domingo, abril 25

Os vestidos que não se vestem

Alguns vão assim escapando à demência, ou pelo menos conseguem fazer com que as recordações se tornem numa espécie de vida alheia, contando o que foi na terceira pessoa, inventando um personagem que carregue o sofrimento que excede as poucas forças que lhes restam.

Ana está numa idade e chegou a um ponto que é talvez o mais doloroso da sua longa vida, porque para lá da fragilidade do corpo o seu espírito tem alturas em que lhe faz reviver como actuais momentos longínquos, assusta o ouvi-la dizer que logo, quando as visitas chegarem as vai surpreender, porque não vão acreditar como é lindo o vestido azul que a madrinha lhe trouxe da Espanha quando fez anos.

Não há visitas, há sim um vestido branco que ela muitas vezes tira do guarda-roupa e estende na cama, dando-se a ilusão de que o irá vestir, inconsciente de que o seu corpo mingou tanto que tem agora estatura de criança. Depois esquece-o ali e zanga-se com a sobrinha, acusa-a de que lhe andam a mexer nas coisas, mas no mesmo instante salta no tempo, imagina-se a conversar, conta pela milésima vez como o pai a foi levar ao Porto, enganando-a que era para ir tirar a carta, mas tinha sido para servir com uns senhores que viviam na Foz.

Uma vez por outra vem a seguir o relato, sem detalhes nem calendário, de como o senhor lhe tinha feito o mal, depois os meninos da casa. Mas são muitas as versões, e desencontradas, numas houve desmancho, noutras puseram o bebé na roda, ou então nem uma nem outra, foi um caso que ouviu contar.

Não a contradigam, não lhe desagradem, é ouvi-la em silêncio acenando que sim, pois ela terá perdido a força com que a pulso subiu na vida, mas o seu rancor continua igual, é o da miúda  pobrezinha que aguentou muito, e tanto se humilhou que nem a velhice consegue destruir a carapaça que ainda em certa medida a defende do mundo e separa de nós, os parentes afastados que nem sempre reconhece, confundindo os laços distantes, às vezes perguntando se somos quem pensa, ou se viemos vê-la por termos ouvido falar de como no seu tempo tinha sido rapariga bonita, tão prendada que o senhor padre uma vez lhe disse que merecia ter casado com um médico.

Mas nem médico ou chefe das Finanças lhe calhou na lotaria, teve de se contentar com o Diogo, e graças ao Senhor, porque o que lhe faltava em estudos tinha-o de sobra em boas terras que agora valiam ouro, e a vida inteira só uma única vez a acusou de que tinha vindo  arrombada.

Morreu em paz há duas semanas. Deus tem a sua alma.