quarta-feira, setembro 17

Bons, mas inúteis conselhos

 

1 – Disse alguém que "a cozinha italiana deve ter de tudo um pouco, mas esse pouco abundante." O mesmo vale para a leitura. Bom, péssimo, medíocre, banal, excepcional,, leia em abundância e de tudo: Camilo, Eça, Vieira, Guimarães Rosa, Bocage, folhetos medicinais, instruções para uso, anúncios, necrologias, nomes de ruas... No meu começo, aí pelos oito nove anos, foi-me de grande utilidade e deixou impressão duradoura a leitura do Regulamento Geral das Alfândegas (1928).

 2 – Entre em transe. Se lhe parecer custoso tente atingir aquele estado segundo em que não se ouve a família, nem a televisão, nem os vizinhos, e em simultâneo tente esquecer. Esqueça a hipoteca e o talento de A., a fama de B., o êxito daquela besta que escreve mal e vende dezenas de milhar. Esqueça. Seja firme, esqueça, e escreva . Desânimo? Dor de cabeça? Náusea? Medo? Continue a escrever.

3 – Pegue num texto alheio, em português, de preferência moderno. Surpreenda-se com o uso e abuso da palavra "não". Encontrará o ditongo repetido em substantivos e formas verbais. Leia em voz alta e o mais provável é que lhe perguntem porque está a ladrar.

4 – Evite acessos poéticos de raiva e desespero. Guarde tudo o que escreve, mesmo o que lhe parece péssimo. Deixe passar meses. Releia. Constate que o seu juízo crítico não é aquele instrumento infalível de que tanto se orgulhava. Aqui e ali encontrará uma bela frase, uma descrição realmente poética, um bom diálogo.

Isto, porém, aplica-se somente ao texto acabado. Na feitura a regra é o corte sem piedade. Leia e releia, corte e volte a cortar. Por contas que em tempos fiz, em cada página que me parece pronta há três ou quatro de cortes, e quando a vejo impressa ainda descubro o que devia ter cortado.

5 – Diálogos. Arte bicuda, calcanhar de Aquiles de muita prosa. Há escritores que como que perdem a cabeça ao pôr os seus personagens a dialogar. São surdos, ignoram como se fala à sua volta, ou querem fazer chique e rebuscado, na ilusão de que na literatura, como em Cascais, tudo é gente da alta falando em mais-que-perfeitos e conjuntivos.

Ainda é delicado dizer estas coisas, mas já agora que toco em classes, os diálogos mais desastrados da literatura portuguesa encontram-se nos romances neo-realistas. O povo, ali, fala no tom dos cardeais de Júlio Dantas.

6 – Na boa prosa há ritmo, melodia, pausas, há crescendi e fortissimi (não se deve abusar destas mostras de saber, mas uma vez não são vezes), mal vai àquele que escreve ficção sem ser dotado de bom ouvido musical. Nunca se dará conta do mal que escreve, como ignora que canta desafinado.

7 – O leitor merece incondicionalmente o seu respeito. O leitor partilha consigo intimidades e momentos de emoção que esconde ou nega mesmo a outros que lhe estão próximos. Tenha isso em mente, ofereça-lhe o que tem de melhor.

8 – Não perca tempo a invejar a produção de fulano que, como se andasse grávido, todos os nove meses dá nascença a um livro. Escrever é paixão, fado, impulso que vem do mais fundo. De vez em quando traz benefícios, mas não é comércio.

9 – Tenha presente: um escritor não é um saltimbanco. Por respeito a si próprio evite dar-se em espectáculo. Mesmo que tenha seguido um curso de dicção – seguiu? - recuse  ler prosa sua num palco. Os sádicos adoram, o resto do público aprecia pouco e isso nota-se na moleza das palmas.

10 – Dedicatórias impressas na primeira página? Nunca. Os amores morrem, as amizades perdem-se, chega sempre o tempo em que é doloroso o confronto com as palavras que exprimem sentimentos defuntos.

Continuo grato ao amigo a quem um dia quis dedicar um romance e ele, lendo as duas linhas da minha admiração, resmungou: "Isso é prosa do presidente da junta a dar boas-vindas ao presidente da câmara. Não ponhas."

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PS. Bem prega frei Tomás: eram quinze, mas no texto acima ainda nove vezes se repete o fatal "não".

 

terça-feira, setembro 16

A pontada

 

 

- Ora esta! - abanava-se com o jornal, a outra mão a segurar a barriga.

Pararam à entrada porque ela não encontrava a chave, e afinal era ele que a tinha no bolso, guardada sem pensar, ao sair do carro.

- Vais ver que foi da comida. Julgas que podes abusar...

A frescura da escada. Deixou a mulher ir adiante, frenética, sempre a farejar gás, apavorada com o ladrão que um dia havia de arrombar a janela das traseiras para lhes roubar as coisas, o ouro, o quadro de Columbano.

Tinham ido à Caparica despedir-se da filha e na volta começara a sentir aquela ânsia, os joelhos fracos, um nó nos intestinos, tivera de se abaixar na valeta, antes da ponte, sem poder mais, a impressão de que rebentava.

Ao entrar na sala pousou o chapéu, desabotoou-se, tacteou o peito, o ventre, à espera da pontada, dum alarme, os dedos espetados contra o fígado. Coisa esquisita! Um mal estar vago. Do calor. Pela certa era do calor.

- Ou nervos - disse a mulher, da cozinha, como se lhe pudesse ler o pensamento.

- Que nervos? Eu não disse nada!

- Mas são nervos. Podes ter a certeza.

Esfregou as mãos suadas no lenço e, com cuidado, procurando apoio, sentou-se no divã.

- Vê se trouxeram os bilhetes.

Quis repontar porque ela, de costas, a desapertar as ligas, não lhe tinha respondido; mas de repente lembrou-se que na sexta-feira ele próprio tinha ido à agência, antes de falar com o Gomes, e depois os tinha guardado na pasta.

- Deita-te um bocado - sugeriu ela.

Acenou que não, aborrecido, a pensar que os francos a dezassete não eram baratos. E o safardana a dizer que não se arranja­va, que era impossível... Os amigos da gente! Ainda por cima a história com as facturas. Mas isso ficava para a volta, não queria mais incómodos.

- Amanhã saímos cedinho.

- Ó homem! O avião é ao meio-dia!

- Vamos a horas. O António que esteja aqui às nove e meia. Ou chama-se um táxi, ainda é melhor.

O genro tinha prometido vir buscá-los às dez, dez e um quarto, que de casa ao aeroporto era um quarto de hora, ainda ficavam com tempo e retempo. E a filha a dar-lhe razão!

- Telefona-lhe.

- Daqui a nada. Agora estão na praia.

A ver se a birra lhe passava, o aflito! Não é de estranhar que tenha cólicas, sempre como uma pilha. O médico bem avisa que em certas idades... Deus nos livre!...

- Que idades?

Atrapalhada, porque não se dera conta de falar alto, ele azedo a imitá-la:

- O médico bem avisa!

- Jesus! Estava a pensar...

- A pensar morreu um burro - interrompeu-se para beber de um trago o copo com bicarbonato, continuando logo: - Não me estejas com adiamentos, pega no telefone.

A fingir que se recostava, a disfarçar, para que ela não reparasse - Ai! - a dor parecia uma faca que se lhe atravessava nas tripas, na bexiga, sabia lá! A fisgada tirava-lhe o ar, até parecia que com o bicarbonato piorara.

- Quando é que compraste este frasco?

- Que frasco?

- O do bicarbonato.

- O mês passado.

Desatou aos gritos, como se ela o tivesse querido envenenar:- Claro que está estragado! Com a humidade o bicarbonato estraga-se e vocês deixam tudo por arrolhar! Vai comprar outro.

- Ao domingo?

- A farmácia está aberta.

Quando ela saísse telefonava à Amélia, porque com a barriga assim não lhe podia ir dizer adeus. Que caraças! E tanto lhe prometi! Tentou espreitar para o quarto, a ver se a mulher se vestia, desconfiado do silêncio.

- Então?

- Bebe - ela estava ali ao lado, com um bule de chá do ervanário, não tinha dado conta de a ouvir na cozinha.

- Não quero.

Mas ela pôs-lhe a chávena na mão, ajeitou as almofadas, esperou que bebesse.

- E agora não te mexas - disse, ao mesmo tempo que do bolso do roupão tirava um crucifixo e o frasquinho de água benta. - Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo.

- Tu ainda acreditas nessas coisas?

Antigamente dizia "nessas merdices", mas ela um dia, muito séria, tinha-lhe pedido que se não acreditava, ao menos tivesse respeito.

 

No café tinha-se feito um silêncio de troça, mas fingiu não reparar e continuou:

- A mulher tem as suas ideias, exactamente como nós. Tem os seus direitos. Quando a sociedade um dia se basear no respeito mútuo, sem diferenças, com a igualdade absoluta dos sexos...

O Gomes rebentara numa gargalhada, arrastando os outros:

- Ó Lucena! Então quem é que veste as calças?

Das outras mesa perguntavam, queriam saber, e ele estendeu as mãos para que se calassem:

- Eu explico. Nos países mais avançados a mulher é em todos os pontos igual ao homem. E se...

- Mas isto é Portugal, filho! Porque é que as suecas cá vêm no Verão? E as alemãs, hein? E as inglesas?

Entre amargo e furioso: - Dás licença? Se nós um dia chegarmos, como eu sinceramente espero...

Mas com a balbúrdia era impossível continuar, fez um gesto irritado e sentou-se, bebeu o café com aguardente de um trago, recusando ouvir o que lhe diziam.

Mais tarde, já o grupo se tinha separado, ficou um momento no passeio com o Gouveia:

- É ou não é? Outro exemplo: sou liberal, republicano, às vezes até socialista. Comigo, pois, nada de beatices. Mas admito, tenho de admitir, as crenças de cada um. A fé. Não tenho simpatia pela Igreja? Pouco importa. A Igreja existe, tem os seus santos, os seus fiéis. Respeito, que é o meu dever. A minha mulher acredita em certas coisas? Respeito...

- Ó Lucena, você desculpe. Vem ali o autocarro.

Tempo perdido. Eram uns brutinhos. Não faziam a mínima ideia, não liam um livro, não abriam um jornal.

 

Nessa noite, deitado com a Amélia, tinha decidido: faria uma grande viagem. Iria a Berlim, à Suécia, a Moscovo. Quando voltasse haviam de se borrar de inveja, haviam de escutá-lo. O Lucena andou por lá, o Lucena viu, o Lucena sabe...

Amélia, fatigada, revirava os olhos, ele a querer mais, mais, outra vez, incansável. "Jesus! Ainda acontece alguma!" Num desespero que lhe vinha da raiva. Esquecido da hérnia, dos anos, dos avisos do médico.

- Ai senhor Jorge! Olhe que já não posso!

Era a primeira vez que se sentia assim desde que a pusera por conta e, consolado, acariciava-lhe o ventre, ela a segurar-lhe a mão com medo das cócegas:

- Esteja quieto. Descanse.

A ver-se já embarcado, a acenar, os amigos de boca aberta. Mas seria possível? Não haveria encrencas? E os vistos?

Logo no dia seguinte tinha ido à agência de viagens: tudo dependia do passaporte. Fosse à Câmara. Claro que tinha direito a passaporte, mas tudo dependia da Polícia. Na Polícia o funcionário sorriu:

- Sim senhor, claro, porque não? Dantes havia umas restriçõezitas para certas pessoas. Mas sempre foi possível. Faça favor de assinar aqui.

- E eu a julgar!...

- Muitas vezes o desentendimentos vem daí. As pessoas não perguntam, não se informam, acreditam em boatos. Depois...

- Como é para a Rússia sempre pensei...

- Que tem a Rússia? O senhor vai a negócios, vai passear, é o seu direito. Faça favor de assinar outra vez aqui. E aqui.

 

Em casa foi um alarme, a mulher disse logo que não, as viagens só davam azar, se já se tinha esquecido da vez que tinham ido a Badajoz e ele, ao escorregar na rua, desmanchara um braço.

- Ó mulher! Que tem uma coisa a ver com a outra?

O genro e a filha concordavam, era uma viagem muito bonita, valia a pena, quem lhes dera!...

Ela, porém, não cedia: - E os aborrecimentos com as alfândegas, as malas abertas?

Pacientemente foram-na convencendo. Estava tudo mudado, isso já não acontecia, havia mais liberdade. Contou o que se tinha passado na Polícia, inventando, dizendo que o próprio director o tinha recebido quando soube que ele era o Lucena das Pratas, o da ourivesaria.

- E de avião é uma questão de horas.

Bufou contra a estupidez do genro, mas não adiantava, o mal estava feito, a mulher já agarrada à desculpa:

- De avião? No ar? Nem à força! Até parece que vocês me querem mal!

A filha impacientou-se e com um gesto brusco entornou o copo, riram-se muito quando a cadelinha deitou a fugir, assustad­a, o vinho a escorrer-lhe do lombo.

- Ó mãe! Daqui à Rússia de comboio é uma semana!

- Aonde? À Rússia?

Foi o fim. Ele tinha adoçado, que iam à Suécia, iam a Berlim, passavam primeiro por Paris. Quando já estivessem no avião é que lho dizia. Ou antes, talvez, preparando-a com muito jeito. "Damos um salto a Moscovo. Para ver." Mas estava tudo estragado.

- Com vocês não se pode contar! Pedi segredo! Era uma surpresa! - traído, batia na mesa com vontade de escavacar tudo.

Evitavam olhá-lo, a ver se o génio lhe passava e a mulher, sufocada de choro, fazia gestos para que ele acalmasse.

- Jorge! Jorge! Tantas vezes te pedi! Rezo tanto para que não te metas na política!

- Mas o que é que tem...

- Lembra-te do Sousa! E nem era verdade. Denunciaram-no.

- Ó Micas! Mas isto não tem nada a ver com a política! Pois se te digo que a própria Polícia, o director... Vamos ver os museus, os monumentos!

Ela, porém, não queria ouvi-lo. Enxugou os olhos, assoou-se, a abanar a cabeça que não, que não, fosse quem quisesse, levasse a filha, o genro - se tinham tanta vontade e achavam tão lindo! - comigo não contes.

Ficaram em silêncio, entristecidos, mas a Rosa tinha muitos anos de casa e, compreensiva, sabia aparecer no momento justo, espreitou à porta da sala a perguntar se os senhores queriam mais café.

- Nós não - disse o rapaz levantando-se. - Faz-se tarde para o cinema.

Apertou a mão do genro, beijou a filha, e enquanto a mulher os acompanhava bebeu o café, resolvido a não tocar mais no assunto. Era dar tempo ao tempo. Quando ela retornou estava a pôr a gravata.

- Onde é que vais a esta hora?

- Arejar.

Nessa noite tinha sentido a primeira pontada.

 

Com o correr dos meses a mulher abrandara, cedendo às razões, aceitando o avião, a ida a Berlim. Mas mais longe, não:

- Faço-te a vontade, não quero que vás sozinho por aí fora. Mas é com muito sacrifício.

Ele próprio, porém, tinha perdido o entusiasmo. Na noite da zanga tinha ido visitar a Amélia e, quando lho contou, também ela se pusera com choradeiras, temores, que se fosse para tão longe e lhe acontecesse uma desgraça nunca mais o voltava a ver, e os jornais diziam muito mal dos russos, uma gente que não respeitava nada, muito cruel.

- O meu irmão andou na guerra de Espanha e conta cada coisa!...

Enfadado mandara-a calar e ela, borralheira, abraçou-o, coçou-lhe a cabeça para que adormecesse.

 

No café soube-se logo: o Lucena ia viajar. Escutavam-no, uns invejosos, outros compenetrados, não se lhes ouvia um aparte.

- Só os imbecis confundem respeito com fraqueza e não compreendem que um acto, digamos, ajoelhar, tirar o chapéu diante de uma igreja, ao passar um enterro, é idêntico... É a mesma coisa que saudar a bandeira ou cantar o hino! Acto cívico? Acto religioso? Que importa? O respeito tem de ser o mesmo e aí, para muitos, é que está o dói! Não vêem mais que a ponta do próprio nariz. Mas se isto amanhã...

Alguém disse "Chut!" e olharam em volta, como se houvesse perigo. Falou-se doutra coisa.

- Quando é a partida?

- Para a semana.

- Então até às Rússias, hein?

- Não. Eu queria, mas a patroa, coitada, encheu-se de medo. E tem razão. Aquilo anda mau. Noutra altura, talvez. Ficamos por Paris.

- Dizem que em Paris é que se come, Lucena. E então cada gaja!...

 

- ...bem aventurado São Borba, São Gonçalo, São Tadeu bispo, protector dos aflitos.

- Ó Micas, as tuas mãos estão como gelo!

Ela entornou um pouco de água benta sobre os dedos, tocou-lhe a fronte, os lábios, as faces: - Deus Nosso Senhor te tome na Sua santa guarda.

- Amanhã por esta hora já lá estamos e fartos de estar, mas se a dor continua...

- Abençoado seja o divino Santo António - disse ela, ao mesmo tempo que abria a gaveta do aparador.

- O que é isso? - perguntou ele ao ver o embrulho.

- É uma velinha. Promessa de há muito tempo. Já que vou à farmácia aproveito, passo primeiro pela igreja. Não demoro nada.

Ao vê-la sorrir, apressada, enterneceu-se, veio-lhe um arrependimento breve das noites de boémia, das amantes, de uma ou outra vez - antigamente, no princípio de casados - em que a tinha assustado com um par de tabefes, mais vento que outra coisa. Mulher sem igual. Um poço de bondade.

Levantou-se cauteloso quando a ouviu fechar a porta, a dor a mortificá-lo em surdina, ora nas pernas, ora na barriga, depois no lado.

Embora soubesse que a criada tinha o dia de folga, gritou primeiro no corredor "Rosa! Ó Rosa!" e só então pegou no telefone, logo impaciente porque a Amélia demorava a atender, já com suspeitas e ciúmes.

- Onde é que estavas?

- A ver a televisão.

- O que queres que te traga da viagem? Um perfume?

- O que quiser.

- Amanhã, quando chegar ao aeroporto, telefono-te outra vez.

Para não a descompor desligou sem se despedir, atirando com o aparelho, irritado com aquela voz desinteressada e áspera.

 

Provavelmente tinha passado pelo sono, porque se sentia regelado, hirto, um mau gosto na boca. Mas no momento em que quis erguer-se a dor envolveu-o de repente, causando-lhe uma visão estranha: de um ponto alto, perto do tecto, avistava o seu próprio corpo, sem poder dizer se tinha morrido ou sonhava um pesadelo.

 

sábado, setembro 13

Por Lisboa com Eça de Queiroz

 

Nascido na Póvoa do Varzim dos amores pecaminosos de uma jovem aristocrata com um juiz, e aí inscrito no Registo Civil como filho de pai conhecido e – caso raro, provavelmente único - de mãe incógnita, o grande escritor realista José Maria Eça de Queiroz (1845-1900) só em 1866, aos vinte e um anos, iria pela primeira vez a Lisboa.

            Entregue de ano para ano a amas, aos avôs, e a amigos da família, de forma a que a sua presença não obrigasse a revelações dolorosas que, eventualmente, poderiam causar dano à carreira do magistrado seu progenitor, o jovem Eça andou de um internato para outro, e cursou em Coimbra a Faculdade de Direito, tendo de Lisboa o mesmo conhecimento livresco e nebuloso que tinha de Paris, os focos culturais dos jovens portugueses do seu tempo.

            Instalado no quarto andar do nr. 26 do Rossio, onde os pais e os irmãos habitavam, e durante os seis anos em que aí, fora curtas ausência, ele próprio iria morar, Eça de Queiroz de tal forma absorveu a cidade que vemos presente em toda a sua obra, e nalguns dos seus romances, é deles parte essencial.

Dotado de um talento invulgar para as Letras, mordaz e elegante na ironia, precedido da fama que como estudante e boémio gozara em Coimbra, o círculo de amigos que criou em Lisboa viria a constituir a mais célebre das gerações literárias em Portugal.

            Com eles penetrou no âmago da vida da capital, travou conhecimento com as suas misérias e esplendores, e breve se lhe tornaram tão familiares as tabernas rascas e as casas de má nota do Bairro Alto e da Mouraria, como os cafés do Rossio e do Chiado, as vidas burguesas e os salões da aristocracia.

            Vestindo fatos brancos, quando a moda e o decoro exigiam o preto; de flor na lapela, para que o julgassem fútil; o monóculo entalado no olho direito, dando ao rosto um esgar sardónico, Eça de Queiroz apossou-se de Lisboa e amou-a, odiou-a, tornou-a ridícula, insultou-a, dissecou-lhe as muitas misérias e as poucas grandezas. Clamou por vezes contra ela com gritos de desespero, para que deixasse de ser a cidade apática e soturna que nesse tempo era. Fustigou-lhe o clero e os políticos, as pretensões da corte, a mesquinhice dos intelectuais, a sujidade das suas ruas, o descalabro dos monumentos.

            Curiosamente, e considerando-se ele próprio lisboeta de gema, foi em Havana e Newcastle, em Cardiff e em Paris, onde praticamente passaria o resto da sua vida, que Eça de Queiroz recriou a Lisboa da sua juventude.

A capital tinha-a ele impresso para sempre na sua alma e nos seus olhos. Andarilho impenitente, poucas ruas ou cantos da cidade continuariam a guardar  segredos para o jovem que, para melhor esconder o seu agudo sentido de observador, se disfarçava de janota e só parecia interessar-se pelo superficial.

Grande parte do enredo dos romances de Eça de Queiroz situa-se numa zona que inclui o centro da cidade, a Baixa com o Rossio, o Chiado e o Terreiro do Paço, mas passa também por Alfama e pela Mouraria, o Castelo de São Jorge, a Avenida da Liberdade (o troço desde a Praça dos Restauradores até à Praça da Alegria era então ocupado  pelo grande jardim do Passeio Público) e se estende ainda desde o Largo do Rato à Praça do Príncipe Real, o Jardim de São Pedro de Alcântara e o Bairro Alto.

Artur, um dos seus personagens provincianos[1] e provável alter-ego  chega pela primeira vez a Lisboa de madrugada, desce do comboio na estação de Santa Apolónia e toma uma caleche que o leva ao hotel: “Ia olhando avidamente as fachadas das casas, os cartazes nas esquinas, a prolongação das ruas… Teve um espanto ao ver de repente os arcos do Terreiro do Paço, o rio, mastreações de esquadras! Pela Rua da Prata, ia lendo avidamente as tabuletas. Quem viveria naquelas altas casas, cerradas ainda? Àquela hora, decerto, os jornalistas, as duquesas, dormiam, depois das agitações intelectuais e amorosas da noite… E uma felicidade exuberante encheu-lhe subitamente o peito.”

Artur hospeda-se no Hotel Espanhol, um estabelecimento de segunda categoria que havia então no nr. 156 da Rua da Prata. E ao anoitecer corre a ver o famoso Café Martinho, instalado defronte da Estação do Rossio  no prédio nr. 18 do Largo D. João da Câmara, onde actualmente funciona uma filial bancária.

Este café, “o espelho da cidade”, durou de 1846 a 1963 e era frequentado pelos intelectuais, os artistas e os políticos da época. Artur não se atreve a entrar, mas acha-o “esplêndido com a acumulação de chapéus altos entre os espelhos doirados, sob uma névoa de fumo de tabaco, no brouhaha contínuo das conversas.”

            Intimidado sobe até à Praça da Alegria e continua até à Praça do Príncipe Real, desce então até ao Jardim de São Pedro de Alcântara, onde se vai encostar às grades do miradouro. “A cidade cavava-se em baixo, no vale escuro, picado dos pontos de luz das janelas iluminadas e, na escuridão, os telhados, os edifícios, faziam um empastamento de sombras mais densas. Aquelas luzes, debaixo daqueles tectos, que fermentação de vida! Quantos amores, quantos mistérios, crimes talvez! Ali, jornalistas compunham artigos, oradores preparavam discursos, estadistas conferenciavam, mulheres aristocráticas, nas suas salas, falavam de amores e, nos pianos ricos, gemiam as cavatinas apaixonadas. Que grande, Lisboa!”

O Chiado, que de facto inclui a Rua do Carmo e a Rua Garrett e vai do Rossio até à Praça Luís de Camões, era então o centro nevrálgico da capital.

Segundo o romancista “o dever de um cidadão era subir e descer duas oun três vezes o Chiado,” acrescentando mais adiante: “o que um pequeno número de jornalistas, de políticos, de burgueses, de mundanos decide no Chiado que Portugal seja – é o que Portugal é.”

            O Chiado reunia então um número considerável de estabelecimentos  determinantes para a vida da cidade, e que Eça de Queiroz assiduamente frequentou. Alguns deles ainda existem, como a “Casa Havaneza” (Largo do Chiado 24), que era então a tabacaria chique de Lisboa e  ponto de encontro obrigatório para a elite da cidade. Hoje só tem uma, mas nesse tempo tinha seis portas, e estendia-se até à Rua Nova da Trindade.

            No nr. 100 da Rua Garrett, ocupado pela Livraria Sá da Costa, existia o importante Café Central, onde o escritor se reunia com os amigos e mais tarde faria dizer a um dos seus personagens que o linguado que lá se comia “parecia frito no céu e o (vinho de) Colares no céu engarrafado.”

            No nr. 108, o prédio do actual Hotel Borges, ficava nesse tempo o então esplendoroso Hotel Universal, palco importante no itinerário romanesco dos personagens queirozianos. O mesmo se pode dizer das Igrejas do Loreto[2] e dos Mártires, no lado oposto da rua, e da Igreja da Encarnação, fronteira a esta última. Nelas, imitando a realidade, alguns personagens escondiam os seus amores sob a capa da devoção. Ou ficavam a cavaquear na Praça Luís de Camões, discutindo talvez o horrível crime cometido no prédio número 105 da Rua das Flores, que desemboca nessa praça. O escritor aproveitaria o caso para sobre ele escrever um romance.

            Paralela a essa fica outra rua muito queiroziana, a do Alecrim. Descendo algumas dezenas de passos está-se no Largo do Quintela. Aí colocou o romancista a morada de um Conde de Abranhos, protagonista do romance com esse título, e caricatura feroz dos governantes da época.

            No mesmo largo acha-se desde 1903 a mais conhecida das estátuas de Eça de Queiroz, representando o escritor e uma figura de mulher simbolizando a Verdade. No pedestal lê-se a legenda que ele usara no seu romance “A Relíquia” (1887): ‘Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia.’[3]

Siga os passos do escritor e suba pela Rua da Misericórdia. Era numa loja dessa rua que ele comprava o papel esverdeado de trinta e cinco linhas em que gostava de escrever. Parava no número 37, para almoçar ou jantar com os amigos no restaurante Tavares, já famoso nesse tempo pelo luxo do interior. Ou iaao Largo do Carmo, ao Hotel Bragança, hoje quartel da Guarda Nacional Republicana, o grande edifício de seis andares que se vê melhor do Rossio, junto do Convento do Carmo.

            Alguns dos seus personagens nunca perdiam a missa na vizinha Igreja de São Roque, mas o autor, ateu, esse preferia seguir um pouco mais adiante, até ao número 103 da Rua da Escola Politécnica, e na Pastelaria Cister ir tomar café e saborear os pastéis de que tanto gostava. O estabelecimento data de 1838 e o autor é nele homenageado com um retrato.

            Volte para o Largo Rafael Bordalo Pinheiro. Desde há muito demolido, era aí que se encontrava o Casino e Lisboa onde, com um ciclo de conferências, Eça de Queiroz e os seus amigos iriam agitar o país.

Realizada a primeira a 22 de Maio de 1871, quatro dias depois de terminada a “semana sangrenta” da Comuna de Paris, Eça de Queiroz apareceu nela pregando a revolução socialista, mas vestido como dandy. E ironicamente, escreveria mais tarde: “É muito mais cómodo encontrarmo-nos com quem represente o proletariado, sossegadamente, na sala do Casino, do que encontrarmos o próprio proletariado mudo, taciturno, pálido de ambição ou de fome, armado de um chuço à embocadura de uma rua.”

Durante a vida inteira Eça de Queiroz manteria o hábito de se atardar  na Livraria Bertrand, na Rua Garrett número 73,a qual, fundada em 1773 e ainda hoje no mesmo local, é a mais antiga das livrarias portuguesas e uma das mais antigas da Europa.

Do mesmo modo que muitos dos seus personagens não perdia os espectáculos no Teatro São Carlos, ali a dois passos. Artur, o protagonista de A Capital, vai lá pela primeira vez com o seu amigo Melchior e chegam atrasados, já no segundo acto: “(…) Olhava a decoração, os camarotes que lhe pareciam muito distantes, a palidez dos rostos sob a luz do gás, e sentia-se envolvido numa harmonia magnífica e incompreensível  em que por vezes seguia, durante um momento, melodias delicadas que o tumulto da instrumentalização bem depressa absorvia. A magnificência orquestral, junto à riqueza social que sentia em redor, deram-lhe uma vaga opressão. Quando o pano desceu, respirou com alívio.

‘Vamos ver o gado!’ disse logo o Melchior, erguendo-se.

Depois da ópera em São Carlos era hábito chique passar pelo Grémio Literário, no número 37 da Rua Ivens, uma transversal da Rua Garrett. O clube, de que ele era sócio, data de 1846 e mantém o ambiente requintado desse tempo. Embora privado, os porteiros permitem por vezes que se faça uma rápida visita às instalações do rés do chão e à varanda, donde se tem uma vista fabulosa da cidade.

Na Rua Ivens desça as escadas da Calçada Nova de São Francisco até à Rua Nova do Almada onde no nr. 72 encontrará a Livraria Férin, estabelecida aí desde 1840 e de que Eça de Queiroz era cliente assíduo.

Depois, passando pela Rua de São Nicolau, atravesse para a Rua do Ouro, vire à direita e logo a seguir está no Terreiro do Paço.

            Pela praça deambulou o escritor, e com ele alguns dos personagens  da sua obra, umas vezes ironizando ferozmente contra os governantes, invisíveis nos seus gabinetes sobre as arcadas; outras vezes comovidos a recordar a história pátria, chorando a grandeza perdida do tempo em que as caravelas partiam dali a caminho da Índia.

            Mas finalmente, governantes e governados, políticos ou artistas, todos se juntavam a discutir e a beber no Martinho da Arcada que, fundado em 1778, é o mais antigo café de Lisboa.

            O caminho de regresso era pela Rua Augusta, talvez com uma paragem ali a dois passos, na Praça da Figueira nr. 18 B, na Pastelaria Nacional, onde se ia abastecer de doces.

Atravessando o Rossio o escritor subia então os 140 degraus que o levavam ao seu quarto andar, abria a porta da varanda, e tinha defronte a estátua de D. Pedro IV[4], sobre a qual, dirigindo-se à figura do monarca, ele um dia escreveu: “Vossa Majestade está no alto de uma coluna esguia, polida e branca como uma vela de estearina, e mostra, equilibrando-se sobre uma bola de bronze, a Carta, - ao clube do Arco do Bandeira.

 



[1] No romance A Capital. Terminado em 1878, este romance seria postumamente publicado em 1925.

[2] Conhecida também por “Igreja dos Italianos”, o templo original já aí se encontrava no séc. 13 e era da devoção dos muitos mercadores e navegantes venezianos e genoveses que então viviam em Lisboa. Tal como o conhecemos foi construído em 1676 e renovado depois do terramoto de 1755. Reconstruído em 1785 é de uma só nave com doze capelas e tem na frontaria, num nicho sobre a arquitrave, uma curiosa imagem de Nossa Senhora do Loreto, envolvida no característico manto afunilado, com o Menino nos braços em jeito de espreitar. No portal sobressaem dois anjos, ladeando o brasão pontifício, atribuído a Bernini (1598-1680). Da autoria de António Sapeiro (c. 1670-1740), os frescos e o tecto datam de 1702 e foram recentemente restaurados.

[3] A estátua original, da autoria do escultor António Teixeira Lopes (1860-1942) era em mármore branco. Repetidos actos de vandalismo levaram as autoridades a substituí-la no Verão de 2000 por uma réplica em bronze.

[4] Inúmeras vezes contada, a história não perde com a repetição: originalmente a estátua representava o imperador Maximiliano do México (1832-1867) e encontrava-se na Alfândega de Lisboa à espera de transporte, quando o imperador foi fusilado. As autoridades portuguesas aproveitaram a ocasião para a adquirir por um preço razoável e mandaram acrescentar à face rapada do arquiduque austríaco a grande barba do 28° rei de Portugal e primeiro imperador do Brasil.

O monumento, com  27,5 m de altura, foi inaugurado em 1870 e compõe-se de um pedestal onde se acham esculpidas figuras alegóricas da Justiça, Prudência, Fortaleza e Moderação, entrelaçadas por festões com os brasões das que eram nesse tempo as dezasseis principais cidades do país. Outras quatro figuras, representando a Fama, decoram a base.