segunda-feira, julho 31

As motas de Gabriella

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Gabriella é um pecado mortal. Entre os vinte e poucos e os trinta e tantos, comem-na os machos com os olhos, desejam-na as devotas de Safo, mesmo os rapazes adeptos do amor grego lhe fazem vénia, sorrindo a tanta beleza e elegância. Sorriem-lhe também os idosos, que se voltam quando ela passa, recordando sonhos melancólicos, estroinices nunca vividas, desejos nunca satisfeitos.
Na nossa quieta rua de Amesterdão, não passa dia sem que à sua porta se vejam estafetas com grandes ramos de flores, ou a entregar caixas onde se adivinham luxos, perfumes, talvez daqueles bombons que custam um ordenado.
Vestida para a jardinagem, o desporto, festival rock ou evento de cerimónia, Gabriella é impecável no bom gosto, acrescentando sempre o pequeno toque que marca a distinção. Fora isso é um mistério. Sorri muito, fala pouco, supõe-se que tenha nascido num desses países turbulentos dos Balcãs, pois o seu rosto tem algo de eslavo. Mas como fala à perfeição umas quantas línguas, há quem arrisque que nasceu na Hungria, terra de poliglotas.
Tudo suposições. O que faz? Que rendas pagam o seu luxo? Para onde irá de férias? Tentam os vizinhos resolver essas e mais incógnitas, pois não se lhe conhece emprego, marido ou amante, e ora há semanas que desaparece, ora a vêem todos os dias a passear o cão.
Não se sabe se está no Facebook, pois ninguém lhe conhece o nome de família ou pseudónimo, e junto da campainha da porta lê-se apenas Gabriella. Houve atrevidos que tentaram pescar envelopes na sua caixa do correio, mas em vão, porque ela a equipou com uma tampa extra que impede o acesso e não deixa ver o que lá cai.

Finalmente, uma tarde de Maio passado resolveu-se o caso. Havia ajuntamento e gente às janelas, carros da polícia com as luzes azuis a girar, basbaques a apontar os telemóveis. Altiva, elegante como quem vai a passeio, e mostrando o alegre sorriso de sempre, Gabriella apareceu à porta. Trazia as mãos algemadas, mas com um gesto largo dos braços acenou a todos um adeusinho e entrou num dos carros.
Soube-se depois que era o cérebro de uma quadrilha internacional de ladrões de automóveis, que nasceu na Bulgária e se doutorou em engenharia mecânica. Perdeu-a o fascínio pelas motas. A alguém tinha feito espécie vê-la conduzir uma Ducati Multistrada Enduro, depois uma Ducati Superbike, depois uma Ducati Panigale, depois… Na sua garagem encontraram sete Ducati de tipos diferentes. Todas roubadas, mas de que ela, por paixão, não se tinha querido separar.
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Publicado na DOMINGO CM.

segunda-feira, julho 24

A cara que Deus nos negou

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É arriscado começar com uma anedota, não só porque haverá sempre alguém a dizer que é velha, como pela probabilidade de falhar o alvo. Se insisto é na esperança de encontrar alguma justificação para os sentimentos de que adiante tratarei.
Está, pois, um homem de meia idade uma manhã no quarto de banho, fazendo a barba, perdido em mil pensamentos, quando olha o espelho e, distraído, se surpreende a pensar: - Conheço este sujeito! Tenho a certeza que o conheço. Mas de onde será?
Acaba de barbear-se, lava a cara, aplica o creme, olha uma última vez o espelho, mas a pergunta continuará a obcecá-lo enquanto toma o pequeno-almoço, depois no metro, e só quando sai para a rua é que finalmente lhe ocorre: - Já sei! Conheço-o do barbeiro.

Por vezes custa a aceitar, mas sem dúvida  há alguma verdade na afirmação de que, passados os vinte anos, cada um é responsável pela cara que tem. No meu caso, com quase nove décadas a aturar-me a mim próprio e aos outros, incapaz de suficiente controlo sobre as emoções, escasso nas gargalhadas, com uns cantos da boca que tendem a pender, e sobrancelhas que por um nada se põem em arco, a minha cara nada deve à beleza. Se ao menos tivesse ângulos marcantes daria nas vistas, atraindo inveja, mas também esses componentes lhe faltam. Sobre tudo isso, a necessidade de uma operação feita há anos, além de ma ter deixado assimétrica, resultou em que se entorte quando sorrio.
Felizmente, o nível da minha vaidade sempre foi e continua dos mais baixos, e para o espelho só olho quando de longe a longe, também distraidamente, faço a barba.
Uns meses atrás, porém, ao dar com o meu retrato numa revista, surpreendi-me a resmungar, ‘Está um bocado parecido, mas não sou assim.’
Claro que sou, só que nesse e noutros casos o resultado tem menos a ver com a minha cara, do que com a dificuldade de tomar uma pose, e ainda, como já  apontei, porque me custa esconder o que sinto. Acontece que se o fotógrafo começa aos saltos, se agacha, ajoelha, se retorce, vira e revira a câmara ‘à procura do ângulo’, ora fotografa de alto, ora se deita no soalho, o momento fatalmente ocorre em que as sobrancelhas se me põem em arco, os cantos da boca num parêntesis invertido e as bochechas acentuam a assimetria.
Assim sendo, dado não sermos todos fáceis de retratar, e haver poucos  fotógrafos com o génio de Annie Leibovitz ou Yousuf Karsh,  teremos de nos ir contentando: uns com o modesto talento que Deus lhes deu, outros sem a bela cara que Deus nos negou.
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Publicado na DOMINGO CM.

sábado, julho 22

A mesma terra

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A mesma terra, o mesmo sentir.

sexta-feira, julho 21

Raposas

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De vez em quando a tentação é grande, tanto mais que parecem  inconscientes de como seria fácil assentar-lhes uma bordoada no ego, na vaidade, naquela importância de pechisbeque. Mas no silêncio está a paz. Deixa andar.
Empurram-se na ilusão de que têm de ser sempre os primeiros, os do lugar de honra, que o mundo nada mais faz do que olhar para os mais dez isto, os mais dez aquilo, quem tem estrelas, e quantas, quais, onde.
O que tarde ou nunca aprendem é a esconder a ganância, a inveja: mesmo quando sorriem descaem-lhes os cantos da boca, na tez ganham o amarelo do fígado envenenado.
São moles na espinha e no aperto de mão, caminham de lado com manhas de raposa, a risada que conseguem é um gargarejo que sai meio entupido, sincopado de bílis.
Que o Senhor a todos favoreça.
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PS. Foi publicado aqui em 31-03-2014, mas vem de novo a propósito.

segunda-feira, julho 17

Num banco da Avenida

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Uma tarde, meses atrás,  levado pelo calor e pela fadiga da caminhada que tinha feito em busca de ruas da Lisboa do meu passado, mas em parte maior por uma combinação de nostalgia, tristeza, enfado e desalento de compreender o que vejo e sinto do nosso país, repeti o gesto que noutra tarde, setenta anos antes, olhando em volta, maravilhado pela cidade que só conhecia dos livros, me levara a sentar num banco da Avenida da Liberdade.
Seria exagero chamar-lhe ritual ou exorcismo, pois não é, antes um acesso de saudade que, quando lá passo, uma vez por outra me faz parar no espaço que vai da Cervejaria Ribadouro ao Hotel Tivoli, tendo a meio o Cinema São Jorge, três  pontos com marca no historial das minhas muitas andanças, dentro e fora da terra onde nasci.
Sentei-me, pois, essa tarde dos meus dezassete anos, sozinho, admirado com a majestade das árvores, os poucos carros que então me pareceram muitos, os edifícios de uma imponência e arquitectura que desconhecia, a estranheza de não ver os pobres que esmolavam nas ruas de Viana, onde então estudava, ou os tantos que tinham sido meus vizinhos no Monte (dos) Judeus, em Gaia, o largo onde nascera, e onde ainda dois anos antes vivia.
Aqui e ali, as mãos atrás das costas segurando o cassetete, rondava lentamente um polícia. Surpreendeu-me a azáfama dos varredores, que eram muitos de ambos os lados da alameda. Atentos ao chefe, uns varriam apressados as folhas caídas, enquanto outros, segurando grandes mangueiras que tinham na ponta agulhetas de metal, empurravam o lixo para os bueiros das valetas.
Aquilo era novidade para mim, como também me pareciam sinal de poder e progresso os sujeitos que, a julgar pelo fato escuro e o modo severo, deviam ser pessoas importantes, e via discutindo à porta do que por certo seriam repartições ou firmas de peso.
Levantei-me do banco, atravessei a avenida e, dando-me vagar para encher os olhos, subi até ao Diário de Notícias, ficando ali a admirar a fachada, excitado com a certeza de que os homens que entravam e saíam, tirando apressados o chapéu, ou apertando mãos, eram jornalistas, a nobre profissão que eu não duvidava que seria a minha.
Dessa vez faltou-me a coragem de entrar, o que faria mais tarde, seguro de que, ouvindo o meu sonho, o director chamasse um contínuo para me mostrar onde era a sala da redacção. No tampo de uma escrivaninha veria finalmente o aparelho que eu mais cobiçava, mas em que nunca tocara, e só conhecia dos anúncios: uma máquina de escrever.
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Publicado na DOMINGO CM.