terça-feira, outubro 7


 

segunda-feira, outubro 6

O Casino

 

"A fotografia mostra um grupo de rapazes sorridentes. Com a caligrafia esmerada dos meus dezassete anos escrevi no verso: Lisboa, 11 de Maio de 1947.

Ano cheio de acontecimentos e novidades, descobertas, primeiras impressões,  sonhos que nunca se realizaram. Vir a ser campeão de salto em altura, por exemplo. Ou milionário. Ter um veleiro de quatro mastros, um harem, dois cães e um rádio portátil da marca Zenith. Viver na Sibéria como Miguel Strogoff. Tocar guitarra. Quebrar lentamente os ossos do professor de Matemática.

O campeonato de remo que nos levara a Lisboa - onde nos iríamos classificar em último lugar - tinha sido adiado por qualquer razão que agora não recordo, deixando-nos à solta na cidade uma semana inteira.

Além de ser a minha primeira visita à capital, gozava, também pela primeira vez, uma liberdade desconhecida. E tudo me fazia encanto. As ruas, as tabuletas das lojas, os eléctricos, os cinemas, a arcada do Terreiro do Paço. Não me cansava de subir e descer o Chiado que,  a acreditar nos jornais desse tempo, igualava em luxo e esplendor as ruas de Paris, "inclusive os Campos Elísios."

Comer sozinho no restaurante! Mandar vir camarões, carne grelhada com batatas fritas, uma caneca de tinto. Pudim de laranja. E café, se faz favor. Sair depois de Lucky Strike na boca, hesitando um instante entre Clark Gable e Humphrey Bogart, para finalmente passar a tarde a cantar com Al Jolson pela soma de quatro escudos, o preço da plateia.

           

Na esquina do Rossio com a Rua do Ouro, onde há agora um estabelecimento que é meio livraria, meio quiosque, tinha eu parado logo no primeiro dia, fascinado pela joalharia que então ocupava o prédio. Não porque me interessassem especialmente as pratas ou as pedras, mas sem fala diante daquela exposição de riquezas acumuladas nas vitrinas.

Os fios de ouro caíam em cascata. As salvas tinham dimensões de rodas de carro. Os diamantes cintilavam em estojos forrados de veludo preto. Montões deles. Havia candelabros da altura de um homem e toledanas embutidas de rubis. Correntes, alianças, os anéis grossos com que as viúvas se fazem inveja. Fruteiras descomunais. Crucifixos de metro em "prata massiça, 99,9% pura." Querubins. "Últimas Ceias". Caravelas de filigrana. Talheres dourados, pérolas, facalhões para trinchar perus, argolinhas de marfim para as gengivas dos bébés. Galheteiros em "prata antiga do Brasil."

As vitrinas eram fechadas por espessos reposteiros azul-escuro, a esconder o interior, bem assim como a porta. Da única vez que a vi abrir-se, um segundo ou dois, as cintilações e fulgores vindos lá de dentro, multiplicadas infinitamente em cristais e espelhos, fizeram com que deixassem de me parecer exagero a história de Ali Bábá e o resto das Mil e uma noites.

Ao mesmo tempo tornou-se-me claro ser verdade tudo o que eu tinha lido sobre riquezas orientais, as minas de Salomão, os tesouros do Négus, os galeões que no passado chegavam a Lisboa com toneladas de ouro e prata: a evidência estava ali.

Lembro que me senti indiscreto, tomado por um vago receio de que, ao ficar assim parado, estorvaria a passagem das princesas, dos nababos, dos monarcas que muito certamente vinham encomendar as suas tiaras e coroas. Recuei uns passos para ver melhor as grandes letras douradas sobre fundo de mármore negro e polido: "OURO - J. BRANDÃO, JOALHEIROS - PRATA".

Depois fui-me pela cidade, alegre com tanta coisa bela, ao mesmo tempo um quê melancólico, ciente que imponências assim pertenciam a outros mundos e o sonho permaneceria na minha vida um dos obstáculos maiores.

Naquela altura Lisboa era uma metrópole a fervilhar de actividade, cheia de gente enriquecida durante a guerra, refúgio doutros chegados ali carregados de fortunas e que, cansados ou contentes, tinham decidido ficar. Automóveis sumptuosos, com choferes fardados, esperavam diante dos palácios e palacetes que então havia nas avenidas. Ou rodavam lentamente, solenes, via-se dentro deles a gente retraída e distante para quem nós éramos a paisagem. Os oficiais iam pelas ruas a cavalo, em uniforme de gala, luvas brancas, pingalim, seguidos por ordenanças que, em bornais vistosos, transportavam os documentos do Poder. Mulheres etéreas, vestidas de seda, e atrás delas as criadas carregadas de pacotes e caixas. Sentia à minha volta a forte trepidação de uma vida nova, o fascínio de mistérios imagina­dos, cultos subterrâneos. Cada olhar cruzado com o meu, o virar de uma esquina, um sorriso, tudo me pareciam prenúncios e sinais.

 

À noite fazíamos uma refeição comum com o "Halteres”, o professor de ginástica, à cabeceira da mesa, e o chefe de equipa, o senhor Barros, sentado na outra ponta. Ambos nos interrogavam demorada­mente sobre como tínhamos passado o dia, por que ruas tínhamos passeado, se o moral era suficiente para vencer no domingo. Depois, sombrio, o "Halteres" repetia que não nos devíamos perder no Bairro Alto, nem ir às mulheres. O que se atrevesse apanhava um gálico que, fora uma possível cegueira ("em ambos os olhos"), infalivelmente levava ao apodrecimento total da "ferramenta."

Sorríamos, pouco impressionados, impacientes para que a refeição terminasse, prometendo que na manhã seguinte, às oito em ponto, não faltaríamos ao treino.

Para premiar a nossa boa conduta, e ao mesmo tempo garantir o entusiasmo e a vitória no domingo que se aproximava, os "chefes" prometeram levar-nos ao Estoril.

- Ao Casino? - perguntámos em coro, descrentes, mas a querer atrair o milagre.

- Ao Casino.

- De tarde?

- Não. Amanhã à noite.

A surpresa era grande demais para palavras ou exclamações. Que nos levassem lá uma tarde, se vencêssemos, compreendia-se. Mas assim sem mais nem menos! Quem podia, e se atrevia, visitava o Casino do Estoril uma vez na vida, em peregrinação, discreto, em bicos de pés, num recato igual ao que se tem nas catedrais e nos museus.

Dizia-se que de uma balaustrada se podiam ver as mesas de jogo, a roleta, as fortunas que o capricho da bola fazia mudar de mão. Por um preço mirabolante tomava-se chá entre milionários, tinha-se direito de assento entre ilustres e poderosos, com um pouco de sorte roçava-se a gente pelo Aga Khan, a filha de Churchill, às vezes um ministro de Salazar.

 Isso às tardes. Mas às noites!... Quem estava ao corrente não tinha palavras bastantes para explicar. Os salões do Casino tornavam-se então Sodoma e Gomorra, acrescentadas do que mesmo em fantasia parecia excessivo. Havia em permanência um show de Paris com bailarinas nuas, trapezistas nuas, cantoras nuas, duas jibóias que ao som de uma música sensual se enrolavam numa rapariga nua. Nua!"

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in "O Joalheiro" ( Os lindos braços da Júlia da farmácia).         

 

 

domingo, outubro 5

Sal na ferida

 

Precoce na leitura, cedo comecei a sonhar e a ter pena do meu país. Aprendi que lá longe havia outros sem medo nem miséria, de leis justas, menos desigualdade, menos desespero, os seus cidadãos e governantes mais interessados no futuro do que em glórias passadas.

Parti, quando a minha hora soou. Ingénuo bastante para me maravilhar, mas cedo consciente do fosso entre a realidade que observava e os sonhos que tivera. Além fronteiras não havia paraísos, mas sociedades onde a esperança de melhoria era um facto, a desigualdade menos gritante, a repressão inexistente, a liberdade um direito sagrado. Fui vendo, estudando, comparando, e continuei a ter pena da terra onde nasci.

Não me entusiasmou depois o florescer dos cravos, e espero o investigador de hombridade que faça a barrela desse momento histórico, mostre os interesses que a ele levaram, ponha nome nos fantoches e em quem segurava os cordéis.

Passaram os anos. Sentindo mais funda a pena, vi o meu país de mão estendida. Com espanto vi-o depois a esbanjar o que não tinha, governantes e governados dando o espectáculo da mais incrível pelintrice, de uma inconsciência que só dos pobres de espírito se espera, tomando por realidade o país de Cocagne.

Vivendo no conforto de uma sociedade rica, justa, bem organizada, materialmente não sofro com a desgraça daquela em que nasci, mas nem por isso me dói menos o esfregar sal na ferida.

Curioso povo, o meu, onde gente supostamente séria e competente enrouquece a gritar que as dívidas dos países não se pagam. Para que fingem? Com que fim iludem? Pagam, e com língua de palmo, que quem dita os termos não é o caloteiro, mas aquele que tem numa mão a faca e o queijo, e na outra a corda com que o enforca.

Com tristeza o digo e consolo não sinto: na minha idade é nula a esperança que tenho de ver Portugal sair do atoleiro e da miséria. Resta-me o sonho de que os que agora são jovens, e os que vierem, construam um país de que se possam orgulhar e não lhes doa como este a mim dói.

 

 

sábado, outubro 4

Para um jovem colega

1 – Disse alguém que "a cozinha italiana deve ter de tudo um pouco, mas esse pouco abundante." O mesmo vale para a leitura. Bom, péssimo, medíocre, banal, excepcional,, leia em abundância e de tudo: Camilo, Eça, Vieira, Guimarães Rosa, Bocage, folhetos medicinais, instruções para uso, anúncios, necrologias, nomes de ruas... No meu começo, aí pelos oito nove anos, foi-me de grande utilidade e deixou impressão duradoura a leitura do Regulamento Geral das Alfândegas (1928). 

2 – Entre em transe. Se lhe parecer custoso tente atingir aquele estado segundo em que não se ouve a família, nem a televisão, nem os vizinhos, e em simultâneo tente esquecer. Esqueça a hipoteca e o talento de A., a fama de B., o êxito daquela besta que escreve mal e vende dezenas de milhar. Esqueça. Seja firme, esqueça, e escreva . Desânimo? Dor de cabeça? Náusea? Medo? Continue a escrever.

3 – Pegue num texto alheio, em português, de preferência moderno. Surpreenda-se com o uso e abuso da palavra "não". Encontrará o ditongo repetido em substantivos e formas verbais. Leia em voz alta e o mais provável é que lhe perguntem porque está a ladrar.

 4 – Evite acessos poéticos de raiva e desespero. Guarde tudo o que escreve, mesmo o que lhe parece péssimo. Deixe passar meses. Releia. Constate que o seu juízo crítico não é aquele instrumento infalível de que tanto se orgulhava. Aqui e ali encontrará uma bela frase, uma descrição realmente poética, um bom diálogo.

Isto, porém, aplica-se somente ao texto acabado. Na feitura a regra é o corte sem piedade. Leia e releia, corte e volte a cortar. Por contas que em tempos fiz, em cada página que me parece pronta há três ou quatro de cortes, e quando a vejo impressa ainda descubro o que devia ter cortado.

 5 – Diálogos. Arte bicuda, calcanhar de Aquiles de muita prosa. Há escritores que como que perdem a cabeça ao pôr os seus personagens a dialogar. São surdos, ignoram como se fala à sua volta, ou querem fazer chique e rebuscado, na ilusão de que na literatura, como em Cascais, tudo é gente da alta falando em mais-que-perfeitos e conjuntivos.

Ainda é delicado dizer estas coisas, mas já agora que toco em classes, os diálogos mais desastrados da literatura portuguesa encontram-se nos romances neo-realistas. O povo, ali, fala no tom dos cardeais de Júlio Dantas.

6 – Na boa prosa há ritmo, melodia, pausas, há crescendi e fortissimi (não se deve abusar destas mostras de saber, mas uma vez não são vezes), mal vai àquele que escreve ficção sem ser dotado de bom ouvido musical. Nunca se dará conta do mal que escreve, como ignora que canta desafinado.

7 – O leitor merece incondicionalmente o seu respeito. O leitor partilha consigo intimidades e momentos de emoção que esconde ou nega mesmo a outros que lhe estão próximos. Tenha isso em mente, ofereça-lhe o que tem de melhor.

8 – Não perca tempo a invejar a produção de fulano que, como se andasse grávido, todos os nove meses dá nascença a um livro. Escrever é paixão, fado, impulso que vem do mais fundo. De vez em quando traz benefícios, mas não é comércio.

9 – Tenha presente: um escritor não é um saltimbanco. Por respeito a si próprio evite dar-se em espectáculo. Mesmo que tenha seguido um curso de dicção – seguiu? - recuse  ler prosa sua num palco. Os sádicos adoram, o resto do público aprecia pouco e isso nota-se na moleza das palmas.

10 – Dedicatórias impressas na primeira página? Nunca. Os amores morrem, as amizades perdem-se, chega sempre o tempo em que é doloroso o confronto com as palavras que exprimem sentimentos defuntos.

Continuo grato ao amigo a quem um dia quis dedicar um romance e ele, lendo as duas linhas da minha admiração, resmungou: "Isso é prosa do presidente da junta a dar boas-vindas ao presidente da câmara. Não ponhas."

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PS. Bem prega frei Tomás: eram quinze, mas no texto acima ainda nove vezes se repete o fatal "não".

 

quarta-feira, outubro 1

O "Meia-Foda"

 

Quem o não conhece e ouve falar dele, engana-se se julgar que a alcunha do Rui B. Gomes, “ O Meia-Foda”, tem a ver com uma diminuta estatura ou debilidade da sua descendência, pois nesse particular é todo o contrário: o Gomes olha-os do alto do seu metro e oitenta e dois, e ambos os rapazes que gerou vão pelo mesmo caminho.

A alcunha puseram-lha na universidade, onde estudou Astronomia, mas não devido a qualquer fraqueza das suas capacidades intelectuais, pois nelas era bastante acima do mediano, sim pelo tique de parecer incapaz de completar um raciocínio ou expor um assunto com princípio, meio e fim. Desse modo dá por vezes uma irritante impressão de arrogância, felizmente imerecida, mas da alcunha nunca mais se livrou, e é por ela que os colegas de então e os amigos ainda se lhe referem.

Embora nas últimas décadas tenham sido grandes, por vezes radicais, as mudanças dos usos e costumes, muito há que continua igual desde que os humanos descobriram a fala, e com ela as possibilidades da bisbilhotice, que hoje em dia, graças aos meios de comunicação instantânea, pode ir da gentileza à mais odiosa maldade.

Assim aconteceu que num chat em que por acaso acabara de entrar, a Rita, dedicada e fiel esposa há duas décadas, paralisou ao ouvir a Marta referir-se ao Rui como “O Meia-Foda”.

O choque foi de tal ordem que lhe cortou a respiração, incapaz também de parar as tremuras que lhe sacudiam o corpo, a cabeça a fervilhar de recordações, temores que de súbito pareciam fazer sentido, pois de facto não era o marido romântico com que sonhara. Além de que na cama, embora fosse pouca a sua experiência de solteira, nunca ele se tinha mostrado amante fogoso, antes o avesso, o que pelos jeitos outras sabiam, daí a alcunha. Uma vergonha! E de certeza era assim que falavam dela: a Rita, a mulher do “Meia-Foda!”