quinta-feira, agosto 21

A Selva

 

Teria uns dezasseis anos quando li A Selva, de Ferreira de Castro. Fez-me impressão, porque me tinham dito que era livro para ler e ficar impressionado.

Com andanças e mudanças o velho exemplar perdeu-se. Comprei depois outro, que não reli, pois as folhas continuam por cortar. Foi esse que há pouco me avivou a memória.

Uma tarde, num café em Paris, no começo dos anos 60, um amigo apresentou-me ao autor. Nessa altura era já pouco o que me impressionava, e Ferreira de Castro deu-me, sobretudo, a impressão de um senhor preocupado em excesso com a carestia da vida, os achaques do seu corpo e a necessidade de ir a Vichy para as águas.

Em determinado momento conversou-se sobre a rapina dos editores, e Ferreira de Castro contou então que, para garantir que os exemplares vendidos fossem devidamente facturados, mandava carimbar em todos o seu ex-libris.

Fui verificar no exemplar das folhas intactas, e de facto lá está. Também me pergunto quem terá carimbado as muitas dezenas de milhar de livros do autor d’A Selva. De um escritor de tiragens mais modestas sei eu que, quando isso ainda se fazia, sentava-se ele próprio na tipografia, de carimbo na mão.

segunda-feira, agosto 18

Um cartaz

 

Somos um cartaz, bilhete de identidade ampliado, montra que os outros olham com poderes de Raios-X.

Privacidade? Dos pés à cabeça muito de nós é público, transparente, e fingindo passar despercebidos fazemos por marcar presença. Trejeitos, o gesto simples de pegar num embrulho, tudo são sinais, um morse sem cifra. Interessantes ou não, quando nos examinam somos um livro aberto.

Razão porque me refugio em disfarces, contrario o que me é natural, aparento, crio uma imagem, mas de facto só a mim iludo.

 

domingo, agosto 17

A guerra dos folhetos

 

O geral dos casais que envelhecem em relativa paz e harmonia, sabe que esse estado só se alcança na medida em que cada um dos cônjuges (palavra que soa bem nos processos de divórcio) feche os olhos aos humores do outro, lhe perdoe os hábitos e as idiossincrasias (outra palavra cara) que são motivo de atrito, e muitas vezes terminam em discórdia.

Conte-se então como o Abílio e a Filomena, ambos a entrar nos oitenta, actualmente vivem naquele estado a que nas guerras se chama “trégua de hostilidades”, um tempo em que se pára de combater e, em sinal de paz, se içam bandeiras brancas.

Entre o Abílio e a Filomena não é caso de guerra, antes daquelas guerrilhas em que se passa da discordância para a irritação, a desavença vai aumentando, e o silêncio mútuo “fala” mais alto do que os berros que dariam numa zanga corrente.

Como quase sempre, o desagrado começou por uma ninharia, neste caso o modo como ambos encaram aqueles folhetos de letra miudinha, que vêm nas embalagens dos medicamentos. Enquanto a Filomena nem sequer os olha, e às vezes os deita logo fora, o Abílio vai buscar a lupa que comprou para os poder ler, e nesse momento não o venham incomodar com perguntas ou interesse fingido.

No Verão apareceram-lhe umas borbulhas acastanhadas, e pelo sim pelo não foi ao médico, que o sossegou, com aquela pomada logo desapareciam.

Releu o folheto, procurou o significado de palavras esquisitas, como corticosteróides. Assustou-se com os efeitos secundários, e talvez por isso, dando rédea larga ao medo e à imaginação, recordou ter uma vez lido que o excesso de corticosteróides no sangue poderia ter como consequência a doença de Alzheimer.

Num segundo o seu mundo desabou, e foi má sorte a Filomena entrar, porque ao vê-lo transtornado não se conteve, disse-lhe que 

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de tanto ler os papeluchos ainda dava em xexé.