sábado, abril 3

Fogo-de-vistas

"Ao primeiro estrondo Ana Rosa atirou-se para cima da cama, a travesseira sobre a cabeça, sem dar ouvidos à mãe que matracava a porta:– Tens medo? Rapariga! Tinha corrido o fecho, esperava ainda antes de responder, aperreando, medo tinha ela e queria companhia.– Ana Rosa! Estás aí?– Estou. Ouviu-a suspirar e depois os passos que se afastavam. Certas horas, sem mais razão, os carinhos, e os paparicos punham-na de mau humor, respondia torto, ou então casmurrava e a mãe, que dantes era o tudo, parecia-lhe desprezível, mesquinha, acumulavam-se as zangas por um nada, como de manhã, na rua, quando a mulher tinha dito: «Bom dia, senhora professora.» Julgou que era gracejo e ia explicar que ainda demorava, dois anos, talvez, e era se tudo corresse...Mas a mãe não lhe deu tempo, fê-la andar.

– Pouco importa. Quero que to chamem.– Mas...

– Deixa lá. Assim é que fica bem e habituam-se.

Cansada, encolhia os ombros, lengalenga que entrava por um ouvido e saía por outro, restos de azedume:

– Se nas cidades houvesse tanto respeito como cá, aconteciam menos desgraças! O mal vem quando os pobres começam a dar-se ares, a julgar... Hein? Já o teu pai dizia que na África é o mesmo. Se não andasse à chicotada os pretos comiam-no vivo! E os pobres daqui são como os pretos de lá, tal e qual! Ou pior! Quando a gente não se precata...

O retrato pendurado na sala mostrava um homem mirrado, de bigode estreito e olhos estranhamente dispostos, diante de quem a mãe se ajoelhava, «o santo que nos deixou a pensão, Nosso Senhor o tenha em seu eterno descanso» e ajoelhava também, a temer aquele olhar vesgo. «O teu pai disse que havias de estudar para professora», palavras que tantas vezes repetidas tinham adquirido um significado diferente– mas estudava, lutando contra a moleza, levada para diante pelos cem aguilhões que a mãe manejava, sempre a temer falhas, invejas, mau-olhado, como se o defunto ainda comandasse, constantemente a relembrar-lhe cautelas e que agradecesse ao santinho que as protegia. «Agarra-te aos estudos!» Os estudos! Como é que lhe poderia explicar? «E já tens modos!» Nunca lhe tinha perguntado a que modos se referia, talvez «os modos de senhora», o que as outras pareciam ter de nascença e que as freiras lhe ensinavam, franzindo a boca. Os dezoito anos doíam-lhe e o que a mãe achava perfeito, a corpulência das ancas, as pernas gordas, valia-lhe alcunhas que sofria com lágrimas:– Qual Ana Rosa? E a outra, fungando de riso:– A cu de arroba!

Sobressaltando a cada estrondo, o calor tomara-a, persistente, húmido, amolecia, dava-se à dor que lhe causavam os seios premidos contra o colchão, embalava-se com o ritmo que o corpo pedia e no fundo, vaga, informe como sonho recordado, aquela imagem. Não a tinha deixado ir ao arraial, nem sozinha nem acompanhada, «quem quer ser senhora fica em casa, não se mistura a essa corja», tristonha, a invejar as que se divertiam.– Só uma hora, mãe! As outras também vão!– Que outras? As filhas do Acácio, as do Alfaiate...

– Não são da tua igualha.

Amuada, quando o fogo começou foi para a janela das traseiras, por desafio, mas logo a esqueceu, entretida com o jogo das cores, as estrelas a multiplicarem-se, as bombardas estrondosas, bouquets que esbraseavam tudo, foguetes que partiam oblíquos sobre os telhados, sem estourar, deixando um rasto de lume.

O grito que não conteve não escapou à mãe, sentada a dobar, indiferente à festa:– Sai daí! Ainda apanhas com alguma cana! – E só então atentou no rosto descomposto, levantou-se, a querer ampará-la:

– Jesus! O que é que tens?

– Nada.

Sentou-se longe do candeeiro, a arfar, passando os dedos nos lábios secos, incapaz de manter o sorriso com que queria iludir. Tinha visto primeiro o homem, sem calças, a camisa a esvoaçar, e nuas, encostadas à meda, as duas mulheres esperando.

– Queres chá?

A sós no quarto pasmou-se das lágrimas que chorava, sem saber de que dor."

 

In O Rebate - 1971