quarta-feira, novembro 19

Tempos de turbulência

 

 https://corta-fitas.blogs.sapo.pt/tempos-de-turbulencia-8604139

terça-feira, novembro 18

Tonturas

 

O modo como alguns escritores, por vezes tão penosamente vaidosos, se cansam a explicar os princípios filosóficos, morais, sexuais, sociais, das suas obras. O modo como tudo é ampliado, engrandecido, preparado para a venda, o êxito, a vitória - quando ao fim e ao cabo o conto, a novela, o romance, são somente histórias.

O autor fornece a moldura, os contornos, o movimento, e o leitor com a sua sensibilidade completa a obra. Só isso. O resto, explicações, andaimes, estruturas e sistemas, as escolas, as correntes, as modas, será útil para a fama e o comércio, mas é passageiro, insignificante.

Contudo, esses bombardeamentos tornam difícil manter-se a gente insensível, e de vez em quando pergunto-me porque bizarro destino o meu escrever é apenas escrever, apenas trabalho. Porque é que não oiço vozes nem tenho revelações? Porque não chega até mim a inspiração do Altíssimo? Porque é que na minha vida nunca se dão daqueles encontros ou situações donde subitamente faísca a luz do génio?

Deus sabe que não sofro de excessiva modéstia, mas como me sinto zé-ninguém quando comparo a minha singela labuta com as complexas construções intelectuais, artísticas e filosóficas que a maior parte dos escritores jura estar na base dos seus livros! Sejam holandeses ou suecos, americanos, búlgaros ou marroquinos, portugueses, croatas, todos eles parecem viver em planos tão esotéricos e elevados do pensamento, que só de ouvi-los sinto tonturas.

 

 

domingo, novembro 16

Vivências e convivências

 

Quem é que ele não conheceu ou não conhece? Com quem não terá ainda almoçado? Infantil e barulhento, o seu modo de exagerar não impressiona, mas pergunta-se a gente que finalidade terão aqueles arrotos de postas de pescada. Proveito não lhe vem, antes pelo contrário, pois no segundo acto já o interlocutor fica de pé atrás. Resta ouvi-lo e gozar o espectáculo.

- Foi o que eu disse ao Zé. O José Saramago. Estávamos com a Pilar em Alfama, não me lembro bem, uma tasca muito gira.

Umas vezes começa assim e segue-se um quarto de hora de intimidades, com o detalhe de que Pilar detesta a carne de porco e o Nobel tem um fraco pelo bacalhau à Brás. Verdade ou ficção, não vem ao caso, interessante é vê-lo saltar daí para os seus variados contactos.

- Costa Gomes. Vocês sabem. O presidente. Grande homem.

Gesticula, desfiando as intrigas e os casos, vemo-lo de súbito transformado no marechal, erguendo os braços na saudação às massas, sussurrando-lhe um recado político, recebendo-o em Belém.

- Não sei se sabem, mas o palácio tem uma cozinha... Come-se lá muito bem.

A malícia pode mais, não resisto: - Também almoçou com o Spínola.

- Desculpe, mas com o Spínola não almocei. É verdade que me tinha convidado, mas foi quando houve aquela coisa com os comandos, não chegámos a almoçar.

- Com o Mário Soares?

- Dezenas de vezes. Mas o Mário almoça com toda a gente. Bom rapaz. Bom garfo. Conhecemo-nos em Paris em 70. Talvez 71. Acho que é isso, mas não garanto, sempre fui fraco em datas. Em caras não, mas em datas... Agora de quem gosto muito, vocês vão-se rir, é do Manoel d'Oliveira. Ando sempre a gozar com ele por causa do nome. Com ó! Não lembra ao Diabo. Fomos íntimos e antigamente ia muito a casa dele, na Foz, mas está a ficar um bocadito...

Com um abanar da mão demonstra a fragilidade do cineasta centenário, e continua com o Cardoso Pires, "O Zé Cardoso Pires! O Zé Cardoso Pires! Estupendo personagem!"; a Sofia, "Ah! A Sofia! Ela escrevia com ph, Sophia! Grande mulher! Grande poetisa! Daquilo já não há." – e confidencial: - Chegámos a ter um caso. Mais flirt que outra coisa. Romantismo. Entre a minha papelada devo ter um soneto que me dedicou, mas sou um desorganizado. O mais novo, o João, prometeu que dava uma volta, que o encontrava, mas isto é rapaziada nova, estão-se nas tintas.

Suspira, tira uma fumaça da cigarrilha, cheira o uísque, bebe, estala a língua a saborear.

- Com a Natália foi mais sério. Ela tinha aquele bar na Graça, o Botequim, e continuava a ser deputada...

 As histórias são sempre as mesmas, o seu papel nelas sempre o mais importante, mas a atenção vai esmorecendo, o sentido crítico vem ao de cima. Envelheceu, continua no mundo que em rapaz se criou e, escondido na província, inventando importâncias, conta os sonhos como se fossem a vida. Tudo se lhe perdoa.

 

quinta-feira, novembro 13

Começo e fim

 

Uma tarde, a rir, no mesmo café onde tudo tinha começado, fizeram contas e discordaram. Ela dizia que fora em Outubro, fazia exactamente dois anos. Ele segurou-lhe as mãos e, paciente, pediu que recordasse. Tinha sido no começo de Dezembro, quando o Sérgio... Que não. E não lhe falasse no Sérgio. Estava absolutamente certa, até se lembrava do que tinha vestido e do casaco, aquele de alpaca com uma gola de raposa que...

Cedeu. Ouvia-a, sorria-lhe, acenava paciente que sim, mas o pensamento disparara. Ligação invulgar, clandestina, perigosa, apaixonante, a deles, cada um descobrindo no outro como que a metade que lhe faltara. E agora... Não, não, era ridículo, não era possível que semelhante ninharia... Lembras-te do casaco? Aquelas botas que eu tinha comprado, de Pollini, as de verniz com um tacão...

À medida que, entusiasmada, ela tentava convencê-lo, sentia crescer um sentimento de quase pânico, fundo, incompreensível, o acordar de uma hipnose.

Voltou a segurar-lhe as mãos. Sim, de facto devia ter sido em Outubro. Depois falaram doutras coisas e quando ela, com um sorriso malicioso, lembrou o encontro combinado para o fim-de-semana, teve um momento de hesitação. Era pena, devia ter-lho dito antes, mas tinham de adiar. Não deu razões, nem ela quis saber, o acordo tácito que tinham desde o começo.

Despediram-se com carinho e ainda se veriam uns meses, o sexo continuaria agradável para ambos, mas nunca lhe diria que, inexplicavelmente, por uma ninharia, naquela tarde tudo terminara.

 

terça-feira, novembro 11

Retrato

"Se o gajo é tão inteligente, porque é que não é rico?"

"Fosse ela esperta não era criada de servir."

Frases assim são retrato impiedoso de quem as pronuncia.

Petulância, estupidez, auto-satisfação, ignorância do mundo e da vida, desdém pelo semelhante, a barriga cheia de certezas. Tento esquecer, mas se as oiço ou leio lá se me vai em estilhaços a compreensão e o amor do próximo. E isso é o que eles por maldade ou descuido dizem em voz alta, mal iria se soubéssemos o que lhes vai na cabeça.

Sapiente foi Ele, que nos criou desiguais e mascarados, pois se nos fosse dado ler pensamentos há muito éramos espécie extinta.

 

segunda-feira, novembro 10

Entre fardas e fatos, o Diabo escolha

Ouvir-me dizer do resultado das próximas eleições presidenciais que tanto se me dá como se me deu, é porta aberta para os graciosos da piada fácil, pois com um pé na cova, seria de esperar ver-me mais ocupado com as perspectivas do Além, do que pelas consequências de um festival, várias vezes repetido ao longo de quase meio século, e cujos resultados só na aparência causam surpresa, pois vençam os da esquerda, da direita, do centro, de cima, de baixo ou do lado, e as fanfarras toquem marchas vitoriosas, quando o barulho acalma e a poeira assenta, repara-se então que foi para inglês ver.

Pode, eventualmente, dar-se uma mudança dos robertos encarregados do espectáculo, mas os cordelinhos continuam nas mãos que os manejam e de facto mandam, de forma que com eleições ou sem elas, não há razão para num futuro próximo esperar sérias mudanças ou reais melhorias.

Contudo, talvez não seja descabido assinalar, que se na essência pouco mudou, alguma esperança há: já não temos rei, somos uma república democrática, estamos longe do tempo em que Eça de Queirós vociferava  n’As Farpas que “as eleições fazem-se pela compra da consciência a dinheiro, ou pela promessa, pela lisonja, pelo dolo, pela mentira. Não há integridade nem limpeza de carácter que resista à influência degradante e sordidíssima da uma campanha eleitoral... A campanha eleitoral é uma navegação pestilencial pelo cano de esgoto de todas as imundícies da conveniência, do egoísmo e da ambição.”

Convenhamos, pois é facto: melhoraram as maneiras, as condições e o sistema, é menos agreste o vocabulário, embora isso não impeça o que é de sempre e de esperar: que os punhais continuem escondidos na manga à espera da boa ocasião, e se vigie o andamento do concorrente para que a rasteira não falhe. Assim tem sido como temos visto, ganhe  beltrano ou sicano não haverá mudança na paisagem.

Pode dar-se o caso de que o Chega, com a sua massa de “desprezíveis”, cause  um pequenino abalo, o que seria sem consequências de maior, pois os “democratas” sabem como proceder em situações dessas, jurando que todos os democratas são iguais, mas por vezes alguns calhem ser mais iguais dos que os outros. Demonstraram-no eles nas eleições de 2017 na Holanda, quando o PVV de Wilders foi o segundo partido, mas logo sujeito a um cordão sanitário, e por comum acordo dos “justos” banido de governar, relegando a uma segunda classe os 1.372.941 cidadãos que nele tinham votado.

Que isso tenha sido possível na Holanda, com uma tradição secular de democracia, não causou abalos só resmungos. De modo que milagre de Fátima, ou uma rebeldia das “massas” as leve a votar no Chega, dando-lhe também um improvável segundo lugar, nada mudará. Tanto mais que embora os dados pareçam ser lançados em público, o jogo faz-se de facto e sempre nos bastidores.

Teremos então muito do mesmo, e eu, cansado da monotonia e possuindo alguma experiência na escrita de romances, além de um razoável conhecimento da História pátria, não resisto à tentação de fingir de Bandarra e arriscar umas profecias do que pode vir a acontecer.

Começando pelos astros, e com suficiente margem para o rigor das datas, a impressão é a de que há um tempo para cá são interessantes as repetições. De 1910 a 1930 tivemos a gripe espanhola, gigantesca catástrofe; a implantação da República, um desastre; logo depois a tragédia da Grande Guerra, e quase em simultâneo o milagre do Sol em Fátima, seguido anos mais tarde pela chegada de Salazar, o salvador da Pátria.

Agora, desde o começo de 2020 temos o Covid-19 e as suas variantes, se bem que o número de mortos felizmente nem longe se compare ao da Pneumónica. Também é improvável uma mudança do regime, que aliás para ninguém seria bem-vinda. Uma guerra mundial pode vir a qualquer momento, se assim desejarem os que têm poder para a declarar. De modo que no aguardo de tempos mais serenos resta-nos a esperança de vermos repetir o milagre do Sol a rodar no alto, anunciando à Lusitânia a iminência da chegada do salvador providencial.

Que um candidato à função já por aí anda sussurram-no alguns, e até o próprio parece tomar gosto na fantasia. Embora a minha ideia não conte, e certo de que no Céu não me ouvem, quero todavia deixar dito que se mantém nula a minha simpatia por uniformes à frente dos destinos da pátria.

Essa nobre tarefa é mais avisadamente confiada a paisanos com algum traquejo na arte de governar, mesmo quando são malabaristas e certificados troca-tintas.

 

sábado, novembro 8

Viajantes

 

Viram mundo. Provam-no com relatos, fotografias, vídeos, por vezes até uma dúzia de linhas de gazeta. Viram mundo, viajaram muito, foram aos longes onde tudo é exótico, mas só defeito de nascença ou desarranjo da cabeça explicará tanta boçalidade.

Comentam o que viram com um entusiasmo que quer passar por original e é apenas um triste refogado. Conhecem gente. Mencionam datas, casos. Viveram tantas situações em simultâneo que se diria terem herdado a ubiquidade antonina. São simples. Arrepanhando os lábios ou de queixo descaído, sofrem da pedantice triste dos que papagueiam fiapos de conhecimento mal atado. Têm opiniões. Aborrecem. Viram mundo, mas ao ouvi-los pergunta-se a gente em que desertos se terão perdido.