terça-feira, abril 20

Antipatias

Tal como o mistério de algumas simpatias, o de certas antipatias também se não pode discutir. Enraizadas nos arcanos do espírito ou consequência de nervos mal atados durante o período frágil da gestação, certo é que pela vida fora vamos carregando inexplicáveis aversões. Muitas surpreendem pela sua insignificância, mas debalde tentaremos escapar à garra com que nos apertam. Eu, por exemplo, não consigo olhar o retrato de um escritor de pena na mão, ou com os dedos pousados no teclado da máquina de escrever, sem que a qualidade da sua obra não sofra logo na estima em que eventualmente a tenho. Escritor que se deixa fotografar assim, diz a minha antipatia, não pode ser sério nem valer muito. Porque se uma pose dessas traduz algo, não é por certo o brio do talento nem a modéstia que pede a condição humana, mas o espírito frívolo que, para se afirmar, necessitados sinais exteriores do seu ofício. Também me desagradam, mas por outra razão, creio, os retratos de escritores com as suas estantes a servir de pano de fundo. Desde que nos últimos anos a reprodução fotográfica, mesmo a dos jornais, aumentou sensivelmente de qualidade, mal vejo um desses retratos logo de lupa na mão me ponho a esquadrinhar os títulos dos livros que ele ou ela possui, na esperança de descobrir uma sintonia com os meus próprios interesses ou simpatias. Sem resultado. Se mencionasse aqui os títulos das obras que assim encontrei, o leitor também como eu se perguntaria se a insignificância dos escritos de X ou Y se pode explicar através da parte assim visível do recheio da sua biblioteca. Recentemente publicado numa revista, o retrato de corpo inteiro de um conhecido escritor, diante de um colossal e impressionante armário a abarrotar de volumosos tomos, veio agudizar outra das minhas irracionais antipatias: a que  desde há muito nutro pelo abuso das citações. Acontece que o escritor que refiro, tendo ganhado fama de erudito, raras vezes escreve página em que não cite duas ou três celebridades. Num caso extremo, o seu posfácio à antologia da lírica de um obscuro, mas pelos vistos genial poe ta dinamarquês, recordo que não somente cerca de metade do texto se compunha de citações, mas que elas provinham defontes tão díspares como Ionesco, Snorri Sturluson, Marsilius,sir Charles Sedley, Andy Warhol, Virgílio, Marguerite Duras e muitas outras, algumas tão obscuras que em vão as procurei na enciclopédia. Desconheço se o intento tinha sido fotografar o escritor em questão ou o aparatoso móvel, certo é que ao atentar nas lombadas dos livros no seu armário me correu pelo corpo o arrepio da descoberta: eu tinha ali sob os olhos a mina das citações do homem, o armazém do seu saber. Por um instante cedi à tentação, peguei na lupa e comecei a ler os títulos. Mas logo me detive, tomado por um incómodo, a vergonha de penetrar impune no segredo da fraqueza e da artimanha de outrem. Porque é talvez por isso que o excesso de citações sempre acorda em mim a irritação. É que me dá o sentimento de surpreender alguém que, por si só, não tem força para andar e que, em vez de se servir discretamente das muletas em que se apoia, acena orgulhoso com elas. De facto, para se fazer valer, o hábil não necessita de originalidade nem saber verdadeiro: para ele e para o mundo a prótese já serve.

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In Mazagran – Quetzal, 2012