O silêncio tem nome, chama-se Ernestina. Viveu em Trás-os-Montes, mas
podia ter vivido em qualquer aldeia onde o tempo se arrasta como uma
mula velha e os homens falam pouco, mas mandam muito. Ernestina não é só
a mãe de José Rentes de Carvalho, é a mãe do silêncio português. Aquele
que se instala nas cozinhas, nas camas, nos olhos, aquele que não
grita, mas que pode matar.
Ernestina não é heroína, é sobrevivente, e isso, à época, neste país,
já é quase um milagre. Ela é metáfora da mulher que não teve tempo para
ser mulher, da mãe que não pôde ser filha e da vida que não chegou a
ser vivida. E o mais absurdo é que há milhares de Ernestinas por aí.
Algumas ainda vivas, outras enterradas em silêncio, como se nunca
tivessem existido.

No seu livro, o autor não escreve uma
biografia, escreve um exorcismo. Ernestina é a mulher que não teve
direito a personagem, nem a enredo. Teve uma vida de espera, de
ausência, de dor sem nome. E o silêncio, essa espécie de animal viscoso,
foi-lhe fazendo companhia: sentava-se à mesa, dormia ao seu lado,
entrava-lhe pelas paredes. Um silêncio que não consola, mas que sufoca.
Mas há algo de profundamente poético nesta dor. Uma beleza áspera,
como pedra molhada. Porque o silêncio, quando bem escutado, revela mais
do que mil discursos. E este livro escuta, escuta o que nunca foi dito.
Escuta o que foi calado por vergonha, por hábito ou por medo. Escuta o
que Portugal, talvez ainda não tenha aprendido a dizer.
Rentes de Carvalho não nos oferece redenção, oferece-nos uma crónica
da invisibilidade, e fá-lo com uma escrita carregada de palavras antigas
e termos em desuso e que parece ter sido lavada com vinagre: ácida,
limpa, sem perfume. Cada frase é uma bofetada e cada memória, uma ferida
que não cicatrizou. Não há floreios, nem piedade, há verdade, e essa
verdade dói porque nos obriga a confrontar o que preferimos esquecer:
que a nossa história está cheia de Ernestinas que a literatura, tantas
vezes, ignorou.
Este livro é um ato político, não no sentido partidário, mas no
sentido mais profundo da palavra, é uma tomada de posição contra o
esquecimento, e é também uma provocação: será que sabemos realmente quem
foram as mulheres que nos criaram? Ou limitamo-nos a repetir clichés
sobre mães abnegadas e esposas discretas?
Ler Ernestina foi resistir ao esquecimento e à indiferença.
Foi um convite à escuta, à empatia e à memória, e foi também um alerta:
há vidas que só existem se forem contadas e há autores, como o José, o
filho da Ernestina e neto da Elisa, para quem escrever é salvar, sendo
esses os que nos mostram que, às vezes, escrever sobre quem nunca teve
voz é um ato de amor.
Júlia Costa é cristã na essência, católica por tradição.
Ligada à paróquia da Amadora, na Pastoral Juvenil e na Promoção da
Comunidade. Mãe de uma filha, avó de três netos. Profissionalmente na
área da contabilidade, embrenhada em números, mas desde sempre fascinada
pela palavra.