domingo, abril 4

As relações perigosas

O caso começou como tantos começam, brincadeira sem maldade, simpatia e uns pozinhos daquele misterioso ingrediente que nalguns casos leva ao namoro, noutros ao casamento, de vez em quando a relações perigosas, as de que já lá vão três séculos um francês, com o nome bizarro de Pierre Choderlos de Laclos, tratou num romance que deixou fama.

De facto assim começou, e com tanta ingenuidade que para ambos foi surpresa que estivesse a acontecer, ele sabendo que estava a pisar em terreno minado, ela vendo o mundo com os olhos dos vinte anos, a certeza de que vale a pena, grande a probabilidade de que tudo acabe bem.

E um dia, como fatalmente tinha de acontecer porque ambos o desejavam, esqueceram os travões, lançaram-se no doce e clássico abismo do amor proibido entre o cinquentão casado, pai de filhos e a menininha quase virgem, fascinada pela aventura.

Foi breve, foi intenso, foram felizes, e quando o Destino mandou que tinham chegado ao fim separaram-se sem remorso, gratos pelo que tinham sentido e do que cada um ao outro tinha dado.

O tempo correu, ela casou, foi mãe, ele enviuvou. Encontravam-se de vez em quando, ao acaso de uma ou outra festa de aniversário ou em casa amiga, ambos cuidadosos em nunca e de maneira nenhuma aludir ao passado, evitando mesmo um modo de olhar que parecesse sugerir a recordação.

Pode o mundo dizer que foi fraqueza, abatimento, solitude, mas ele, desculpando-se com uma enganosa inocência, assegura que foi apenas saudade o escrever-lhe aquele mail. Coisa de nada, uma dúzia de linhas com perguntas de cortesia e mal disfarçada saudade.

Foi surpresa que ela respondesse, porque o não esperava, menos ainda que o fizesse logo e que quando se deu conta tinham passado horas. Também não acreditaria se lhe tivessem dito que o ritual viera para durar e o que parecia apenas conversa íntima encerrava um perigo maior do que a aventura que tinham vivido, as palavras  ganhavam outro significado, outra força.

Quem dá asas à imaginação espera agora um fim dramático, cenas de violência, o cornudo de pistola apontada à infiel, ou desfazendo o rival a murro e pontapé. Por vezes assim acontece na vida e até num ou noutro mau filme, mas neste caso pode dizer-se que entrou o espírito de Salomão, o das setecentas esposas, trezentas concubinas e grande sabedoria.

Quando descobriu que iam para a cama o marido calou. Até que enfim tinha paz. O casamento nem de longe era a harmonia sonhada, os filhos um peso, o futuro uma sombra. Deixá-los andar.