sábado, abril 24

Urban Warfare

"Mal me dando conta, devagarinho, subia em mim uma irritação surda. A lembrança de, ao entrar em casa — antes um oásis de calma e silêncio — ouvir já na escada o garrular das amigas de Martha discutindo o Chaco, falando de guerrilha com gritinhos de júbilo, histéricas na raiva contra as Polícias, o Papa, a burguesia, as ditaduras.  No princípio, por curiosidade, deixara-me ficar entre elas, único homem, visita na minha própria sala, perplexo que nenhuma, antes ou depois, se distinguisse entre a multidão da rua. Umas, como Martha, eram determinadas e ferrenhas, fanáticas, convencidas de contribuir para uma felicidade futura e geral, imposta à força se não a aceitassem a bem, citando o Manifesto, capazes de recordar sem falha um discurso de Fidel. Outras, silenciosas, talvez tímidas, passavam o tempo a ler manuais: Urban Warfare, Booby traps, The lessons of Viêt-nam. Ao dar pela minha atenção, ou se desconfiavam que eu espreitava por cima do ombro, fechavam os livrinhos e sorriam, cândidas, à espera que o intruso se afastasse. Uma loira, vestida de cigana, ia dum grupo para outro com o pasmo na boca, perguntando a intervalos regulares: — Ainda há café? As mais, ao todo vinte ou trinta... Ó meu Deus! Eu não quero ser malicioso nem injusto e tudo isso está enterrado, findo, longe no tempo, com certeza são agora mães, funcionárias, pensam na dieta, discutem a TV. Mas como as odiei! Ladravam! Não lhes ouvi um raciocínio, uma dúvida, uma frase pensada, com pés e cabeça. Só latidos, fúrias incoerentes. Mesmo o que liam nos jornais, o que apanhavam nos cafés, lhes saía aos berros, aos uivos, tão agressivas que era estranho o não se pegarem pelos cabelos, incompreensível e irreal vê-las em seguida despedir-se aos beijinhos, prometendo voltar, achando as reuniões estupendas, sensacionais, o fim. Aos sábados à tarde, mal começavam a chegar, eu acenava-lhes bye-bye e ia para o café à espera de László, inquieto se ele demorava, contente quando o via entrar com Lizzie Thompson, a amante que deixara de esconder, uma rapariga de olhos meigos e a ponderação calma de muita experiência. Embebedávamo-nos devagar, serenamente, deixando correr o tempo, e saíamos depois os três de braço dado, por ternura, mas também a manter o equilíbrio que sozinhos nos faltaria, indiferentes a que o mundo precisasse de conserto, dando as boas-noites a quem passava, felizes com a iluminação dos canais, o ar fresco, a noite, a nossa fraternidade."

in A Sétima Onda – Quetzal, 2017