Semelhante às igrejas, a biblioteca do liceu Alexandre
Herculano, no Porto, era silenciosa, bafienta, guardada por um bibliotecário
que, duma mesa empoleirada num estrado, vigiava o nosso vaivém. Entrava-se em
pontas de pés, pediam-se—lhe os livros num sussurro, ia-se em pontas de pés
esperar que ele os tirasse dos armários envidraçados.
Simplesmente, nem todos os livros eram obtidos com
essa facilidade. Os de Oliveira Martins e outros exigiam formalidades. Para
lê-los era necessário preencher uma ficha – que era entregue ao reitor, avisava
ele – na qual constava o nome do aluno, o seu número de turma, data de
nascimento, filiação, morada, o título da obra, o nome do autor, o nome do
professor que a aconselhara e, por baixo, a "razão da leitura".
- Muito obrigado. Não vale a pena. Era só para ver uma
coisa... – e em pontas de pés saímos dali direitos a um alfarrabista que
"Sim senhor, meus senhores" tinha a História de Portugal de Oliveira Martins, em dois volumes, décima
primeira edição, 1927.
Embora descobríssemos logo a seguir que a História se
estudava à luz de concepções que pouco tinham a ver com as de Oliveira Martins,
o qual, para nós, cometera o pecado mortal de ignorar Marx, seu contemporâneo.
Mesmo assim, que inesquecível leitura!
Aquele retrato de Portugal parecia-nos mais conforme do
que as hagiografias que nos tinham obrigado a aceitar e, com o sentimento de
que fazíamos obra revolucionária, copiávamos frases que, secretamente,
distribuíamos aos mais novos.
"Nos séculos 12 e 13 Portugal é um certo
território, propriedade dum certo príncipe: donde vem? quem é? pouco importa. O
conde Henrique era francês. Assim, a época da primeira dinastia desmente por
todos os lados, e de todas as formas, a ideia duma raça, possuindo, dum modo
mais ou menos definido, a consciência da sua existência colectiva".
Quem era Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal?
"Era audaz, temerário até, pessoalmente bravo,
qualidades nem tão comum no tempo, como a muitos acaso pareça... mas era seco,
astuto, friamente ambicioso, sem quimeras nem ilusões. Submisso e humilde
quando se achava vencido, subscrevia a todas as condições, aceitava todas as
durezas; para logo mentir a todas as
promessas, rasgar todos os tratados, com uma franqueza ingénua, uma
simplicidade natural, que chegavam a espantar a própria Idade Média".
De D. Pedro, o Cru, já antes citado, alargava a
biografia horrorosa: "... tinha a paixão da justiça: era nele uma mania,
como no seu avô fora a guerra: não prescindia de julgar todos os delitos. Os
criminosos vinham à corte desde os
remotos confins do reino. Quando algum chegava, manietado, e o rei
comia, levantava-se pressuroso da mesa, e trocava a vianda pela tortura.
Prazia-se em ajudar e dirigir os algozes; indicava os expedientes e processos
ara obter a confissão dos réus. Nunca abandonava o açoute: enrolado à cinta em
viagem, tomava dele, e por suas mãos castigava os facínoras que no caminhos lhe
traziam".
Valendo-se duma citação de Alexandre Herculano,
Oliveira Martins despachava assim o retratos de três reis da primeira dinastia:
"D. Dinis foi um avaro, Afonso IV um homem de juízo, Pedro I um doido com
intervalos lúcidos de justiça e economia".
Dali passava aos Descobrimentos. Ora nós, jovens, não
tínhamos sido insensíveis ao trovejar da epopeia de Camões e, sem excepção,
sabíamos de cor os primeiros versos de Os
Lusíadas. Além disso, o hino nacional, que cantávamos pelo menos todos os
sábados de manhã, era igualmente
belicoso. Pense cada qual o que quiser, não deixa de ser realidade que,
sobre esse período particular da História, nos encontrávamos razoavelmente
indoutrinados . As façanhas dos nossos
marinheiros e soldados a caminho do Oriente, eram infinitamente mais excitantes
do que as lamechices de Texas Jack, Jesse James e os restantes outlaws do Far-West.
Ora o historiador, com um simples parágrafo limpou-nos
a cabeça das teias do heroísmo e, pelo menos no que me diz respeito, vacinou-me
contra as versões oficiais passadas, presentes e futuras dos acontecimentos
históricos: "Navegadores... a maneira como nos aventurámos ao mar retrata
ainda a nossa fisionomia colectiva: fomos prudente e pacientemente ao longo das
costas africanas, ou de ilha em ilha, no oceano, caminhando passo a passo,
avançando sempre, tenazes, mas jamais temerários".
As descrições que faz das atrocidades, dos crimes, das
ladroeiras e das selvajarias cometidas pelos grandes e pequenos homens dos
Descobrimentos – extraordinária empresa que pouco mais durou que cinquenta anos
– igualarão as feitas por outros historiadores sérios sobre as façanhas
igualmente heróicas doutros povos. Espanhóis, holandeses, ingleses e franceses
não se comportaram mais santamente. Mas isso pouco importa aqui. O que nos
deixou de boca aberta foi a disparidade entre aquela verdade e a que nos tinham
dado os compêndios, os mestres e as intermináveis comemorações dos
Descobrimentos, da Restauração, do Império, do Dia da Raça e do aniversário de
Camões.
Vasco da Gama perdia aquele ar de grão senhor comedido, protector do indígena: "Um
terramoto agitou o mar da Índia quando o Gama pela segunda vez o trilhava; e o
almirante, imagem da bravura épica d povo português, acreditou e disse que até
as próprias ondas tremiam com medo nosso – com medo dele!"
Para começar ordenou o saque de uma nau cheia de
peregrinos que iam ou vinham de Meca, trezentos homens, mulheres e crianças e,
acabado o saque, carregou-a de pólvora e fê-la explodir. Depois intimou o rajá
de Calicut a que expulsasse as famílias mouras da cidade. Não queria expulsar?
Vasco da Gama "ao fundear diante da cidade apresara um número considerável
de mercadores do porto, mandou cortar-lhes as orelhas e as mãos, e amontoados
num barco, foram com a maré varar na praia, levando a resposta à recusa do
aflito príncipe".
Mas não só o Gama. Depois dele, Francisco de Almeida,
Afonso de Albuquerque e outros vice-reis apareciam como gente da mesma estirpe.
Sanguinários, fanáticos, movidos pelo duplo motor da fé e do lucro. Dê-se-lhes
esse desconto: não era só a ganância da pimenta, do ouro, dos diamantes e o
aumento do nome e honras do rei, mas igualmente
a pressa de pôr o Oriente de joelhos diante da Santa Madre Igreja.
"O domínio português – escreve Oliveira Martins –
adquiriu logo de começo o carácter duplo que jamais perdeu, apesar de todas as
tentativas posteriores de regularização e de ordem. Era no mar uma anarquia de
roubos, na terra uma série de depredações sanguinárias... A pirataria e o saque
foram os dois fundamentos do domínio português, cujo nervo eram os canhões,
cuja alma era a Pimenta".
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in Portugal, a flor e a foice