domingo, abril 13

Travessuras da memória

 

Facto é que para minha surpresa, e por vezes a dos que me conhecem, a memória ainda não dá excessivas razões de queixa ou alarme. Isso mesmo quando lhe peço que me recorde o nome de uma estrela do cinema alemão dos anos quarenta, o título de um filme italiano clássico ou, em desafio, me traga à lembrança o nome e as qualidades do personagem principal de Cem anos de solidão, o romance de Gabriel Garcia Marquez.

De uma maneira ou doutra, questão de sorte na lotaria da genética, puro acaso, ou talvez resultado de que, nos alimentos minha longínqua infância e juventude, o superfosfato da CUF era a única mixórdia química que adubava os campos.  Nesse antigamente, o trigo, o centeio, a aveia, o milho, as batatas, fruta, hortaliça, tudo se semeava e crescia em campos que, saudável e naturalmente, eram  adubados com o fermento do esterco animal e humano.

Não se vá pensar, todavia, que estou alegremente a bater no peito, inchado de segurança, pois não me faltam momentos de susto, ou até verdadeiro pânico como – felizmente espaçados – ver-me de súbito a apertar a mão de um conhecido, sentir-me incapaz de recordar o seu nome e, na vã tentativa de ocultar o doloroso embaraço, embrulhar-me num diálogo sem pés nem cabeça, a fazer observações que lhe parecerão disparatadas, mas são apenas a cortina de fumo a esconder o torvelinho que nesse instante me assalta o cérebro.

Assim, pois, se tenho algum motivo para me felicitar pelo razoável funcionamento da caixa cerebral que armazena os dados, não perco de vista a realidade de que, de um momento para o seguinte, basta um diminuto nada, um átomo destrambelhado que mude de lugar, e então segurança, satisfação, certezas,  calma, horas de paz, vai tudo água abaixo.