sexta-feira, dezembro 5

O invejoso

Em cada geração da intelectualidade há sempre um curioso tipo: o invejoso. Perito na delicada arte de montar a sua reputação, enciclopédico nos interesses e no conhecimento, dotado de algum talento e cautelosamente arrimado ao Poder, cria ele fama e proveito de autoridade.

Manuseia com perícia a dosagem de cumprimentos, torna-se reverente para com o jovem poeta, aplaude o obscuro romancista que descobriu na Roménia, e assim vai elevando a própria estátua.

Anuncia urbi et orbi as suas andanças e raro passa ano em que, ora poesia, ora romance ou ensaio, não publique livro seu. Por vezes mais que um. Toda a gente o conhece, ninguém o lê, mas nunca ferra nem se agita, que isso são modos de que no Olimpo se desdenha.

Secretamente, porém, a sua vida é um inferno, pois dotado de inteligência e perspicácia ele sabe como poucos distinguir o trigo do joio. E sofre. E inconscientemente revela a inveja que o mortifica: quando enfrenta ou descobre noutro verdadeiro talento, bem podem tocar alto as trombetas, a sua ficará no saco.

 


quarta-feira, dezembro 3

Salamaleques

 

Um achaque, uma ponta de febre, logo a gente se desinteressa do que vai no mundo. Assim, só agora fiquei ao corrente de que umas dezenas de personalidades foram, ou vão, solicitar ao Presidente da República que arranje o que se desarranjou e endireite o que no país está torto.

Há nesse gesto algo que me aborrece, pois a meu ver vai longe o tempo em que os "homês bõs da naçom" iam ajoelhar diante do monarca e solicitar a sua mercê.

Fora isso, surpreendeu-me também que a certeza antiga de que "O Povo é quem mais ordena" parece ter perdido a data de validade. Põe-se o povinho de lado e vão os senhores confabular em tête-à-tête sobre o modelo de nova albarda para o Zé.

Desagradou-me ainda ver entre essas personalidades sujeitos que aproveitaram dos erros que agora  querem ver corrigidos, outros que desses erros foram co-autores, e uns quantos que se calaram enquanto estiveram sentados à mesa do banquete.

Tenham vergonha, deixem-se de salamaleques.

 


sábado, novembro 29

Minto, mentes, mente,,,

 

Afirmavam e provavam os oponentes que, como primeiro-ministro, o senhor Sócrates descaradamente mentia. Afirmam e provam agora os seus seguidores que o senhor Passos Coelho descaradamente mentia.

Cidadão sem partido, sem tacho, amizades ou dependências políticas, livre que nem  andorinha, pergunto-me  que proveito move as senhoras e senhores que tanta energia e palavras gastam no fingimento de que protestam contra a mentira, e sinceramente querem endireitar o torto. Será mau hábito que têm? Achaque que lhes dá? Sendo apenas figurantes e vassalos, imaginam-se actores de primeira?

De qualquer modo o espectáculo é deprimente, menos pela fantochada do que pelo que põe à mostra de sabujice. E mal, muito mal, vai à vida política da nação, quando o debate público ganha o tom das rixas de taberna.

 

quarta-feira, novembro 26

A deslisar

 

Começou pouco a pouco vai para meio ano, o sentir-me incapaz de escrever ficção, assim à maneira de um  bizarro nevoeiro a afectar o cérebro e os dedos.

Pode ser da idade, pode ser desgaste cerebral, o fastio que a política nacional e mundial me causa de certeza contribui. Conselhos para dar também não tenho, como me sei incapaz de, no meu ramo e com  anos em demasia, produzir o que pudesse considerar-se novidade.

Vou pois deslisando para um estado que, sem ser de desinteresse total pelas coisas do mundo, encontra satisfação bastante no quase nada que acontece à minha volta.