quarta-feira, junho 26

segunda-feira, junho 24

Bofetada na estupidez

 

Bom começo do dia. Aqui

domingo, junho 23

A bomba do fim do mundo

 

A paciência é fingida mas remédio não existe, nem o Matias aceita que se lhe recuse atenção. E assim vá de imitar os comentadores da TV, detalhando pela enésima vez os fortes argumentos que a Rússia possui para se defender do belicismo dos que ele, usando uma expressão perdida no tempo, chama o “Eixo do Mal”.

Do que não tem dúvida, certo como dois e dois serem quatro, é que todos iremos sofrer, numa escala tão nunca vista ou sonhada que nem o Dilúvio serve para comparação. Imagine-se uma bomba atómica sobre Paris, Londres, Roma, Nova Iorque. Fica alguém vivo? Fica alguma coisa em pé?

A pergunta é sublinhada com um arregalar dos olhos, ao mesmo tempo que o braço erguido descreve um vagaroso círculo, parecendo querer assim dar ideia de como a catástrofe será total.

Julgo manter o papel de ouvinte interessado, mas de certeza sou fraco actor, porque ao mesmo tempo que baixa o braço leio-lhe no rosto uma expressão de desânimo, é então que, por simpatia, caio na asneira de o encorajar com banalidades e certezas que não possuo.

Porém, quanto mais faço para que anime, tenha esperança, o queira convencer de que o lado bom é muitas vezes o que leva a melhor, mais ele amua. Por fim, como se tivesse perdido a paciência de sofrer o meu optimismo, esquece a cordialidade do trato social:

- Claro que na tua idade tanto se te dá como se te deu! Mas eu tenho filhos e filhas na força da vida, vou ter netos, quero vê-los crescer num mundo melhor.

- Será o admirável mundo novo - digo eu sem ironia, supondo que conhece o livro de Aldous Huxley,

- Novo e muito melhor do que este!

O entusiasmo da sua concordância não me faz perder apenas uma ilusão, com ele reganho o melancólico sentimento de tantas vezes me ver atordoado, perdido em terra-de-ninguém.

quinta-feira, junho 20

Discurso de Francisco José Viegas - Mogadouro - 31.05.2024

 

Senhor Secretário de Estado, meu caro Hernâni,

Senhor Presidente da Câmara Municipal de Mogadouro,

Meu caro António Pimentel,

Senhora Vereadora da Cultura,

Senhores autarcas,

 

Minha querida Loekie,

Meu querido José.

 

Hoje é dia de festa e eu pus gravata, o que é uma coisa muito rara. O facto é que a ocasião pede gravata, como antigamente. Aliás, a ocasião é tão importante que eu não devia estar a usar esta gravata mas sim, pelo menos, duas gravatas.

Conheci o José Rentes de Carvalho em Amesterdão, há cerca de trinta anos. Eu era relativamente jovem e muito mais ignorante — mas uma coisa eu fiquei a saber desde essa altura: que aquele português moderadamente simpático, muito culto, de boas maneiras e sorriso um pouco cínico, amável, e de gravata, era uma das nossas grandes figuras.

Era um português como os portugueses que chegaram a todo o lado, e arrumamos já esta questão. As suas atribulações, aventuras, sucessos (que, felizmente, são muitos), até hábitos, as suas ideias, as suas idas e vindas, a sua enormíssima lista de livros, são conhecidos de todos.

Os livros de José Rentes de Carvalho são parte da nossa consciência, ou seja, são um retrato da nossa forma de sermos portugueses, que é uma coisa que fazemos razoavelmente bem, com os nossos defeitos e as nossas virtudes, não por esta ordem. São eles que fizeram de Rentes de Carvalho uma espécie de referência e de marca, o que seria normal, mas também um monumento, que é aquilo que só acontece aos maiores.

Estamos aqui porque todas as terras têm a sua voz, os seus geógrafos, os seus trovões. E porque, vamos lá, somos o povo de Rentes de Carvalho, que é a nossa voz, o nosso geógrafo, o nosso historiador, o nosso trovão.

Lembro-me bem de quando era jovem adolescente e lia os livros da carrinha da Biblioteca Gulbenkian que, de quinze em quinze dias, parava no largo diante do café, no Pocinho. Foi nessa altura que li Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez.

Durante três dias, sem parar, li aquele livro que me fez ser, durante algum tempo, conterrâneo do coronel Buendía, personagem da história, bem como de Cándida Enréndira, de quem tive muita pena, e de Úrsula, de quem tive muito medo. E era também vizinho daquele mundo, daquelas montanhas e florestas em redor de Macondo, o lugar mágico, que me pareciam ser as serranias aguçadas da Lousa ou o castelo de Mogadouro, tal como o espectáculo do cigano Melquíades me parecia ser a feira de Moncorvo, onde o meu avô me levava. O ruído das cigarras da Colômbia era o mesmo das cigarras do Perêdo, ou de Açoreira, ou do Larinho, ou de Felgar. As manias e capacidades de Úrsula passaram a ser iguais às de Adosinda, que todos me diziam ser a bruxa em Santo Amaro, e de quem eu tentei logo ser bom amigo (e fui). Os desfiladeiros de Macondo seriam os mesmos do Carrascalinho ou da serra do Reboredo. Só que os rios da Colômbia – e daquele livro – perdiam em comparação com o meu rio, o Douro.

Mas, no fundo, os meus lugares, os meus sítios, os meus vizinhos de Moncorvo e de Foz Côa, de Mogadouro ou de Vimioso, não tinham uma transcrição que os passasse a livro. Ao longo dos anos, com muitos outros livros, senti essa falta. Até que li os daquele homem que em Amesterdão me parecia estar sempre a rir de mim, ou à espera que eu falhasse em qualquer coisa, ou cometesse um erro de gramática, ou fosse estatelar-me com uma frase pomposa. Não me portei mal. Eu conhecia-lhe a fama, tinha lido as suas entrevistas, sabia o que pensava de Portugal, sabia como tinha sobrevivido à pátria e continuava a visitá-la, a sofrer com ela, a pensar que ela podia ser outra coisa.

Em troca, para me testar, deu-me um livro. À mesa do jantar prometeu mandar-mo no dia seguinte. E no dia seguinte o livro estava lá. E, no dia seguinte, o livro, que levava o título Com os Holandeses, estava lido.

Regressando a Portugal, procurei os outros e li os que encontrei. E jurei a mim próprio que, um dia, quando fosse editor, se algum dia eu fosse editor, trataria de publicar esses livros.

Falhei em muitas coisas ao longo da vida, como toda a gente. Mas, cerca de dez anos depois desse encontro em Amesterdão, pude cumprir a promessa.

Estamos aqui hoje com uma estátua, um nome para o centro cultural, uma valente roda de amigos, uma série de discursos — mas o essencial, na verdade, não é nada disso, que é maravilhoso, e é um testemunho de gratidão, e a gratidão é um dos sentimentos mais nobres, tal como usar gravata nos momentos solenes, mesmo com calor. O essencial é o que este português dos antigos nos tem dado a nós. Romances, contos, crónicas, diário, ensaio, memórias – e um retrato de todos os que estamos aqui. E, em tantos livros, os retratos desta terra.

Alguém chamou a esta terra “o reino maravilhoso”. Muitos pegaram na frase e ficaram contentes com ela, porque nos dispensava de fazer fosse o que fosse pelo reino, porque se ele já era maravilhoso, pouco havia a fazer. Só que Rentes de Carvalho não fala do “reino maravilhoso”. Nós, que conhecemos o reino maravilhoso, sabemos que não é o reino maravilhoso. Por isso, nos seus livros vem também o retrato da fome, do passado, da pobreza, da miséria, da maldade, do sonho, da mentira, da ilusão, da malandrice, da bondade ou da desesperança.

Rentes de Carvalho deu-nos tudo isso. Ou seja, deu-nos um bilhete de identidade. Percorremos os seus livros, nós os que somos de Mogadouro ou do Pocinho, os de Moncorvo ou de Carviçais, os de Estevais ou de Lagoaça, os do Larinho ou do Carvalhal, os de Felgar ou das Quebradas — e estamos lá. Lemos livros como O País do Solidó e estamos lá. Somos os patifes de Cravos e Ferraduras, o seu livro mais recente. Somos os traídos de A Amante Holandesa ou os que são visitados pelos personagens de Cinza & Diamantes. Com alguma probabilidade somos também algum personagem de O Meças, o mais rigoroso, brutal, enternecedor e violento dos seus retratos portugueses. Não há livro assim na nossa literatura. Rentes de Carvalho tem uma grande arte: a de nos ferir com profundidade. Basta ler O Meças.

Disse há pouco que este homem que nunca esqueceu a sua terra, as suas amendoeiras e as suas oliveiras, os seus cemitérios e as suas ruas, os seus vizinhos, a sua Estevais — que este homem nos deu um bilhete de identidade.

Mas ter uma identidade não é nada se ela não for armada — e Rentes de Carvalho foi mais longe e deu-nos, nos seus livros, a licença de uso e porte de arma. Para fazermos pontaria aos nossos defeitos, às nossas virtudes, aos nossos enganos e à nossa memória.

Também ia a dizer “amada” em vez de “armada”. Uma identidade não é nada se não for amada e se não tiver as suas histórias, a sua língua devidamente enobrecida e conservada e bem tratada.

E então, às vezes ponho-me a imaginar esse menino cujo olhar vem em Ernestina, o livro em que se descreve a origem e a criação do mundo, esse menino que saía de casa em Gaia e atravessava o Douro, que passava em São Bento e apanhava o comboio pelo grande rio acima até chegar ao Pocinho e daí até Carviçais e ao apeadeiro, e daí a cavalo e a pé até Estevais.

Esta viagem faz parte dos meus mitos pessoais, faz parte dos mitos de Ernestina, o seu romance, o romance de Estevais e da vida inteira, mas a verdade é que faz parte dos mitos de toda a gente que vive neste território e que é personagem de O País do Solidó.

Faz parte do nosso coração. Só que Rentes de Carvalho apanhou-nos no que temos de melhor e de pior, no que temos de pior e de melhor, até não sabermos bem o que é o nosso melhor e o que é o nosso pior. E vêm lá, reunidas, a nossa tendência para a patifaria e para a vaidade, a nossa ternura e a nossa malandrice, a nossa beleza e as nossas doenças, o nosso ar relativamente apetitoso — como a Júlia da farmácia — e a nossa capacidade para nos excedermos ou para mentirmos com categoria, ou para sermos qualquer coisa que nos faria rir, se nos soubéssemos observar a nós próprios e ver como tantas vezes somos seres ridículos e patifes.

É por isso que Rentes de Carvalho é um herdeiro directo dos grandes escritores. Um herdeiro maravilhoso de Eça de Queirós. Um herdeiro corajoso de Camilo. Um herdeiro sábio de Machado de Assis. Estes são os três melhores contadores de histórias da nossa língua, os três grandes romancistas da nossa imaginação e na nossa língua.

Rentes de Carvalho anda com eles de braço dado no largo de Moncorvo e nesta praça de Mogadouro — e mesmo quando finge estar ausente, absorto, meditativo, ele está a rir por dentro, de braço dado com a sua imaginação, recordando como nos viu atravessar a rua.

E então uma pessoa pergunta: “O que estás a fazer, José?”

E o José, inclinando um pouco a cabeça, como se não nos tivesse visto, leva o dedo à cabeça, finge sorrir e diz: “Estou a escrever.” E está.

É por isso que estamos todos nas suas histórias, minhas senhoras e meus senhores. Não nos safamos.

É por isso que às vezes tenho a estranha impressão de já vos ter visto nos seus livros. || A mim não, que me escondo dele sempre que posso.

Há uns anos, a Fundação Francisco Manuel dos Santos organizou uma viagem com um grupo de vinte jornalistas em que metade deles não sabia onde ficava Mogadouro, mas que aterrou no aeródromo local como se fosse no futuro aeroporto de Lisboa — e se encaminhou para Estevais.

Conheciam os livros de Rentes de Carvalho, sobretudo Ernestina e A Amante Holandesa ou Com os Holandeses — mas não conheciam o cheiro do lagar de azeite em Estevais, nem a cor das giestas em Maio, nem o sulco das amendoeiras e o calor das encostas das Quebradas.

E só então entenderam que, por detrás daquelas histórias tão maravilhosas como amargas, a de Montedor, o seu primeiro livro, ou das recordações de Tempo Contado, ou da fúria do ensaísta que fala da ira de Deus a cair sobre a Europa, ou do narrador comovido de Ernestina, que só num país distraído ainda não se transformou numa série ou num filme — estava uma alma carregada de coisas obscuras, uma arma carregada de munições, um espírito raro do nosso tempo.

Nós somos testemunhas, vós sois testemunhas da sua grandeza. É isso que nos autoriza a dizer que nós, nós os que podíamos ser vadios nos seus livros, boas pessoas das suas histórias, malvados na sua galeria de personagens, contrabandistas ou flibusteiros, nós, nós amamos José Rentes de Carvalho.