sexta-feira, abril 2

Acto de contrição

"Não é que me interesse o mês, o tempo, a chuva, o raio que parta tudo, mas estamos em Dezembro e o vazio é mais vazio do que antes. Ela foi para Paris até à Primavera.

Decidi. Chorei contra o travesseiro, com raiva do Deus que deixa as minhas orações sem resposta, e falei ao padre.

Aranha, sentado na cadeira de encosto, as mãos sobre o ventre, acena-me com o queixo para que comece. Preparara o discurso com intenção de adoçá-lo:

— Preciso de fazer alguma coisa, senhor abade... Eu quero... Mesmo humilde, quero…

O discurso sai às avessas, é como se pedisse esmola e tremo de raiva porque me via a dar coices, a exigir (porquê? de quem?), a falar alto e estou aqui humildinho, manso, em sentido, faz favor senhor abade, se Vossa Reverendíssima tivesse a bondade…

Olhos quietos atrás daqueles óculos que os tornam desmesurados, eu a chorar a minha lengalenga. Até que me falta o fôlego, não tenho mais que dizer e a aranha, enfastiada, solta um urro como se eu fosse o Demo.

— Como é que tu!... Envergonha-te, despudorado! Queres que repita o que corre por aí? O que dizem? E tens coragem de vir à minha presença, de entrar em minha casa?!

Deixa gritar. Aguenta, que não há-de ser de muita dura. Afinal são ditos. Espera.

— Entra a porta do Senhor! Faz acto de contrição! Entra aquela porta, infeliz! E comunista! Até dizem que és comunista! Como se não bastasse!

Raiva, esforço de conter-me, as lágrimas rebentam contra vontade, dor das unhas que espeto nas palmas para não lhe responder. Uma Madalena.

Faltam-lhe palavras, e sem mais segura-me firme pelo braço, empurra-me para dentro da igreja, ambos a tropeçar contra os bancos, uma pressa de não deixar secar o meu arrependimento, eu aéreo, vazio, como se assistisse a um sonho.

Venho a mim ajoelhado no degrau do altar-mor, transido de frio e de respeito, porque uma igreja vazia, alumiada por duas ou três velas, e a voz dele, ressoando: «Aqui! Venha confessar-se!», faz impressão.

Vou. Respondo ao que me pergunta... Não senhor... A criada?... Sim senhor... Rezo com ele, em voz alta, repetindo. Dá-me uma penitência que não entendo, um rosário que benze em duas palavras. Saímos. Sinto uma oura, mal firme nas pernas, espero enquanto ele fecha a porta à chave.

— Pode ser que no Colégio da Póvoa te arranjem emprego. Fala ao senhor padre Daniel, diz-lhe que vais a meu mando. E no domingo, missa! Comunhão, bem na frente de todos! Para exemplo! Boa-noite.

Entra em casa, eu fico ali, sem força de andar, pobre de pedir, doente da raiva que não soltei, até que Deus tem piedade de mim e deixa que vomite ali mesmo, contra a parede."

.......

in Montedor - 1968