quarta-feira, setembro 26

Paragem forçada

Este blog parou misteriosamente uns quantos dias, mas contra telecoms e providers não adianta a gente queixar-se, porque são eles que seguram na mão o clássico queijo e, quando lhes apetece, o cortam com a igualmente clássica e bem afiada faca.

sexta-feira, setembro 21

Vizinhanças

Devido ao desnível do terreno, a varanda da Aida, no outro lado da rua, encontra-se muito acima do nosso telhado.
Talvez para arejar, as portas mantém-nas ela sempre abertas, e assim ficamos expostos a uma sinfonia de sons diversos: gargalhadas, conversas com as vizinhas que a visitam, discórdias com o Benjamim, o trac-trac da máquina de costura com que coze pijamas para a fábrica...
Ao fim e ao cabo barulhos aceitáveis, domésticos, que quase naturalmente se fundem com os nossos e os restantes.
Mas às cinco em ponto a Aida liga o rádio, aumenta o volume do som e, com o entusiasmo da fé profunda, junta a sua voz à dos padres que na Rádio Renascença celebram as vésperas, entoam cânticos à Virgem e ao Cristo Rei, dizem depois a missa, seguida de pregações.
O bombardeamento obriga-nos a fechar portas e janelas, mas o sossego que isso traz é relativo. Às sete, terminam os responsos, mas já a Aida liga a televisão para acompanhar a telenovela. Às oito tem o telejornal. Às nove outra telenovela.
Se fizéssemos reparo ela não compreenderia. Então não rezamos? Não gostamos da telenovela de que todos gostam? Não seguimos as notícias?
É infernal. É de pesadelo. Devido ao calor dormimos com as janelas abertas e a meio da noite acordamos em sobressalto, a rua estreita cheia de cães. Tantos e tão agitados que não consigo contá-los, as correrias, os uivos, os latidos e grunhidos a multiplicar-se em ecos de entontecer.
Atiro-lhes pedras (tenho um saco de plástico cheio delas no peitoril), mas não se assustam nem se doem, porque cuido de não acertar no alvo. Atiro-lhes bacias de água. Desesperado e ridículo grito-lhes que se calem, que parem com a barulheira.
Escanzelados, as línguas pendentes, no espaço apertado demais para tanto bicho parecem uma onda peluda, que ora vai, ora vem, ou de repente estaca na sua ondulação.
Até que dentre aquela matilha de todos os tamanhos e feitios, alguns pastores e perdigueiros, mas em maioria vira-latas de pouco porte e pata curta, se escapa a diminuta causa do burburinho: a cadela do Guilherme.
Do nariz ao rabo quatro palmos de bicho, mas um cio que faz entontecer os pretendentes, e o ar desdenhoso de quem se vai dali porque não encontra forma para o seu pé.

sábado, setembro 15

Pausa

Amsterdam - Estevais de Mogadouro. Daqui a umas horas. Dois dias e meio de estrada. Dois mil e duzentos quilómetros quatro vezes por ano.
Há muito que deixei de me perguntar as razões porque o faço, temeroso de que não sejam válidas, nem suficientes para justificar a canseira. Vêm menos da cabeça do que do coração, o que pouco importa, pois ambos me têm sido de fraco conselho.
A prosa entra em descanso coisa de uma semana.

quinta-feira, setembro 13

Aniónios, iónios e pré-bióticos

Volto do supermercado. Não sei bem se irritado, incomodado, ou com vontade de mandar…
A embalagem das esponjas informa-me que estas, à superfície, contêm matéria com menos de 5% de aniónios activos e menos de 5% de iónios inactivos BHT.
A embalagem do sumo de laranja, essa vem agora com pré-bióticos VIVINAL ® GOS.
Que deduzir disto? Que ladram mas não mordem? Ou mordem? Que matam aos poucos? Causam alergias? Eczemas? Comichão?
Será que em Bruxelas, donde vêm as directivas, alguém ocupa os dias a inventar tão indispensáveis informações?

terça-feira, setembro 11

O (meu) problema da oração

Desde pequeno ensinaram-me a crer em Deus, Jesus Cristo, na Virgem e nos santos. Falaram-me de mistérios, de milagres, da Santíssima Trindade, do Sagrado Coração, de Lourdes e de Fátima. Ao mesmo tempo ensinaram-me a rezar, o que durante anos fiz com o automatismo da inocência.
Depois, sem de todo perder a fé, vivi longos períodos em que as relações com a divindade se me tornaram nebulosas, tal um hábito perdido que vagamente se recorda. Como houve também alturas em que, sem outra porta onde bater, a aflição e o desespero me levaram a orar.
Hoje, com a calma que a idade empresta e a perspectiva do fim próximo, retorno à candura inicial, mas agora despojada do que acho supérfluo.
Creio em Deus. O resto - Jesus, Virgem, profetas, santos, milagres e mistérios... - parecem-me atributos, folclore, perturbam a minha concepção do Criador Uno e Todo-Poderoso.
A Bíblia não a tenho por livro sagrado, sim como documento histórico. Cristianismo, Budismo, Islam, essas e as mais religiões, olho-as com o respeito que merecem os fenónemos de massa milenários, e a perplexidade de que continuem a ser causa de tantos horrores. Os templos interessam-me pela sua arquitectura, os rituais pelo seu colorido. E como na teologia não encontro certezas, somente interpretações e suposições, vejo-me a sós com Deus e debato-me com o problema da oração.
Os padre-nossos que dizia como um autómato, deixaram de satisfazer a minha vontade de comunicação, e não resistem às dúvidas que me ponho, nem à análise do texto.
“Venha a nós o vosso reino” - mas haverá nele também o mal, a crueza e a desigualdade que nos afligem neste em que estamos?
“Seja feita a vossa vontade” - então de nada adianta esforçar-me por um objectivo, querer seja o que for, pedir seja o que for. Aceitar que a Sua vontade seja feita parece-me contradição, pois desdenha das qualidades que Ele próprio me deu para viver e sobreviver, faz de mim um títere, condena-me a um existir fatalista.
Assim cheguei à fase em que as minhas orações, despidas do supérfluo, traduzem apenas um sentimento de fé, comunhão e humildade. Creio em Deus Padre, Todo-Poderoso. Digo-o de olhos fechados, e esforço-me por não desesperar da minha insignificância e do vácuo que sinto.

domingo, setembro 9

Tudo bem? Prazer em vê-lo!

Tempo passado, em conversa com um amigo, por coincidência alto funcionário de um ministério, estranhava eu que o Governo nada fizesse para sustar o êxodo das aldeias, do que infalivelmente resulta a desertificação das províncias e o aumento dos bairros de miséria em torno das cidades.
Homem pragmático, sossegou-me ele com uma pancadinha nas costas. Preso a um idealismo obsoleto, explicou, eu tinha parado no tempo, continuava a não querer enfrentar a realidade e, teimosamente, decidira manter-me cego.
Pois só um cego, disse, não se daria conta de que à romântica solidariedade dos anos 70 e da Revolução, tinham sucedido as duras leis da economia do mercado, onde não há lugar para tibiezas. Aliás, bem vistas as coisas, o êxodo dos aldeãos para as cidades, por certo lastimável, também tinha lados positivos. E gargalhando da boa piada, acrescentou:
- É que não há falta de operários e arranjam-se mulheres a dias muito em conta.
Não me lembro do que lhe respondi, mas a minha resposta não deve ter sido a que o seu comentário pedia. Que o fosse, ele não lhe teria dado ouvidos.
E é essa a verdade: ansiosa por parecer moderna, europeia, a nossa sociedade continua desesperadamente arcaica e bizantina. Nela os brandos costumes escondem o desespero de viver, as infindas cortesias mascaram as raivas subjacentes, a hipocrisia leva a melhor sobre a franqueza.

quarta-feira, setembro 5

Pranto

Sabia-o por vê-lo e incomodava-me sobremodo, as pessoas de idade que por um sofrimento pequenino, a ocasião de uma visita ou despedida, deixavam que os olhos se lhes marejassem.
Além de uma inconveniência, parecia-me ridículo, absurdo e, corando de vergonha recordava de, muitos anos atrás, ter chorado num cinema ao ver Limelight, de Chaplin.
Outras lágrimas, raras, já deixara cair, mas essas não tinham sido de pena ou dor, sim de raiva impotente. Chorão, eu? Jamais!
Era o que pensava, com aquela certeza sobranceira que a ignorância dá. Até que, sorrateiramente, a sentimentalidade se apoderou de mim, ou o passar do tempo enfraqueceu as comportas dos lacrimais.
Uma recordação, uma música, uma criança, um animal que sofre, dores da guerra, dores da fome e da miséria, tragédias, desastres da natureza, tudo isso me humedece os olhos.
Tento couraçar-me. Digo-me que a CNN manipula as imagens, que um filme ou o romance são ficção, que os repórters são parciais, mas pouco adianta. Hoje vêm-me as lágrimas por tudo e nada, até por saber que, para os mais novos, sou eu agora o ancião que os irrita com o seu inesperado pranto.

terça-feira, setembro 4

Miudezas (4)

Num passado não muito distante só em circunstâncias excepcionais se via um filme baseado na história de pessoa ainda viva. Com a biografia acontecia o mesmo, e de poucos personagens se terá então espiolhado a vida antes de se saberem mortos e enterrados.
Actualmente vai-se a passo acelerado. Porque se tornou desmesurada a curiosidade pública, ou porque o comércio não tem tempo nem paciência, só ganância, há estrelinhas de vinte anos a autobiografar-se, detalhando os altos e baixos do seu passado.
Vende? Não há argumentos contra, só a favor.

Isto são provavelmente medos atávicos, ou ataques de pessimismo doentio. Aquela parte de mim que quer correr riscos, agir, participar, é sempre travada pela outra, a guardiã da memória dos desaires e das aflições impressas nos genes que recebi dos antepassados.
Assim me tornei exemplar no querer, mas sempre com receio de realizar, mais fértil em sonhos do que em iniciativas, a admirar os que são diferentes e uma vez por outra a dizer-me que se fosse mais novo...
Mas sei que me iludo, que me dou desculpas de mau pagador.

Em boa parte devido à carga genética, depois com o ambiente da criação, a escola e sabe Deus que mais, a partir de certa altura o carácter está formado e, a menos de milagre ou acontecimento de sérias consequências, não há forma de o mudar.
À força de paciência, alguma introspecção e trambolhões frequentes, ainda se pode ter a ideia de que nos conhecemos um pouco, mas na verdade as frestas desse suposto saber são bem mais estreitas do que os buracos negros da ignorância que temos de nós próprios.
Assim sendo, não adianta quebrar a cabeça a tentar a impossível mudança do que somos, mais vale divertirmo-nos a fingir o gostaríamos de ser.