, também para a esquerda, ladeado de fumos e de espinhos levava ao Purgatório.

Ao fim da estrada do Céu viu Deus! 'O Pai Eterno, sentado num grande trono, apresentava-se com barbas muito crescidas, tendo à sua direita Jesus Cristo e à esquerda a Virgem e São José. Junto de Deus Pai há uma caneta e uma espécie de olho que se transforma em espelho, tendo em frente uma pomba com a cabeça pequenina, que irradia uma luz que ilumina o Céu inteiro. Os anjos tocam trombetas, entoam cânticos e têm umas letras nas asas, cujo significado não estou autorizada a desvendar'.         

A irmã Clara, dando-se conta do meu cansaço perante tantas maravilhas, reanima-me com a promessa de que a Mãe Maria me falará em particular.

- Posso fotografá-la?

- Pois com certeza.

Fotografo a santa, sessentona sobre o gordo, enquanto ela sentada junto duma parede recebe os queixumes e as preces dos seus fiéis. A uma oiço lhe que recomenda que vá ao médico e lhe peça umas vitaminas fortes. A outra garante que o seu pedido será atendido. A uma terceira promete o restabelecimento duma vaca doente. Finalmente chega a minha vez. Faz sinal para que aproxime, aperta-me a mão, sorri e pergunta-me o que quero saber.

- Se vai muitas vezes ao Céu.

- Vou.

 - É verdade que faz chover dinheiro?

 - É verdade.

 - Transforma a água em azeite?

 - Transformo.

 - Faz andar os paralíticos e cura os doentes?

- Curo.

- Ouvi dizer que a consideram uma séria concorrente de Fátima.

- Não. A Ladeira do Pinheiro é a continuação do mistério de Fátima, e isso não agrada a certas pessoas. A Ladeira é o tesouro de amor eucarístico, é a renovação dos tabernáculos do mundo.

A irmã Clara sussura-me que basta, a Mãe pode dum momento para o outro cair em transe, e como à noite se vão realizar os demorados festejos da Páscoa Ortodoxa é bom evitar que ela se canse.

- Ortodoxa?

- Sim. Nós somos da Mãe Maria e da Igreja Ortodoxa.

Só então me dou conta que a cúpula da igreja tem a forma característica da cebola, que os padres que por ali andam são popes, que o traje negro das monjas não é o corrente nos conventos católicos. Quero pedir detalhes, mas a minha guia insiste para me mostrar primeiro a fabriqueta onde a santa se entretém com o fabrico de queijos, a casa onde um ex-jesuíta quase centenário pinta quadros místicos, a grande catedral em construção.

E o asilo dos idosos. E o alojamento onde são recolhidas as crianças abandonadas. E a escola. E a exploração agrícola. Retoma a lista dos milagres e das visões, das chagas da mística, do caso do vestido queimado, do seu comprovado dom de ubiquidade, das conversas com o padre Pio e Jeanne d'Arc.

Para as minhas forças é demais e despeço-me aturdi­do.         

 

Volto ao cair da noite quando em redor da igreja começa a reunir-se o Exército Branco, o grupo das fiéis que, vestidas de rendas brancas, fazem contraste ao traje negro das monjas. A Mãe Maria apeia-se dum Alfa Romeo conduzido pelo padre Stefan. Acendem-se centenas de velas. Os popes entoam os seus cânticos. Os crentes acompanham em coro.

E eu sinto pena que Deus Pai me não tenha escolhido para ir visitá-lo ao Céu e ver com os meus próprios olhos a caneta com que ele escreve os nossos tão variados destinos neste tão curioso mundo.

 

                                                             *  *  *