segunda-feira, junho 30

Diário (1)

Trintão, preto retinto, físico de atleta, sorriso pronto, cordial no trato, o vizinho é o que se chama uma simpatia. E se a elegância do vestuário, a abundância de anéis e o modelo do seu Mercedes valem de testemunho, provavelmente homem de negócios que lhe correm de feição. Circunspecto no que refere a sua origem, nunca referiu de que partes da África veio parar aqui, e fundamentalista não será, mas é muçulmano devoto, cumpridor, pontual na mesquita.
Tempos atrás quis saber se eu tinha filhos.
- Tenho.Três filhas.
Como se fosse importante o detalhe, acrescentei que todas três eram mais velhas do que ele.
Sorridente, informou-me do que eu já sabia, que também tinha três filhas.
Este diálogo passou-se há coisa de meio ano. Ontem surpreendeu-me vê-lo vir apressado direito a mim, mão estendida, o sorriso mais largo que o costumeiro, quase engasgado a anunciar que vinha do hospital, onde a mulher dera à luz outra criança. Um rapaz.
- A boy! The joy of my life!
Felicitei-o, trocámos as amabilidades habituais, mas de súbito vi-o tomar um ar sombrio. Sabia eu que, em árabe, ‘pai de filhas’ era insulto grave?
Respondi-lhe que ignorava, mas tão-pouco me afligia.
Sorrimos, fomos cada um para seu lado. Só depois me ocorreu se a informação não traria água no bico: é que continuo ‘pai de filhas’, e ele deixou de o ser.