terça-feira, fevereiro 4

As chamas do Inferno

 

No dia 1 se Novembro de 1755 Lisboa é arrasada por um terramoto memorável. Numa questão de horas há ali uma hecatombe de dez a quinze mil mortos, e o povo, aterrado, vai aceitar sem discussão as imposições férreas que lhe dita aquele verdadeiro tirano. Esclarecido, diga-se de passagem. Primeiro põe a cidade em ordem, acalma os espíritos, dá de comer aos esfomeados e aos pedintes. Mas não pára. Defensor do que então se chamava, como hoje, os bons costumes, logo uns meses depois manda abrir devassa contra os concubinatos. A seguir reforma o comércio e faz tremer a nobreza, mandando executar alguns dos seus membros, sob a alegação de atentarem contra a vida do rei. Ataca os poderosos jesuítas, de quem tinha sido discípulo, e consegue a sua expulsão. Roma protesta, e Pombal expulsa  núncio. É uma envergadura que raro se encontra nos estadistas portugueses, mas poucos são os que aplaudem: a maioria treme.

Na Lisboa arrasada manda construir  uma cidade nova, ainda hoje patente nas ruas rectangulares da Baixa e na magnífica praça do Terreiro do Paço.

Com a partida dos jesuítas, monopolistas da educação, Pombal não perde tempo e faz novas escolas, criando a instrução primária e secundária. Reforma a odiosa Inquisição e quase lhe dá o golpe de misericórdia. Denunciando o Tratado de Methuen, que tanto nos fazia depender da Inglaterra, procura ao mesmo tempo impulsionar o comércio, a agricultura e a indústria, para que dependêssemos menos do estrangeiro.

As rendas que ainda vinham do Brasil davam para tudo, mas o Portugal de então "era um falso Portugal de importação, nas ideias, nas instituições, nos homens". Era do estrangeiro que nos vinham os sábios, os professores, os operários, os industriais. Com o dinheiro do Brasil o marquês de Pombal construía "uma nação de estufa, com gente de fora" e, por isso mesmo, a sua grandiosa empresa estava destinada a falhar. Foi um interregno, deixou alguns frutos e uma prosperidade modesta.

No dia da morte do rei o destino de Pombal encontrava-se selado, e  quando se apresentou no palácio foi-lhe dito que nada ali tinha a fazer.

Afastado quem tão importunamente lhes viera interromper jogos e devoções, o clero e a nobreza retomam os ímpetos antigos, enquanto no trono se senta uma rainha que morrerá louca, e cujo espírito já então poucas provas de clareza dava, além de ser "a maior beata que a educação jesuíta criara no decurso de quase três séculos".

A corrupção, a venda descarada dos lugares públicos, a asquerosa e dissoluta proeminência dos frades, todas as chagas do passado eram de novo moeda corrente, os conventos voltavam a ser um meio caminho entre o boudoir e o bordel.

É nesse reinado que se torna célebre o marquês de Marialva cujo nome iria ficar ligado para sempre a qualidades que, supostamente portuguesas, fazem do homem um rei da criação, que atinge o esplendor último ao dedicar-se exclusivamente aos cavalos, aos touros e às meretrizes.

No pátio das casas fidalgas cantava-se o fado, melodia modorrenta e doentia herdada, dizem alguns, dos cantares árabes. Nos salões imperavam as modinhas brasileiras, sensuais, cantadas pelos pretos e mulatos com requebros libidinosos. Na capela da rainha cantavam os castrati, acompanhados por dois anões tocadores de harpa. E toda a Lisboa, fedorenta, colorida, cheia de gente estranha, pesada de imundície, parecia "um acampamento do Grão-Mogol das Índias no grande dia da procissão do Corpus-Christi, com as casas vestidas de damascos e tapeçarias, as varandas cobertas de colchas opulentas, as ruas toldadas de seda e tapetadas de areia e buxo, com o cortejo de padres vermelhos e brancos, de frades e fidalgos, plumas, luzes, pálios, leques, incensos e tropa, salvas de artilharia e foguetes, mendigos leprosos e bandos de crianças com sarna, correndo por meio do povo".

O impulso dado pelo marquês de Pombal para o fomento da economia do reino tinha esmorecido, e os ministros da rainha pouco mais fizeram para além da fundação da Academia das Ciências – o que era humorístico num país sem cientistas – e uma fábrica de cordas.

Ficaram dessa época anedotas sem conto sobre a estupidez dos governantes e dos funcionários do governo, algumas burlescas, outras dolorosamente assinalando a tragédia do povo anónimo.

Tinham-se projectado estradas "e o primeiro cuidado foi lavrar em Lisboa colunas monumentais para marcar as léguas. Cada marco tinha um relógio de sol; mas como, às vezes, a légua acabava à sombra, debatia-se qual era preferível: errar a medição ou ficar o relógio de sol sem luz. Por se não chegar a um resultado, deixaram de fazer-se as estradas".

Este exemplo escolhido ao acaso entre muitos outros, não é, infelizmente, específico da época. Antes e depois a vida da nação portuguesa abunda neles, tomando por vezes a aparência desmedida dum teatro bufo. O que a tem salvado do precipício tem sido, talvez, o bom senso colectivo dum povo que foi acumulando sabedoria através de oito séculos de opressão e miséria.

Miséria tão grande que, no reinado que agora nos ocupa, os asilos então estabelecidos perto da fronteira vendiam as crianças aos espanhóis; tantos eram os órfãos, os enjeitados e filhos naturais, que não havia lugar nem comida para todos.

Minada pela religião, a rainha "doida ninfomânica, de saias erguidas no meio da rua e a dizer obscenidades no meio das aspersões dos padres jesuítas, vê abantesmas por toda a parte, sente que as chamas do Inferno lhe queimam o quarto, sopradas pelo vento do Anti-Cristo, e enlouquece.

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In Portugal, a flor e a foice

 

 

domingo, fevereiro 2

À espera do fim nos C.I.

Desde há algum tempo vejo-me, involuntariamente, a pensar na morte. Aliás, sem relação com o caso do vizinho, que dias atrás, ao querer entrar em casa empurrou a porta, e caiu redondo na soleira. Esse pensamento também não é motivado pela proximidade da minha, pois os anos que levo tornam supérflua a imaginação de um futuro. Aliás, raro me deito sem o misto de curiosidade e temor de como, ou onde será o meu acordar.

Assim, pois, não é a minha ou do alheio a morte que me preocupa, e por vezes tira o sono, mas o desaire  de Portugal, que à semelhança de um estroina de fraca e destravada cabeça, esbanja o que tem, o que não tem, o que lhe emprestam, e até o que por caridade lhe dão.

Não diminui o meu espanto o facto de conhecer o seu passado, sobretudo a tontura que lhe causou ter descoberto a rota para a Índia e, pobrezinho à ida, voltar a Lisboa tal um marajá, com sedas, ouro, diamantes, e a ilusão de que aquilo era tanto que daria para sempre.

Não deu, pronto teve fim, e quando o Criador, apiedado, repetiu a generosidade com o maná do Brasil, logo ele se apressou a mais uma vez esbanjar tudo. Em 1755, irritado, o Altíssimo quase demoliu Lisboa, condenando o infeliz a três séculos de pobreza.

O perdão veio em 1986, e desde esse ano o chuveiro de milhares de milhões põe na sombra a riqueza antiga, mas pelos jeitos confere que burro velho não toma andadura. Estradas fez algumas, idem hospitais e escolas, mas o realizado muitas vezes falha, funciona mal, ou tem um projecto que está a ser estudado.

Triste e mais que certo, dentro em pouco o maná vai findar, e nenhum futuro mandante terá oportunidade de repetir a pergunta feita pelo “ Manhoso” à gerente dos euros: “Então já posso ir ao banco levantar o cheque?”