sábado, novembro 8

Viajantes

 

Viram mundo. Provam-no com relatos, fotografias, vídeos, por vezes até uma dúzia de linhas de gazeta. Viram mundo, viajaram muito, foram aos longes onde tudo é exótico, mas só defeito de nascença ou desarranjo da cabeça explicará tanta boçalidade.

Comentam o que viram com um entusiasmo que quer passar por original e é apenas um triste refogado. Conhecem gente. Mencionam datas, casos. Viveram tantas situações em simultâneo que se diria terem herdado a ubiquidade antonina. São simples. Arrepanhando os lábios ou de queixo descaído, sofrem da pedantice triste dos que papagueiam fiapos de conhecimento mal atado. Têm opiniões. Aborrecem. Viram mundo, mas ao ouvi-los pergunta-se a gente em que desertos se terão perdido.

 

quinta-feira, novembro 6

Saber da vida

 

Nesta época de gentileza e bondade, escreveu alguém a felicitar-me, afirmando que sei muito da vida.

Assim fosse, assim não é. A muita idade e as várias andanças, incluindo nestas um ou outro momento de euforia, os pontapés do Destino, os dos semelhantes, e os trambolhões que por descuido ou tolice se dão, nada ajudam a compreender da vida. Impedem que se repita um ou outro transtorno, mas a vida, feliz ou infelizmente, é caminho para o qual não há mapa nem bússola.

Vamos andando, paramos aqui e ali, derrapamos nas curvas, caímos na valeta, fazemos o possível por ir direitos e a direito. Depois, cansaço ou susto de ver a meta perto, abrandamos o passo, criando nos que ainda vêm longe a ilusão de que conseguimos chegar até ali por sabedoria e esperteza.

Na verdade, porém, não escolhemos a rota, nem sequer caminhamos pelo próprio pé. Somos empurrados. A uns leva-nos a aragem, a outros o suão, muitos  aproveitam o vento içando velas, os desatinados enfrentam o ciclone.

Saber da vida? Nem sequer sabemos donde vem o vento ou quem o sopra.

 

sexta-feira, outubro 31

Sobre "Ernestina" - Júlia Costa

 

O silêncio tem nome, chama-se Ernestina. Viveu em Trás-os-Montes, mas podia ter vivido em qualquer aldeia onde o tempo se arrasta como uma mula velha e os homens falam pouco, mas mandam muito. Ernestina não é só a mãe de José Rentes de Carvalho, é a mãe do silêncio português. Aquele que se instala nas cozinhas, nas camas, nos olhos, aquele que não grita, mas que pode matar.

Ernestina não é heroína, é sobrevivente, e isso, à época, neste país, já é quase um milagre. Ela é metáfora da mulher que não teve tempo para ser mulher, da mãe que não pôde ser filha e da vida que não chegou a ser vivida. E o mais absurdo é que há milhares de Ernestinas por aí. Algumas ainda vivas, outras enterradas em silêncio, como se nunca tivessem existido.

J. Rentes de Carvalho. Ernestina

No seu livro, o autor não escreve uma biografia, escreve um exorcismo. Ernestina é a mulher que não teve direito a personagem, nem a enredo. Teve uma vida de espera, de ausência, de dor sem nome. E o silêncio, essa espécie de animal viscoso, foi-lhe fazendo companhia: sentava-se à mesa, dormia ao seu lado, entrava-lhe pelas paredes. Um silêncio que não consola, mas que sufoca.

Mas há algo de profundamente poético nesta dor. Uma beleza áspera, como pedra molhada. Porque o silêncio, quando bem escutado, revela mais do que mil discursos. E este livro escuta, escuta o que nunca foi dito. Escuta o que foi calado por vergonha, por hábito ou por medo. Escuta o que Portugal, talvez ainda não tenha aprendido a dizer.

Rentes de Carvalho não nos oferece redenção, oferece-nos uma crónica da invisibilidade, e fá-lo com uma escrita carregada de palavras antigas e termos em desuso e que parece ter sido lavada com vinagre: ácida, limpa, sem perfume. Cada frase é uma bofetada e cada memória, uma ferida que não cicatrizou. Não há floreios, nem piedade, há verdade, e essa verdade dói porque nos obriga a confrontar o que preferimos esquecer: que a nossa história está cheia de Ernestinas que a literatura, tantas vezes, ignorou.

Este livro é um ato político, não no sentido partidário, mas no sentido mais profundo da palavra, é uma tomada de posição contra o esquecimento, e é também uma provocação: será que sabemos realmente quem foram as mulheres que nos criaram? Ou limitamo-nos a repetir clichés sobre mães abnegadas e esposas discretas?

Ler Ernestina foi resistir ao esquecimento e à indiferença. Foi um convite à escuta, à empatia e à memória, e foi também um alerta: há vidas que só existem se forem contadas e há autores, como o José, o filho da Ernestina e neto da Elisa, para quem escrever é salvar, sendo esses os que nos mostram que, às vezes, escrever sobre quem nunca teve voz é um ato de amor.

 

Júlia Costa é cristã na essência, católica por tradição. Ligada à paróquia da Amadora, na Pastoral Juvenil e na Promoção da Comunidade. Mãe de uma filha, avó de três netos. Profissionalmente na área da contabilidade, embrenhada em números, mas desde sempre fascinada pela palavra.

 


quinta-feira, outubro 30

Bolaño who?

 

 

Vidas atrás escrevi um guia de Portugal que, entre algumas boas qualidades, tinha a má de ser relativamente pesado, e daí incómodo para quem com ele ia de viagem.

Aproveitando o acaso de um encontro no supermercado, uma leitora anónima desfez-se em elogios ao meu trabalho, e já ia nas despedidas quando lhe ocorreu queixar-se do quilo e pico do calhamaço.

Sorri a concordar, mas logo se me foi a boa disposição quando ela me pôs ao corrente da solução que encontrara para o desconforto do peso: ia simplesmente cortando as folhas correspondentes aos locais que tencionava visitar.

Lá mantive o sorriso, e até acrescentei que achava engenhosa a ideia, mas por dentro senti-me mais que ofendido. A pouca vergonha! Aquilo era o meu livro! Aquilo eram quase quatro anos de trabalho, muitos milhares de quilómetros pelas más estradas dos anos 80, um estômago danificado por desagradáveis almoços, a coluna entortada por péssimos colchões. E atrevia-se ela ao sacrilégio de lhe arrancar-lhe as folhas!

Desde há um tempo que de várias partes me moem a paciência com Bolaño. Que “ o 2666 é um livro e tanto”, que passei há muito a idade de ter opiniões infundadas, que é mesmo o primeiro grande romance deste século, etc. De modo que ontem fui à livraria, comprei a tradução holandesa e de volta a casa, estranhando que as forças me faltassem, pus o livro na balança. Um quilo, quinhentas e cinquenta gramas; mil e setenta páginas; seis centímetros de lombada.

Ora acontece que leitura a sério, para mim, é feita na cama e no silêncio da noite, o que com um livro destes não é fazível nem confortável, nem aconselhável, pois por menos se arranja uma hérnia no pescoço. O calhamaço necessita do apoio de uma mesa, e eu não gosto de ler livros à mesa, além de que logo me doem as costas.

Foi então que me veio a recordação da leitora anónima e a de uma caixa com bisturis que comprei com outra finalidade e agora faz jeito.

Já pedi desculpa a Bolaño, daqui a nada vou cortar o “2666” nas cinco partes que o compõem.

domingo, outubro 26

Exercícios

Seria excessivo deitar o manto da caridade sobre a maluquice alheia. Não é preciso tanto. Ao fim e ao cabo para quase tudo há desculpa, defeitos todos temos, uma pitada de compreensão também ajuda. Mesmo assim, porém, basta às vezes um detalhe mínimo e lá se vão as boas intenções.

Casal burguês, idosos a aparentar juventude nos hábitos, no vestuário, nas paragens exóticas das suas férias, na vontade de se manterem saudáveis com a ajuda de verduras, yoga, natação e ginástica matinal. Têm assinatura para os concertos, para o teatro, vão aos museus, não perdem exposição nenhuma daquelas que o jornal diz que se devem visitar. De vez em quando lêem um livro. Muito de vez em quando, nostalgia dos anos 70 e da juventude perdida, arriscam uma discreta troca de pares.

Até aqui vulgar de Lineu, como se dizia antigamente, tudo do mais mediano, previsível, fácil de catalogar. Dá-se porém o caso de que a estes dois, que nem sequer sabem que existe um Almanach de Gotha, se lhes meteu na cabeça que têm sangue azul. Que são nobres. Melhores. Superiores. Cavando genealogias encontraram na dela, em mil setecentos e tantos, uma bastarda de conde, na dele um remoto barão.

Um raio que os parta! Entre os exercícios de yoga e a ginástica matinal, ocupam-se agora a passar a esponja sobre três séculos de gerações de que se envergonham.