domingo, julho 9

Prece de um transmontano

The Last Sitdown - Clique

Publicado na VISÃO de 06-07-2017

Ter opiniões e saber doseá-las de acordo com os sentimentos vigentes, além de ajudar à paz de espírito facilita o ganho de uma aura de sabedoria e boa reputação. O que vai contracorrente arranja lenha para se queimar.
Bem me avisaram: se era meu intento escrever sobre Trás-os-Montes, levasse em conta que o caminho seguro seria não me desviar dos trilhos, carreiros e atalhos de cabras que gente de nome tinha palmilhado; referir de permeio uma ou outra citação mais saliente sobre a imponência ciclópica do fraguedo, a majestade das arribas, a emoção que causa recordar a temerosa correnteza que era o Douro, antes de ser domado pelas barragens.
Nesse quadro caberiam também saudosas referências ao cheiro da urze, ao chiar dos carros de bois,  ao porte imponente do gado de Miranda e, aqui e ali, como nos instantâneos da saudosa fotografia a preto e branco, salpicar imagens das velhinhas que, sentadas à porta, se vêem a fazer um inútil croché, sorrindo as boas-horas a quem passa.
Nada contra. O conselho era avisado, boa a intenção, se de alguma forma pecava era por esperar que com os meus olhos, sentimentos, e a memória que tanto me faz repisar, eu, embora sem de todo fazer tábua rasa das recordações e vivências, desse pelo menos um jeitinho. Limasse as arestas, não forçasse o desespero, concedesse como é grande a diferença entre o hoje e o trágico ambiente que foi o da província transmontana no tempo da minha infância e adolescência.
Não me custa fazer mea culpa, pois sei bem onde e porque razões exagero, quais são as dores, minhas e alheias, que me ensombram a paisagem que a outros aparece colorida, rica em matizes, quiçá mais conforme à da realidade. Todavia, quando assim procedo, não o faço com o desejo de criticar, diminuir ou sonhar impossíveis, mas tão-só para que fique  testemunho, com esperança de que as desigualdades e os sofrimentos se tornem história.
O acaso de vir ao mundo pouco depois do início do século passado, e desde então ter convivido em sociedades diferentes, e tratado com gente de toda a espécie, ora me surge como uma bênção e um privilégio, ora se assemelha a praga que me rogaram, pois horas há em que o ter visto e sentido muito não resulta em clareza, antes leva a confundir, fazendo-me avaliar o passado com os olhos do presente, exigindo ao mesmo tempo a impossibilidade de manter imutável o que então pareceu bom.
Ao olhar para o Nordeste transmontano, o chão onde tanto de mim se prende, é esforço grande a que me obrigo: o da tentativa de conciliar o que ambos temos de agreste e manso, irreprimível e descansado, cândido e violento, como se nos fossem natureza aquelas  misteriosas trovoadas de Agosto, que explodem de um momento para o seguinte, fazem noite no céu azul da tarde e repetem o dilúvio.
Mas se Trás-os-Montes, aparentemente, se acomoda ao seu destino, não se rebela nem queixa, sofre ser tratada como o parente mais pobre e desamparado de uma nação ingrata, onde o fausto da capital é de um contraste obsceno com a miséria e o abandono das suas aldeias, razão de sobra para que eu rogue pragas aos que disso têm culpa, e aos que no futuro farão igual.
Numa altura em que os Espírito Santo e os vários Sócrates rejubilavam, de tal modo me agoniou uma traficância que escrevi uma prece. O Senhor não me ouviu, e ainda bem, porque pouco escaparia à fúria. Cego de raiva, esqueci que com os pulhas, trafulhas e traficantes que saqueiam Portugal e o deixam arder, sofreriam também os pobres, os desempregados, os que sabem que vão perder o emprego, os idosos sem amparo, os que vivem no terror das contas e dos fins de mês, a pobreza envergonhada, e tantos mais.
Por isso não rezo agora por um terramoto ou ciclone, mas um banquete onde se reúnam os  oligarcas em data festiva, e que o refinamento das iguarias e dos vinhos a eles próprios surpreenda. Então, Senhor, bastará um anjo vestido de escanção que, sorrindo, lhes sirva o champanhe e a peçonha.