quinta-feira, outubro 23

Desencanto

É desencanto, e ao mesmo tempo cansaço, indiferença. Deixo aqui prosa alheia, prosa minha, intrigado de que de perto, e dos quatro cantos, haja gente que vem dar uma vista de olhos. Mas fascinado também pela maravilha que torna possível semelhante contacto, e permite a ilusão de uma proximidade que, embora fictícia é, para mim, um modo de evitar a irremediável e inevitável queda de interesse que acompanha os muitos anos.

A extrema velhice, que por ignorância muitos anseiam, é um fardo que de refinadas maneiras pesa demasiado. Sobretudo quando a decadência é física e o cérebro em muito pouco acusa o desgaste de quase um século.

 


terça-feira, outubro 21

Destapando as Descobertas

 

Semelhante às igrejas, a biblioteca do liceu Alexandre Herculano, no Porto, era silenciosa, bafienta, guardada por um bibliotecário que, duma mesa empoleirada num estrado, vigiava o nosso vaivém. Entrava-se em pontas de pés, pediam-se—lhe os livros num sussurro, ia-se em pontas de pés esperar que ele os tirasse dos armários envidraçados.

Simplesmente, nem todos os livros eram obtidos com essa facilidade. Os de Oliveira Martins e outros exigiam formalidades. Para lê-los era necessário preencher uma ficha – que era entregue ao reitor, avisava ele – na qual constava o nome do aluno, o seu número de turma, data de nascimento, filiação, morada, o título da obra, o nome do autor, o nome do professor que a aconselhara e, por baixo, a "razão da leitura".

- Muito obrigado. Não vale a pena. Era só para ver uma coisa... – e em pontas de pés saímos dali direitos a um alfarrabista que "Sim senhor, meus senhores" tinha a História de Portugal de Oliveira Martins, em dois volumes, décima primeira edição, 1927.

Embora descobríssemos logo a seguir que a História se estudava à luz de concepções que pouco tinham a ver com as de Oliveira Martins, o qual, para nós, cometera o pecado mortal de ignorar Marx, seu contemporâneo. Mesmo assim, que inesquecível leitura!

Aquele retrato de Portugal parecia-nos mais conforme do que as hagiografias que nos tinham obrigado a aceitar e, com o sentimento de que fazíamos obra revolucionária, copiávamos frases que, secretamente, distribuíamos aos mais novos.

"Nos séculos 12 e 13 Portugal é um certo território, propriedade dum certo príncipe: donde vem? quem é? pouco importa. O conde Henrique era francês. Assim, a época da primeira dinastia desmente por todos os lados, e de todas as formas, a ideia duma raça, possuindo, dum modo mais ou menos definido, a consciência da sua existência colectiva".

Quem era Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal?

"Era audaz, temerário até, pessoalmente bravo, qualidades nem tão comum no tempo, como a muitos acaso pareça... mas era seco, astuto, friamente ambicioso, sem quimeras nem ilusões. Submisso e humilde quando se achava vencido, subscrevia a todas as condições, aceitava todas as durezas;  para logo mentir a todas as promessas, rasgar todos os tratados, com uma franqueza ingénua, uma simplicidade natural, que chegavam a espantar a própria Idade Média".

De D. Pedro, o Cru, já antes citado, alargava a biografia horrorosa: "... tinha a paixão da justiça: era nele uma mania, como no seu avô fora a guerra: não prescindia de julgar todos os delitos. Os criminosos vinham à corte desde os  remotos confins do reino. Quando algum chegava, manietado, e o rei comia, levantava-se pressuroso da mesa, e trocava a vianda pela tortura. Prazia-se em ajudar e dirigir os algozes; indicava os expedientes e processos ara obter a confissão dos réus. Nunca abandonava o açoute: enrolado à cinta em viagem, tomava dele, e por suas mãos castigava os facínoras que no caminhos lhe traziam".

Valendo-se duma citação de Alexandre Herculano, Oliveira Martins despachava assim o retratos de três reis da primeira dinastia: "D. Dinis foi um avaro, Afonso IV um homem de juízo, Pedro I um doido com intervalos lúcidos de justiça e economia".

Dali passava aos Descobrimentos. Ora nós, jovens, não tínhamos sido insensíveis ao trovejar da epopeia de Camões e, sem excepção, sabíamos de cor os primeiros versos de Os Lusíadas. Além disso, o hino nacional, que cantávamos pelo menos todos os sábados de manhã, era igualmente  belicoso. Pense cada qual o que quiser, não deixa de ser realidade que, sobre esse período particular da História, nos encontrávamos razoavelmente indoutrinados .  As façanhas dos nossos marinheiros e soldados a caminho do Oriente, eram infinitamente mais excitantes do que as lamechices de Texas Jack, Jesse James e os restantes outlaws do Far-West.

Ora o historiador, com um simples parágrafo limpou-nos a cabeça das teias do heroísmo e, pelo menos no que me diz respeito, vacinou-me contra as versões oficiais passadas, presentes e futuras dos acontecimentos históricos: "Navegadores... a maneira como nos aventurámos ao mar retrata ainda a nossa fisionomia colectiva: fomos prudente e pacientemente ao longo das costas africanas, ou de ilha em ilha, no oceano, caminhando passo a passo, avançando sempre, tenazes, mas jamais temerários".

As descrições que faz das atrocidades, dos crimes, das ladroeiras e das selvajarias cometidas pelos grandes e pequenos homens dos Descobrimentos – extraordinária empresa que pouco mais durou que cinquenta anos – igualarão as feitas por outros historiadores sérios sobre as façanhas igualmente heróicas doutros povos. Espanhóis, holandeses, ingleses e franceses não se comportaram mais santamente. Mas isso pouco importa aqui. O que nos deixou de boca aberta foi a disparidade entre aquela verdade e a que nos tinham dado os compêndios, os mestres e as intermináveis comemorações dos Descobrimentos, da Restauração, do Império, do Dia da Raça e do aniversário de Camões.

Vasco da Gama perdia aquele ar de grão senhor  comedido, protector do indígena: "Um terramoto agitou o mar da Índia quando o Gama pela segunda vez o trilhava; e o almirante, imagem da bravura épica d povo português, acreditou e disse que até as próprias ondas tremiam com medo nosso – com medo dele!"

Para começar ordenou o saque de uma nau cheia de peregrinos que iam ou vinham de Meca, trezentos homens, mulheres e crianças e, acabado o saque, carregou-a de pólvora e fê-la explodir. Depois intimou o rajá de Calicut a que expulsasse as famílias mouras da cidade. Não queria expulsar? Vasco da Gama "ao fundear diante da cidade apresara um número considerável de mercadores do porto, mandou cortar-lhes as orelhas e as mãos, e amontoados num barco, foram com a maré varar na praia, levando a resposta à recusa do aflito príncipe".

Mas não só o Gama. Depois dele, Francisco de Almeida, Afonso de Albuquerque e outros vice-reis apareciam como gente da mesma estirpe. Sanguinários, fanáticos, movidos pelo duplo motor da fé e do lucro. Dê-se-lhes esse desconto: não era só a ganância da pimenta, do ouro, dos diamantes e o aumento do nome e honras do rei, mas igualmente  a pressa de pôr o Oriente de joelhos diante da Santa Madre Igreja.

"O domínio português – escreve Oliveira Martins – adquiriu logo de começo o carácter duplo que jamais perdeu, apesar de todas as tentativas posteriores de regularização e de ordem. Era no mar uma anarquia de roubos, na terra uma série de depredações sanguinárias... A pirataria e o saque foram os dois fundamentos do domínio português, cujo nervo eram os canhões, cuja alma era a Pimenta".

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in Portugal, a flor e a foice 

domingo, outubro 19

O príncipe, o pintor, a madama e o "gado"

Parecerá que misturo aqui alhos com bugalhos, mas foi o acaso. Andava à procura de uns detalhes sobre o principe Eugenio di Savoia (1663-1736), sobrinho do cardeal Mazarini, grande estratega e general mercenário que, ao serviço dos Habsburgos, foi “Il terrore degli eserciti turchi e francesi”.

Por vias travessas, através do pintor Cornelis Troost (1697-1750) acabei por “entrar” no prédio do Prinsengracht (Canal dos Príncipes) em Amsterdam, onde Madame Traëse (Thérèse) tinha estabelecido em 1708 o mais luxuoso bordel da cidade.

Para descansar das guerras o príncipe foi lá de visita em 1722 e vê-se a examinar o “gado”. O do cachimbo é o diplomata britânico Louis Renard. Cornelis Troost, que era vizinho, provavelmente assistiu e fez a gravura. Supõe-se que a madame seja a figura que, à esquerda, levanta o vestido da rapariga.



 

quinta-feira, outubro 16

Ajoelhados

 https://blasfemias.net/2025/10/15/o-veu-caiu-sobre-portugal-e-a-europa/

quarta-feira, outubro 15

Sempre o mesmo

Curioso, o acaso que nos faz abrir um livro(*) e reler, com um sorriso triste, esta ironia antiga. Mas de certo modo consola que o retrato do Portugal de 1871 nada tenha a ver, nem de longe, com o Portugal de 2025. Só um espírito azedo pretenderá o contrário:

“O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso… A ruína económica cresce, cresce, cresce… O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro.
De resto a ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro… Não é uma existência, é uma expiação. E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: “O país está perdido!” Ninguém se ilude… E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete, que de norte a sul, no Estado, na economia, na moral, o país está desorganizado – e pede-se conhaque!
Assim todas as ideias certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!”
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(*) Uma Campanha Alegre (vol. I)- Eça de Queiroz.