segunda-feira, abril 5

Lisboa - 2003

 

Tal como o meu guia de Portugal, este de Lisboa é igualmente um guia para amigos, e a palavra guarda o significado que anteriormente lhe quis dar: por amigos entendem-se também aqui os que vão de visita a um país ou cidade animados pelo sincero desejo de ver, aprender, reconhecer, não os que com um despropositado sentimento de superioridade neo-colonialista olham de alto para o aspecto e os costumes dos indígenas, e de antemão se sentem predispostos a achar tudo – fora o sol – menos progressivo, menos rico, menos arrumado e menos limpo do que esperavam ou do que, em sua opinião, deveria ser.

        Estes últimos correspondem à imagem do turista por excelência, aquele ser que, sozinho ou em bando, parece apostado em tomar as características do zombie e, meio inerte, a boca aberta, o olhar desvairado, se arrasta de museu para igreja, de castelo para monumento, de sarcófago para exposição.

A gente pergunta-se que estranha apetência o leva a trocar o conforto do seu lar e as certezas das ruas que lhe são familiares, por ambientes a que nada o liga, de que pouco mais lhe ficará na lembrança que algum detalhe insosso, e apenas visita porque as férias se tornaram um indicativo do nível social. Mas quem conta vai de férias. Quem quer contar muito vai muitas vezes de férias, de modo que, também aqui, a primazia é dada à quantidade. 

Ainda é corrente ouvir zombar dos americanos e japoneses que correm a Europa em sete dias, mal se dando conta em que país ou cidade se encontram. A tendência geral, infelizmente, desenvolve-se nesse sentido. O maior número de cidades, de países, e todos o mais longe possível, sendo indiferente se nos confins da Sibéria nada há para ver, e se nos Andes os índios, hoje em dia, enojados de tanto turista, respondem cuspindo às perguntas imbecis.

Mas pouco importa: ubíquo, impertinente, simplório, o turista continuará pelos séculos dos séculos a espraiar-se por toda a parte, partilhando com centenas de milhões de congéneres a bizarra convicção de que é invisível, e a não menos bizarra certeza de que o Altíssmo criou o mundo para que ele pudesse ir de férias.

O amigo, esse chega a uma cidade ou país estranho com a deferência de quem entra em casa alheia. Não dá nas vistas pelo modo nem pelo traje, absorve sem se intrometer, não se choca com o que lhe parece bizarro, não critica sem conhecimento de causa, não cede a preconceitos. Esse é o turista no sentido bom da palavra, o visitante amigo, o que viaja para se enriquecer de sentimentos, para dar aos seus olhos horizontes novos, mas que ao mesmo tempo deixa algo de si nos lugares que visita; ele é aquele que sabe que viajar não é apenas receber, nem apenas dar, mas sobretudo permutar.

Cheguei pela primeira vez a Lisboa num momento febril da adolescência, a idade das impressões fortes. E neste Verão, o primeiro do milénio, passados cinquenta e três anos sobre esse dia, nos esconsos da memória as imagens permanecem vívidas, nítidas, como se fossem de ontem.

A qualquer instante posso reviver o momento em que o comboio parou na estação do Rossio, que era o términus. A alegria de descobrir ali ao lado a praça do mesmo nome. O ar descontraído com que, para esconder a agitação dos meus dezassete anos, segui pela Rua do Ouro até ao Terreiro do Paço e ao rio.

          Não que me sentisse nervoso ou provinciano, pois de facto quase nada me surpreendia. Até então a minha vida passara-se no Porto, a segunda cidade, e os eléctricos eram semelhantes, igual a balbúrdia do povo, o cheiro das ruas. Sim, as cores dos edifícios eram mais claras e as ruas mais planas, o ar mais transparente com outra luz. O Tejo, esse abismou-me. Parecia um oceano, e à beira dele o meu Douro familiar descia à modesta proporção de riacho.

          Ressinto e revejo tudo isso quando quero. Curiosamente, das inúmeras vezes que desde então cheguei ou parti de Lisboa, de poucas me ficou lembrança. O que é de compreender, pois toda a repetição cansa, a idade embota as emoções, o espírito mostra-se por vezes refractário ao apreço da beleza e à recepção de surpresas.

          Verdade é que na minha primeira visita não contava somente a novidade, e daí talvez a memória duradoura. Porque, na consciência colectiva e na minha em particular, Lisboa não era apenas a capital, a grande cidade, mas muito mais.  Era um ponto sacro, o lugar milenário onde História e Mitologia se tinham fundido, o palco dos grandes momentos.

As suas colinas tinham visto chegar as migrações dos povos sem nome, e depois os que tinham vindo a navegar desde as lonjuras do Médio Oriente, seguidos pelos romanos, os bárbaros, os árabes. Em redor do seu castelo tinham-se travado as batalhas decisivas para a nascença de Portugal e, séculos mais tarde, no auge dos Descobrimentos, tornara-se a capital do mundo. Para ela corriam então as fabulosas riquezas do Oriente, era das margens do seu grandioso rio que partiam as caravelas a reconhecer os continentes estranhos que os antigos diziam povoados de monstros e recobertos de ouro.

Imprevidente, tresloucada, tendo esbanjado a fortuna, Lisboa adormeceu, para acordar em sobressalto no dia em que os deuses quase a arrasaram com o grande terramoto de 1755. Mas passado o choque, enterrados os 15.000 ou mais mortos, cortadas as ruas perpendiculares agora características do seu centro, recaiu em letargia, e assim se iria manter até ao começo da Segunda Guerra Mundial.

Porto de abrigo num mundo de tragédias, acolheram-se nela os afortunados. Encheram-na de vida, fizeram-na vibrar, e durante cerca de dez anos foi de novo uma verdadeira capital.

A minha primeira visita, em 1947, data desse tempo áureo e, como acima disse,  a impressão que me fez resta imperecível. Infelizmente, as décadas seguintes foram de novo de apatia e de miséria, com o povo a fugir e os recursos do país gastos numa guerra colonial que iria terminar sem honra, sem glória e sem proveito.

Mas desde que em 1986 aderiu à União Europeia Portugal mudou, e Lisboa mudou com ele, nos últimos tempos transformou-se de tal modo que por vezes me custa reconhecê-la.

Daí este guia, que é tanto para aqueles que me lêem como para mim próprio. Ao mesmo tempo sentimental journey, descoberta de lugares novos e evocação do passado. Com a esperança de que, através dele, alguns possam descobrir  Lisboa como eu a descobri nessa manhã longínqua da minha juventude, quando cheguei tomado do sentimento de que nela a Mitologia e a História se fundiam, que era lugar real, mas também lugar de lendas e feitiços.