terça-feira, abril 13

A mulher perfeita

Houve um tempo em que debalde me perguntei que mistério envolvia um certo tipo de mulher inglesa, para fazer com que, ao vê-la no ecrã ou na vida real, a minha cabeça logo desandasse. Mas um dia, remexendo nos gavetões da memória, encontrei neles a solução e sorri de mim mesmo, enternecido com as ingénuas paixões da minha infância. Mrs. Cockburn, nossa vizinha, velha de quase trinta anos, mãe de dois filhos, casada com um seco e sempre mal-humorado negociante de vinhos, foi o meu primeiro grande amor. Eu tinha entrado para a escola primária, e ainda hoje me envergonho das manhas com que me demorava a esperá-la à porta da escola para que ela me desse a mão, enquanto os filhos corriam diante de nós como selvagens. Quantas felicidades não vivi naquela meia hora de caminho, agarrado à sua mão extraordinariamente branca emacia, entristecido se ela me intimava para que acelerasse o passo. Foram sem conta as tardes que passei pendurado no muro que rodeava a sua casa para a ver perpassar nas janelas, ou à espera que me sorrisse quando descia ao jardim. O meu peito enegrecia cada vez que o chofer tirava da garagem o reluzente Humber e Mrs. Cockburn, vestida de sedas, desaparecia nele, sabe Deus a caminho de que traições à minha paixão.  

O remédio era o cinema, sobretudo se no filme aparecia uma irmã gémea de Mrs. Cockburn, mas a verdade manda dizer que cedo ficou provada a inconstância dos meus sentimentos.

O senhor Borges, amigo de meu pai, tinha comprado casa no nosso largo, e era aí que de longe a longe vinha repousar das canseiras que passava na África do Sul, onde tinha negócios. Diziam-no rico, a casa era grande, também com jardim, e a certeza da sua fortuna veio a confirmar-se no dia em que inesperadamente apareceu acompanhado da mulher, uma inglesa de Bristol.

O carro em que chegaram, um Packard grande e luxuoso como um iate, tinha feito correr a garotada da vizinhança. Mas só de verdade perdemos o fôlego quando o senhor Borges deixou o volante e foi abrir a porta do outro lado. Uma deusa! Esbelta, de pele acetinada, longos cabelos dourados, pernas de corista (mau grado a idade já estávamos a par), vestida com um luxo estrangeiro, sorrindo como só as divindades sabem sorrir. Deu a impressão de nos olhar um por um, e em seguida, revoluteando como num palco, entrou em casa.

Mrs. Cockburn caiu imediatamente do pedestal e Betty Borges, embora nunca me tivesse segurado a mão nem dado beijos que faziam corar de prazer, foi a minha nova paixão, ardente, não correspondida. Dentro em pouco tudo nela se tornara motivo de fama. Não apenas a sua beleza e os seus trajes, mas o arranjo em que pusera a casa, a disciplina das criadas, a escolha das flo res, o esplendor dos seus jantares e das suas festas. Quando o Verão findou e ela partiu, tomou-me uma funda melancolia. Quando no Verão seguinte o senhor Borges retornou sozinho, enchi-me de maus presságios. Estaria doente? Teria morrido? Andaria apaixonada por outro? Uma noite, à ceia, ouvi dizer que o senhor Borges se tinha divorciado dela e, fora o choque de que nunca mais a tornaria a ver, pareceu-me aquilo um contrassenso. Por muitas razões que inventasse para justificar tal passo, nem mesmo o crime gravíssimo do adultério me parecia suficiente para merecer semelhante pena.

Um dia que o senhor Borges e meu pai se tinham sentado numa sombra do jardim a conversar, fui-me aproximando com rodeios e, chegado a um ponto em que os podia ouvir, sentei-me no chão a fazer rabiscos no saibro com um pau. A conversa de ambos era cheia de subterfúgios, cortada por silêncios, retomada em meias-palavras, mas por fim consegui compreender que o senhor Borges se separara da esposa sem que realmente fosse capaz de lhe apontar uma falta ou de a apanhar num erro ou numa infidelidade. Meu pai, exaltado, achou que era incrível, um comportamento de doido.

De costas, para que não desconfiassem que os ouvia, continuei os rabiscos, e no meu íntimo concordei. Só mesmo alguém transtornado do juízo se separaria de uma mulher assim, tão bela e meiga, ainda por cima fiel. Foi então que o senhor Borges, com o desespero de quem se livra de um peso que o asfixia, gritou que lhe diria o verdadeiro motivo. Pouco se lhe dava ser tratado de doido. Só ele próprio sabia o inferno e os martírios que tinha passado. Nesse momento o motivo do senhor Borges pareceu-me um paradoxo, mas com o passar dos anos e mais experiência, finalmente compreendi que ele falava verdade e tinha razão ao dizer que se divorciara por ser impossível viver com uma mulher que «para homem normal era perfeita demais».

in Mazagran - Quetzal