sábado, abril 26

Em acção de graças


"Os capitães do 25 de Abril trouxeram-nos a democracia e a liberdade, devemos agradecer-lhes".
Oiço isso a pessoas sinceramente enternecidas, e de facto assim foi, duma maneira ou doutra os capitães accionaram a mudança de regime.
Ao mesmo tempo toma-me a melancolia, porque o agradecimento assemelha-se muito ao de um favor recebido, não ao de direitos conquistados pela própria acção. Alguém se mexeu, o resto esperou, a sequência conhecemo-la todos.
É assim que, mau grado a liberdade, não me parece que a apatia geral seja diferente da que testemunhei durante o salazarismo. A nação, mais uma vez, como tantas outras ao longo da sua História, parte dela foge, o resto espera que alguém se mexa, a sacuda e  tire da sonolência.
Mas os "capitães" estão reformados, e os banqueiros até a própria mãe vendem, quanto mais a pátria alheia. Por isso me pergunto se não haverá por aí um grupo de gente de saber, honra e vontade, que se levante, que diga que Portugal não merece o que lhe aconteceu, nem o que lhe acontece, e que é urgente, muito urgente, mudar?
Com a fé que me resta mandava rezar uma missa em acção de graças.

segunda-feira, abril 21

Na "Folha de São Paulo"

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 João Pereira Coutinho - in A Folha de São Paulo

Mal-agradecido


Perde-se-lhe a conta, e a chamada experiência que a idade supostamente proporciona de nada adianta para aguentar o choque, que na verdade não é choque, mas aquele sentimento a que em linguagem corrente se dá o nome de chatice.
De viva voz, por mail, numa ou noutra ocasião por carta, raro passa semana sem que um certo tipo de carinhoso leitor ou leitora me ponha ao corrente do entusiasmo que lhe causa a minha escrita.
Começa pelos cumprimentos, alarga-se neles, mas feito esse intróito entra no cerne do comunicado, explica então que se gostou muito do meu romance X, o romance Y o/a desiludiu, leu depois o Z e não gostou nada. Na página tal deste último emendaria o parágrafo que começa por…; tiraria as duas vírgulas que estão na linha vinte e sete; neste e naqueloutro diálogo surpreende a falta de naturalidade…
Oiço e leio com paciência, já nem abano a cabeça, mas no íntimo, em forma de oração, oiço-me a dizer: poupa-me os elogios, mete as críticas no mesmo saco onde os avisados metem a viola, vai bater a outra porta.

quinta-feira, abril 17

Esplanadas


Em muitas ocasiões basta um sorriso, uma palavra, um olhar, um toque de carinho para mudar o dia. Há momentos de bem-estar que se recordam ao longo da vida, pequenos gestos que equivalem a gotas daquele bálsamo de que a alma necessita nas horas de desespero.
A dificuldade está na dose, no momento, por vezes na intenção. Infelizmente, nem sempre sabemos dar, em muitas alturas falta-nos preparo para receber, e ora não compreendemos o carinho, ora interpretamos mal o gesto, esbanjamos tempo e sentimentos passando de lado, cruzando-nos sem nos encararmos, fingindo que nada temos para dar nem queremos receber.
Por isso me deprimem as esplanadas. Aqueles rostos a mostrar que nada esperam, os olhares vazios, a indiferença dos gestos, a artificialidade dos sorrisos.

segunda-feira, abril 14

Curvas e declives


Há quem alimente a ilusão de que a vida se assemelha a uma estrada, os avisos a anteceder as curvas perigosas, os declives anunciados em percentagens, os cruzamentos assinalados, nos miradouros sempre bela a paisagem.
E então, iludidos pela própria ingenuidade, há os que se julguam capazes de, na estrada como na vida, indicar aos outros o melhor percurso, prever as curvas, os obstáculos, aconselhar paragens e cuidados. Pena perdida. Muito pouco, quase nada, valem os avisos e as boas intenções dos que nos querem proteger. Para a vida tão-pouco há mapas, programas ou instruções, mesmo à luz do dia cada passada é dada no escuro, nunca se sabe se virar à direita é melhor do que à esquerda, se seguir em frente é erro.
Felizmente vamos andando, cegos de olhos abertos, contentes de que as pernas nos levem, iludidos de que sabemos para onde.

sexta-feira, abril 11

Ladrar à Lua


Uns ladram, furiosos, sem que se lhes descubra inimigo ou adivinhe porque o fazem. No ganir doutros pressupõe-se um sofrimento. Pelo modo como este e aquele de súbito estaca e começa a uivar, ocorre que deve ser desarranjo da cabeça ou ataque de inveja. Há os que grunhem e os que produzem uns silvos, incapazes de soltar de vez o ódio que os aflige, os que roncam agachados num canto, os que andam às voltas como os loucos num manicómio.

Estive no canil municipal e achei que era boa metáfora para as redes sociais.

terça-feira, abril 8

Sargento Getúlio


Entre Julho e Agosto de 1996 escrevi no jornal neerlandês de Volkskrant uma série de cartas a personagens literárias. Esta para  Sargento Getúlio,  de João Ubaldo Ribeiro. Já foi publicada aqui em Setembro de 2007, mas repete-se hoje com intenção particular.

Prezado sargento Getúlio,

Que me lembre, poucas vezes ao começar uma carta terei ressentido um tão singular desencontro de sentimentos como o que me toma ao escrever esta.
Em primeiro lugar, porque não sei bem se o modo que uso em epígrafe é o mais adequado para me dirigir a si. Sê-lo-ia, certamente, para com um dos sargentos pouco militaristas de agora, desses que foram à escola e possuem uma noção democrática do respeito que se deve às pessoas e às instituições.
No seu caso, creio que não. Sargento da Polícia Militar Brasileira nos anos 50, analfabeto ou quase, autoritário até à loucura, você tem sobre o respeito ideias tão suas que, embora pareça absurdo, elas se tornam simultanea­mente ridículas e universais, humanas e perigosas. Num momento provocam a minha ira, mas por um estranho poder de corrupção, logo a seguir me sinto obrigado a conceder que me parecem razoáveis.
Acontece também que nunca escrevi a um morto, o que faz acompanhar o acto de uma curiosa sensação de irrealidade. Isso, contudo, não evita que noutra parte do meu ser, aquela em que existo sem as peias do espaço e do tempo, você tenha adquirido a qualidade de figura eterna e ponto de referência. Não que lhe inveje a crueldade de lentamente esfolar vivo um inimigo, de gozar ao fazer com que outro vomite os próprios intestinos, ou ao abrir à faca o ventre duma mulher grávida.
Tãopouco posso apreciar o modo cego como você acata ordens, menos ainda a agudez animal de, em tudo e todos, procurar o ponto fraco para depois, sem dó nem perdão, pensar apenas em destruir.
Todavia, nas horas escuras em que o impossível deixa de existir e o espírito anseia por liberdade total, tenho-me surpreendido a imaginar que talvez não desgostasse de viver uma vida linear como a sua, em vez de me ver submetido aos solavancos e à confusão do meu dia-a-dia. Porque o que sobretudo em si me fascina é a aceitação da existência sem regras, limitada a um único bem, o cumprimento da ordem, e reconhecendo somente um único mal, a desobediência à ordem. O resto: crueldade, medo, fome, dor, sofrimento, desaparece esmagado entre esses dois pilares que, no seu ver, com terrífica simplicidade delimitam tudo.
Você prova o que eu preferiria não ver provado: que a vida pode ser vivida sem moral, sem beleza, sem amor. Que todos os entusiasmos são fúteis, a alegria indecorosa, o carinho um acto mecânico.
Felizmente, a minha sensibilidade e a consciência - ou serão apenas as minhas limitações? - levam a melhor e, passado o desvario, retomo o que julgo ser a paz que me permite ir existindo. Só que essa paz dura pouco. Tendo conseguido semear em mim a desconfiança, no final é você quem vence. Cruel e assassino, indiferente ao sentimento próprio ou alheio, maníaco com apenas uma ideia, avesso a tudo o que seja mudança, mesmo assim qualquer coisa em si toca o religioso, algo de inefável, de puro. Algo que se apercebe ainda menos que o ligeiro toque da brisa, e contudo se ressente forte como uma presença sólida, uma certeza.
Muitos dos bons sentimentos que a você faltam, conheço-os eu de nascença, e quase tudo o que você é, representa, o que faz e o que sente, é para mim odioso. Porém, e esse será o mistério da admiração que você me causa, e até certo ponto o da minha inveja: enquanto eu nunca torturei nem matei, tenho a certeza que no dia em que comparecermos no Julgamento Final, Deus fará para o meu lado um gesto de demissão, e o acolherá a si com um sorriso de ternura.
Porque só Ele sabe as razões que O levam a escolher a um para Seu instrumento do Mal, e a atirar a outro para a anonimidade da massa que, respeitosa da moral por temor ao castigo, cobardemente se conforma.