quinta-feira, fevereiro 27

Bicicletas

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Quantas há em Amsterdam? Ninguém as contas. Sabe-se, sim, que o ano passado se tiraram da rua 73.745, mas só 42.674 foram recuperadas pelos proprietários. Diariamente, as bicicletas da cidade percorrem um pouco mais de 2 (dois) milhões de quilómetros, e a última estatística (2009) dava conta de 508 ciclistas hospitalizados com ferimentos graves.
Que ainda haja turistas que alugam bicicletas e se metem a pedalar por ruas e canais, desafia o entendimento.
As ilustrações são de Jorris Verboon,
retiradas do jornal Het Parool.

segunda-feira, fevereiro 24

Correntes d'Escritas

Lá estive, foram muitas e bem felizes as surpresas, mas vai demorar a que me recomponha das impressões e reveja o que pensava de festivais literários. Se puderem ser todos assim, com gente assim, organização sem falha, cortesia exemplar, estamos de parabéns.
A ideia era outra, mas não pude ir além da falação que segue.

Porque sou avesso a minúcias, apressado por natureza, e atreito a momentos de distracção, acontece-me com frequência tropeçar em detalhes e conclusões, interpretar  errado o que leio ou o que me dizem.
Sofro também de uma dose anormal de desconfiança, de maneira que, ao receber o tema desta mesa, "Não são minhas as correntes que escrevo, é outro que as escreve em mim", não li o que lá estava.
Trocando o "em mim", pessoano e esotérico, por um desconfiado "por mim", fui levado a supor que os autores do tema, desejando criar neste salão literário um suspense de telenovela, de certeza esperavam que cada um de nós, vestindo o sambenito do condenado em auto-de-fé , viesse revelar o nome do ghost writer, do amanuense a quem paga.
Se uma segunda e mais cuidada leitura, me permitiu descobrir o erro em que tinha caído, de forma alguma deixei de me preocupar.
Pode ser que me engane, pois não vejo fumos de incenso, nem a mesa pé-de-galo, mas isso não obsta a que, com falso pretexto, me tenham atraído ao que, sob a aparência de um festivo evento das Letras, seja de facto uma refinada sessão espírita.
É que só assim explico a inquietante curiosidade de quererem espiolhar acerca desse outro que, pelos jeitos, escreve em mim.
Será que isso de facto acontece? Acreditam Vossas Mercês em diabinhos que sabem dactilografia e sintaxe? Ou que, escondidos nas profundas, se agitam na massa cerebral incubus dados à Literatura? Terá alguém trazido do Oriente  uma poção mágica que os organizadores distraidamente beberam?
Seja como for, e com pena de não responder pela afirmativa, devo confessar que, na vivência do meu corriqueiro dia-a-dia, não há lugar para o  sobrenatural. É tudo trabalhinho, paciência, teimosia, dores nas costas, cefaleias. Frustrações também. E perguntas sem resposta.
Tivesse eu uma diabinha ou um satanás a escrever em mim! Que bom seria!
Infelizmente, assim não é.
Herdeiro do pecado original, na acepção bíblica do termo sou um desgraçado, aquele a quem foi negada a graça do Senhor, e por isso tem de ganhar o pão com o suor do rosto, e alinhavar ele mesmo a prosa que, talvez por isso, raro sai a preceito.
Todavia, a franqueza obriga-me a fazer uma ressalva. É facto que numa ou noutra altura, abrindo ao acaso um livro meu, ou lendo uma citação que alguém de mim fez, tem-me acontecido dar com uma frase que não recordo e me parece escorreita.
Durante um segundo, talvez dois, sou tentado a ver ali a misteriosa intervenção do sobrenatural, e a sentir-me ungido pela divindade, mas pouco tarda a que caia  em mim, reconhecendo os sintomas da amnésia.

Isto dito, creio que se impõe a conclusão de que foi erro o terem-me convidado para uma tertúlia em que me vou ver mal para participar.
E deixem que termine com um aviso. Embora não disponha de um outro que em mim escreve, de forma alguma pretendo negar o fenómeno, é mesmo provável que entre os colegas de mesa haja mais que um abençoado.
Se assim for peço que ele, ou ela, entre no assunto de mansinho, porque os anos e a pressão arterial me impedem as emoções fortes.
Sei que resistiria mal ao choque se, a modos de aparição, eu visse materializar-se junto do colega o outro que nele escreve. E estou que, junto com o susto, um ataque de inveja acabaria comigo.
 

segunda-feira, fevereiro 17

A Flor e a Foice

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Pôs-se a caminho trinta e nove anos atrás, mas finalmente chegou, dentro em pouco estará aqui e ali. Provando, talvez, que numa ou noutra rara ocasião, até aquele que por desânimo deixa de esperar, ainda alcança.

sábado, fevereiro 15

Lisboa 1967 - um tríptico

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Com o título Lissabon este conto foi incluído na antologia Meesters der Portugese Vertelkunst (Mestres do Conto Português), compilada e traduzida em Neerlandês por August Willemsen (1936-2007), editada por Meulenhoff Nederland B.V., em Amsterdam, Setembro de 1970.
*  *  *
Oferecido auxílio às vítimas da região assolada pelo temporal. S. Exa. visitou, S. Exa. viu com os próprios olhos, apertou mãos, fez perguntas, os fotógrafos registaram a compaixão de S. Exa. e da Exma. Esposa.
Vai ser preciso mandar limpar o sobretudo presidencial chapiscado de lama. O  secretário tenta com o lenço, acocorado, aos pulinhos, S. Exa. não pára.

- E a sua mulher também? Coitado. Como se chama?

- Manuel.
- O nome todo - intima o secretário.
- Costa.
- Costa - ecoa o secretário.
- Ah! Costa. Manuel Costa. Muito bem.
Ao enxergar o grupo a Rosa Brejoeira deita o lenço pela cabeça, dá uma cotovelada na mãe para que se mexa - Ande, porra! Já estão a tirar os nomes! - corre para perder o fôlego, ajoelha-se, vai-se agarrar ao sobretudo, mas o guarda levanta-a com um safanão, Vens pr'àqui descalça? Põe-te a andar!
A mãe ouve mal e não compreendeu, vai atrás do Manuel, "um dos sinistrados a quem S. Exa. demonstrou especial carinho", amanhã na primeira página, com fotografia e tudo.
O Manuel aponta a ribanceira por onde a enxurrada desembestou, levando casas, hortas, o armazém do Nunes, a minha Maria, o Antoninho Coxo, e sorri, esquecido da dor verdadeira, o velho põe-lhe uma mão no ombro, Vossincelência num faz ideia, botámos a correr!
- Pobre homem!
A porta fecha-se, as motas roncam, S. Exa. acena. O regedor tinha apertado o Manuel para que falasse do telhado da igreja, e o sacana esqueceu-se.
- Então?
A Brejoeira olha, volta a olhar, não acredita nas mãos vazias do cunhado.

*  *  *
"Porque somos uma grande família". Somos. No Natal. Mas se alguém os tira do quente esquecem, não vão, mandam os pequenos como ele, e se der sarilho é contigo. Quem quer vai? Quem não quer... Sabedoria popular uma bosta! O Zé aprende depois dos sessenta, quando aprende, os pés na soleira do Eterno.
O barbeiro dá mais uma escovadela, arrastada, pró-forma, chamando a gorjeta, quer saber se "lá em cima", hein? Disseram-lhe que o Pereira, se não for desta, mais dia menos dia…
- Onde?
- Mas houve alguma coisa? - apertam-se as mãos, a moeda cai no bolso, tilinta nas outras.
- Uma vistoria.
-Foi o que ouvi dizer, mas com a força que tem ninguém lhe mexe.
Despede-se, acena, e vai a pé, o director só lá está às quatro – Mas o que é que vou dizer? – tira o casaco, desce a Avenida, um calor que até o alcatrão derrete, fedor dos autocarros.
"Agentes Secretos em Luta de Morte na Sibéria, Colorido, Maiores de 12 Anos, Vibrante Filme de Suspense e Acção Heróica!". No Politeama.
As paredes do Alcazar arrombadas a canhão, El general Moscardó de barba à Kaizer e monóculo. O Cine-Royal a chorar, plateia nesse tempo a três mil réis, pronto a alistar-se também se a bofetada do pai – "Eu é que te dou as guerras, palerma! – não lhe tivesse mudado o rumo. E razão tinha o velho, até dizem que o Hitler também fez coisas boas. A China. Agora é morra a China, depois é via a China. A gente sabe lá!...
- Imperial.
O empregado não responde, limpa o mármore, pergunta para dentro:
- Está aí o Mário do táxi?
As inglesas estacam à porta, hesitam, passam assustadas, ninguém as avisou,  Ó miss!, olhos revistadores, os reformados confirmam que também no tempo deles as francesas que vinham por aí… As mais das vezes nicles, garganta.
- Então essa imperial? Sai?
- Quem perguntou pelo Mário?
A beber, e quase se engasga, ocorre-lhe que na gaveta do Simões, antes de lhe dar o ataque, recibos, facturas. E não me lembrei! Ele há cada uma!
- Onde é o telefone?
Os olhos convidam-no a pagar antes de mostrarem a cabine atrás da porta. Conta o dinheiro, acrescenta cinco tostões e volta as costas.
- O senhor dá demais. Olhe que ainda empobrece.
- Pode guardar – e entre os dentes Saloio de merda! Não fosse por coisas dava-te um coice que até…
O outro levanta a tampa do balcão, avança: - O que é que o senhor disse?
O patrão agarra-o, leva-o de volta: - Deixa lá isso, Barbosa! Onde está o Mário?
Os fregueses entreolham-se, franzem os lábios.
- Está lá?... Cordeiro. Liga-me à secretaria, faz favor. Ó Mariazinha… O Cordeiro, filha! Sim! Chama o senhor Pinto. Uma voz esquisita? Eu?... Chefe! Lembrei-me da gaveta do Simões. Estão lá. Tenho a certeza. Foi em Julho. Antes dele ir para o hospital. Quer que volte, chefe? Já não é preciso?
Agradeceu e, com vagar, passou diante do balcão, parou à porta, só então acendeu o cigarro. Baforada à esquerda. A dar tempo ao filho da puta, se quisesse meças. Baforada à direita.
Nesse momento tocaram-lhe o braço e o corpo retesou-se-lhe, mas era o engraxador a pedir licença.
Rossio. Chiado. Rua do Ouro. Rossio. A mesinha da esplanada, a bica, um mar de gente…Yes, Merci, Jawhol, Yes, Tak, Merci…Procurou conhecidos que não via, desdobrou o jornal. "O cortejo saiu em direcção ao Largo do Carmo…" Estava a tempo, ia à segunda do Império. "Adultos. Technicolor. . Humor negro, branco e cor-de-rosa, num espectáculo faustoso e de sátira apimentada… Adoráveis Conspiradores c/ Dianna Rigg (a famosa Mrs. Peel da série da TV 'Os Vingadores') 18.30".
Fazia horas, bebia outra bica. Os recibos do Simões! Nunca mais se tinha lembrado dos estupores dos recibos!
Elas sentaram-se na mesa ao lado, e para que não se espantassem evitou olhar. Não precisava de bruxa, sabia, tinha de acontecer, hoje talvez! Agora! A fazer que não via o dedo que lhe ia tocar na manga, os olhos no jornal. "Conjura para matar Yasser Arafat.. Amã, 7…" Não se mexe, controlado, não olhes, não olhes, os nervos aguentam mal, o dedo hesita… Trinta anos à espera! Ó Brigitte Bardot! Ó revistas alemãs com elas na capa!
A unha roçou-lhe o braço.
- Yes?- britânico nada de Ièsse. Yes! E cara condizente, cara de habituado àquilo, de quem deita o anzol dos olhos, elas mortinhas por ferrar. Cara de farto.
E o bijuzinho diz assim: - Oh!
Um quarto de volta na cadeira, avaliação fulminante no frente a frente. A outra é   recheada, de perna curta, os cantos da boca traem um diferença de idade para mais. Escolhe, larga o sorriso - ouviu dizer e não esquece, as cobras também hipnotizam assim, com os olhos muito fixos - e atira-lhes outra vez: - Yes?
Ela sentiu, ataranta-se, estende o mapa, baixa a cabeça, de certeza com medo que aquela telepatia acerte no alvo. Se sabe o caminho para Belém. E gentil, doce, carinhosa, fache favorre, Béléme, os basbaques em volta a apreciar, trombudos, ciumentos, "estes gajos que se fazem às camones!"
Não olhes, não te rales. Mãozinha delicada, branca, femeal. Retira a dele com medo de perder as estribeiras, começar ali o que está a planear para depois do anoitecer: o fadinho, os becos sem luz, o Castelo está fechado, vamos então a Alfama! Cuidado não escorregue, estas calçadas são a desgraça dos tacões Yes. Espere. Há-de enlaçar então a cinturinha quente, requebrada.
Sem apoio o mapa cai, riem daquela sem-graça, baixam-se ao mesmo tempo e as cabeças tocam-se, ele aproveita para dizer que ninguém vai a Béléme, uma torrezita antiga, vê-se melhor da ponte, de longe até é mais bonita.
Azeda, desconfiada, a gorda ainda por cima tem ciúmes, de certeza tem, não faz caso do que ele diz, nem sequer olha, segreda qualquer coisa à companheira, que sorri, já esquiva.
Vão embora e ainda tenta, mas sem entusiasmo: - Se quiser que as acompanhe… É sempre a direito até ao rio, e no Terreiro do Paço, com o elétrico…
Ela acena que sim, mas não compreendeu, viram-lhe as costas e atravessam o Rossio.
*  *  *

- É a primeira vez que me constipo este ano. No Verão! Imagina!
O Chagas não responde, porque ao sentar-se sentiu um objecto duro entre a almofada e a cadeira, procura localizá-lo.
Adivinhou e ia ajudar, mas conteve-se: - Se me chego, amanhã estás de cama. Isso deve ser algum brinquedo, tenho uns netos levados da breca! Não respeitam nada!
Era um martelo. O Chagas pô-lo cuidadosamente no chão e voltou a sentar-se, contrafeito. Sabia mais ou menos o que ia acontecer, a razão do convite. Adiando: - Se não fosse o prédio em frente tinhas aqui uma linda vista.
- É verdade. Puseram esse trambolho e não se vê o rio.
No momento de silêncio um correr de passos, uma voz de mulher atrás da porta: - O avozinho está com um senhor.
- Quantos tens?
- Ainda nenhum.
- Eu cinco. Dois da filha. Três do rapaz. Cinco!
Falava dos netos, ia falar do filho, não podia deixar de ser. Ficou à espera, incomodado, eram companheiros de tantos anos, mas quando tinha dito ao director que o Pereira o chamara – Com certeza por causa do rapaz- viu-o mudar de cor – Que não ponha aqui os  pés! Tenho muito respeito pelo pai, mas esse filho da puta…"
- Como vai o jornal?
A pergunta apanhou-o desprevenido Estava preparado para ouvir misérias, lástimas, dificuldades, tinha-se couraçado - Mas como? Uma camaradagem da vida inteira! - evitava olhar de frente aquele homem magro e desmazelado, a tossicar, envolto num roupão sem cor, as farripas de cabelo e a pele traindo mau passadio, aflições, horas de angústia.
- O jornal? - encolheu os ombros. - O costume. Uma trabalheira, menos gente…
Podia ter sido um intelectual brilhante, dessas figuras que deixam marca nas Letras, na Política, mas circunstâncias, fraqueza interior, pouca sorte, desânimo, quem poderia dizer? - os anos tinham passado, as ocasiões, a teimosia em escolher o lado dos vencidos roera-lhe a vitalidade.
Escritor falhado, os poucos livros classificavam-no em segunda linha, ignorado do público, posto de lado pelas antologias, os amigos rareando, supersticiosos, temendo que a pobreza contagiasse.
Encarou-o e, naquele instante, vendo-o sorrir, não seria capaz de recusar.
- Parece que realmente vamos ter mudança. Nos últimos tempos vocês têm podido escrever muita coisa. Mesmo sobre o caso do bispo.
- Não te iludas. É pra inglês ver.
Ansiava que lhe dissesse o que queria, deprimido pela indigência que ressumava de tudo, dos móveis caducos e desemparelhados, dos remendos, dos quadros, do cheiro da cozinha.
- Lembrei-me… - procurava qualquer coisa, pôs os óculos - Rosalinda! Eu tinha aqui...
A rapariga assomou, fez um aceno: - O que é que quer?
- Aquelas folhas que estive a ler…
- Não são essas está aí ao lado?
Apanhou-as com dificuldade, enquanto ela fechava a porta:
- É a minha nora.
Não soube que responder. O Pereira! O rapaz cheio de vida, que no dia do Armistício, desprezando o risco, marchara à frente de todos aos vivas à Liberdade, e que ao encontrá-lo o tinha abraçado, incapaz de esconder as lágrimas, Desta vez há esperança, Chagas! Há esperança!
- Tenho aqui uma coisa… - a tosse fê-lo parar, escarrou no lenço - Uma coisa que em minha opinião não está mal, e se pudesses… Lê este bocado.
Queria desculpar-se, dizer que tinha pressa, sair, mas não foi capaz e ia começar a ler quando ele o interrompeu:
- Espera. Isso não tem nada a ver. Chamei-te pra outra coisa, pra te falar…
- Do rapaz?
- Não. Esse é novo, duma maneira ou doutra lá se há-de arranjar, e se não ganhar juízo, pior pra ele. Mas ganha. O que me preocupa… - calou-se, mrtificado, baixando os olhos:
- Estou muito mal, Chagas. Tenho medo!
- Mas de quê, homem?
Um silêncio insuportável. Tinham-se levantado, comovidos, mas o doente afastou-o com um gesto:
- Não quero que pegues alguma coisa. Leva isso. Vê se vale a pena.
Apertou-lhe a mão com força, como se tivesse de encorajá-lo, mas só soube dizer: - Então! Então!
 


quarta-feira, fevereiro 12

O incêndio do Chiado


25 de Agosto de 1988, seis da manhã. Oiço na rádio que o Chiado está a arder. O noticiário das sete fala de tragédia, e de pronto ligo para de Volkskrant, o jornal de Amsterdam em que há anos colaboro. Que me despache. Tenho carta branca e felizmente a Universidade entrou  de férias. Às onze estou no avião, às quatro na  Portela, quando o táxi me deixa no Rossio corro e não quero acreditar, demoro a dar-me conta do que ali acontece.
O cartão de imprensa ajuda a passar a barreira da Polícia. Olho, olho. Esqueço a máquina que tenho na mão, só acordo quando vejo outros a fotografar.

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terça-feira, fevereiro 11

Bruxaria

Que terá acontecido com este blogue? Desapareceram os "Seguidores", o Sitemeter conta as visitas a partir da hora de Moscovo, o "You Tube" é uma mancha preta...

segunda-feira, fevereiro 10

Recordando

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Como se aproxima o aniversário, é bom recordar. Com o título de "Bewust Wording in Portugal"(Tomada de Consciência em Portugal), realizou-se de 16.12.1978 a 28.01.1979,  no Museu Boymans-Van Beuningen, de Rotterdam, uma exposição de fotografias que Arno Hammacher (1927), fotógrafo holandês de renome, tinha feito em Portugal logo depois da Revolução de Abril.
A mim foram encomendadas as legendas das fotografias e, para o catálogo, o texto que segue,  que nessa altura causou algum asco nas massas que já eram politicamente correctas antes de se ter criado a expressão.

Acerca da revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974, a leitura dos jornais de há quatro anos deixa-nos hoje a mesma impressão de então: a de uma revolução exemplar.
Exceptuado o número relativamente pequeno dos que, devido a ela, sentiram algum desconforto, ou que, muito temporariamente, se viram privados do gozo de privilégios; postos também de parte os outros, que a idade e o uso do poder tinham amodorrado, e a quem delicadamente se perguntou se um curto e confortável exílio no Brasil não lhes perturbaria os hábitos – tirante isso, pois, o balanço final da revolução só pode ser considerado como vastamente positivo.
Recapitulemos: informados com suficiente antecedência – dado que jamais revolução portuguesa se fez em segredo – os grandes financeiros, os latifundiários, os muito e até os menos poderosos industriais, todos eles puderam pôr a bom recato no estrangeiro o essencial das suas fortunas. O que deixaram, ou era imóvel ou, em consequência dos capitais retirados, estava destinado à falência.
Os dois ou três milhares de agentes da PIDE, pilar fundamental do regime fascista, e que a si próprios se encarceraram para poderem escapar à cólera do povo, foram depois, ou julgados sem culpa, ou gentilmente ajudados a escapar das prisões, não um de cada vez, mas às centenas.
As Forças Armadas, que durante mais de uma dezena de anos tinham lutado contra os movimentos de libertação de Angola, da Guiné e de Moçambique, resgataram essa mácula ao tornarem-se o braço de uma revolução sem precedente histórico: a de um exército de um regime fascista que restaura no seu país as liberdades democráticas.
E desse modo, sem violência nem sangue – que são dois ou três mortos em semelhante ocasião? – a revolução portuguesa foi, durante cerca de ano e meio, a criança mimada e gasalhada da opinião pública mundial. Apontaram-na como exemplo aos revolucionários barbudos e sanguinários da América Latina; desenvolveu-se a teoria de que os cravos eram provavelmente mais eficazes e menos barulhentos que as metralhadoras. Ainda se encontravam entreabertas as fronteiras, e já de todo o mundo acorriam a Lisboa os turistas revolucionários, certos e seguros que semelhante ocasião não era de perder; verdadeira benesse, a possibilidade de, sem perigo de arriscar a pele, tomar parte na folclórica agitação que se seguiu: pequenos golpes, meios golpes, contra golpes, as spinoladas, a balbúrdia dos regimentos descontentes.
Anotando, fotografando, filmando, eles sentiram o delicioso calafrio de, aqui e além, assistirem ao nascimento de um embrião de soviete: soldados, camponeses e operários um momento irmanados.       
Correram ao Alentejo, desesperados de que a ocupação das terras não fosse imediata e total. A tinta vermelha escasseou no mercado. Sociólogos, peritos da política, jornalistas e historiadores, sentado no conforto de Amsterdam, Copenhagen, Hamburgo, Uppsala, pegaram em réguas e dividiram o pobre e desconhecido país em duas grandes zonas nitidamente cortadas pelo Tejo: a norte, uma miserável plebe conservadora, supersticiosa, analfabeta, sofrendo a canga do clero e dos caciques; a sul, o extenso Alentejo liberto do jugo capitalista, e onde as papoilas, as canções vitoriosas e o entusiasmo dos "campesinos" anunciavam um formidável amanhã.
A Lisboa tinham regressado venerandas figuras de oponentes, e outras, menos venerandas, ainda ágeis e habilidosas, dispostas a não deixar perder migalha do bolo que, infalivelmente, seria repartido.
Condição mais ou menos essencial era 'rótulo de "desde sempre grande lutador antifascista. Ora se neste mundo há coisa que se cole sem dificuldade, a etiqueta política leva a palma ao selo do correio, e para ambos basta a própria língua.
Misturados aos verdadeiros exilados, ou escondidos pela sombra dos que, como muitos comunistas, tinham sofrido dezenas de anos de prisão, todo um cortejo começou a passar e a repassar pelas antecâmaras, pelos ministérios, pelos bancos e jornais nacionalizados, pelas empresas que o Estado retomara, gritando as próprias virtudes, manobrando sem descanso até alcançar o nicho, a fatia ou a migalha desejada.
Os militares, que tinham sido o braço executor, e a quem durante algum tempo se deixou a ilusão de que eram os verdadeiros detentores do poder e da legalidade democrática, não tardaram a ser ultrapassados pelos que, mais sabedores da política, e mais ao corrente do equilíbrio das grandes potências internacionais, apenas aguardavam a passagem daquela febre que sabiam passageira.
No meio de tudo isto, atónita e de boa-fé, a grande massa popular deu largas ao seu entusiasmo no dia da revolução e, no 1o de Maio que se seguiu, voltou à rua num espontâneo, grande, caloroso movimento de alegria, esperançada de que as promessas seriam cumpridas, de que as palavras eram sentidas, de que para a felicidade e o progresso bastava a liberdade que lhe prometiam os novos líderes.
A demagogia não é um exclusivo dos políticos portugueses e, infelizmente,  por razões e medos bem compreensíveis, a memória do povo é curta.  A promessa de que a democracia e a liberdade resolveriam tudo', e de que o país se encontrava "em marcha para o socialismo em liberdade", iguala em pouca vergonha a que já lhe faziam no princípio do século os agitadores republicanos, ao afirmarem que a solução dos problemas do país, que então, como hoje, se encontrava às portas da bancarrota, dependia de "matar o rei e pôr o bacalhau a pataco."
Esse raciocínio, longe de ser inocente nas suas intenções, teve como resultado uma república parlamentar que, em dezasseis anos de existência, conheceu sete eleições gerais, oito presidentes da República e quarenta e cinco governos, durando cada um destes a média de quatro meses. Não é, pois, de estranhar, que a chegada de Salazar ao pode, no início dos anos 30, tenha dado a muitos um sincero sentimento de alívio.
A legalidade e a necessidade de um regime democrático em Portugal não são aqui ponto de discussão, e nada poderá justificar o retorno a um odioso passado. Mas só um tolo ou um indiferente poderão ficar insensíveis perante a situação de um país onde a palavra crise, perdendo o seu significado político de agravamento de uma situação, passou a ter o significado que se lhe dá nas peças de teatro, quando a intriga se intensifica, levando a acção dramática a uma catástrofe.
Que dizer de um regime democrático que, à semelhança do seu antecessor republicano, é um modelo de incompetência, de incapacidade, de amadorismo, e que em cinquenta e três meses de existência conhece dez governos?
Que simpatia se pode ter por governantes para quem o nepotismo, a venda pura e simples de favores e protecções, os negócios escuros, o contrabando, a corrupção, o interesse pessoal e familiar têm primazia sobre o interesse público? Como desculpar os estadistas que tornaram Portugal um país onde de novo há miséria e fome?
Que fizeram eles das grandes reservas monetárias que mantinham o escudo uma moeda forte?
Como explicarão a vergonhosa tragédia de que em Lisboa, com 20% da população portuguesa, um terço das pessoas habite em partes de casa ou bairros de lata, e cerca de 200.000 vivam em quartos alugados?
Os dirigentes fascistas não tinham que dar satisfações: governavam pela força, e a revolta era o corolário inevitável. Mas a todos estes homens, eleitos, escolhidos, designados segundo as regras do sistema democrático e parlamentar, que se dizem e querem defensores íntegros dos princípios da democracia, não é somente necessário pedir-lhes contas: é imperativo que as prestem. É urgente que o povo os julgue antes que seja tarde, antes que se torne real o fantasma do governo autoritário com que eles nos ameaçam, como se a nós, lesados, ainda nos coubesse castigo.
No contexto sociopolítico português dos anos recentes, sobressai um certo número de factores cuja importância nem sempre é tomada em consideração, ou aos quais, pelo jogo dos interesses imediatos, é dada a interpretação que melhor serve dos ditos interesses.
Se nos limitamos ao período compreendido entre a guerra colonial, no início da década de 60, e a actualidade, o mais saliente desses factores é o fenómeno emigratório.
Velha constante da sociedade portuguesa, a emigração das duas últimas décadas  tomou as proporções trágicas de uma diáspora. Os emigrantes são é menos impressionante pelo número, que ultrapassa os milhões, do que pelas terríveis e imponderáveis consequências que a sua partida acarreta para a pátria.
Em primeiro lugar são eles, fora de dúvida, o grupo mais dinâmico da população. Se é verdade que para alguns, por exemplo os desertores, a emigração foi uma opção principalmente política, para a grande massa o movimento de fuga foi causado pelo mais primitivo dos medos, o da fome, e a vontade de um futuro menos miserável. Não partiram como os emigrantes holandeses após a Segunda Guerra Mundial, trocando um relativo conforto e segurança, pela perspectiva do enriquecimento. Os portugueses não fugiram para enriquecer, mas para se assegurarem uma sobrevivência.
Porém, sem eles, o país reduz-se a um depósito de mão-de-obra barata e disponível. O seu trabalho serve para enriquecer outros, e o seu retorno apenas tornaria mais agudos os problemas existentes. E, tal como acontecia na última década, as elevadas somas de dinheiro que os emigrantes remetem, e que pagava então os custos da guerra colonial, é hoje uma das imprescindíveis e escassas fontes de receita de que dispõe o tesouro público.
Daí resulta um dilema: sem homens dinâmicos o país não pode prosperar, e sem o dinheiro que os emigrantes lhe mandam, o país não tem com viver.
Outro factor necessário para a compreensão da realidade portuguesa actual é conhecer a composição da classe dirigente. É um facto indiscutível que o regime salazarista, com a repressão policial, a Censura e o apoio da Igreja, logo criou uma Oposição,
A verdadeira revolta, co  as suas trágicas consequências, os assassinatos, as torturas, as prisões, a vida clandestina, conheceram-na desde o início da ditadura os marinheiros, os operários da zona industrial de Lisboa, do Barreiro, da Marinha Grande, e os camponeses do Alentejo. O resto do povo vivia entre o medo e a miséria, o que bastava para amordaçá-lo.
Uma parte da burguesia, menos enfeudada ao regime, limitou-se, por sua vez, a uma oposição académica e bem educada, esperando pelo fim dos anos 60 para lhe dar um carácter aberto, mas mesmo assim esporádico. Os poucos homens que nela tomaram parte distinguiram-se mais a título pessoal, de como membros das várias e divididas correntes da Oposição, a qual parecia mais interessada na discussão de minúcias ideológicas, do que no verdadeiro e urgente combate antifascista.
Por sua vez, os partidos políticos, com excepção do Partido Comunista, fundado em 1921, datam todos do período posterior à revolução de 25 de Abril de 1974. O facto do Partido Socialista ter sido fundado na Alemanha em Abril de 1973, quando a iminência da queda do regime era previsível, assemelha-se mais a um oportunismo político, do que à união de indivíduos que partilham uma convicção e se preparam para a luta.
De modo que, mau grado as aparências, o que aconteceu em Lisboa a 25 de Abril de 1974, não foi exactamente uma revolução, mas um mudar de personagens.
Semelhante raciocínio pode parecer absurdo, e até contraditório da realidade evidente, indo também de encontro à imagem pura e idealista da revolução dos cravos. Todavia, se ela foi pura e cheia de ideais para alguns que a fizeram, resta provar que tenha sido pura e desinteressada para muitos que a usaram como escada que leva ao poder e à opressão.
Detenhamo-nos um instante para uma breve revista dos acontecimentos. O regime que Caetano herdara de Salazar continha em si todos os germes da putrefacção. O seu fim era, simplesmente, uma questão de tempo e oportunidade. A guerra colonial, além de isolar o país internacionalmente, limitava-lhe os escassos mercados de que dispunha, concorrendo para que os capitalistas, os industriais e os comerciantes mais importantes se desinteressassem da problemática do regime, o qual, com teimosia senil, recusava dar-se conta da realidade.
Enquanto se precaviam contra todas as eventualidades e punham a seguro a parte mais importante dos seus haveres, esses homens de negócio jogaram, em muitos casos, a carta do futuro, o que equivalia a manter boas, e mesmo íntimas, relações com os oficiais que viriam a ser revolucionários, concedendo-lhes certas facilidades indispensáveis, abrindo aos capitães certas portas que doutro modo permaneceriam fechadas.
Ao mesmo tempo, a diminuição dos investimentos nacionais e estrangeiros, acompanhada da crise económica internacional de 1973, contribuíam para acelerar o desenlace.
Além de tudo isso, ao clima de insatisfação geral, habilmente utilizado pelas forças de esquerda, veio juntar-se um elemento acidental: o do descontentamento de certos oficiais, que viam as suas prerrogativas e possibilidades de promoção ameaçadas por um inábil decreto do governo. É inegável que houve uma tomada de consciência política por parte de alguns dos militares que combatiam em África, e a actuação do Partido Comunista pode considerar-se como tendo sido determinante na desmoralização dos soldados, incitando-os a desertar, e enfraquecendo assim a luta contra os movimentos de libertação.
Contudo, a leitura da imprensa, dos documentos e das obras publicadas desde a revolução, põe sobretudo em relevo, além dum carácter suspeitamente improvisado, um certo número de incógnitas que nenhum dos seus participantes pareceu, até agora, interessado ou apressado em esclarecer. Apontem-se apenas alguns:
- Como foi possível que as acções e reuniões dos capitães que preparavam a revolução, escapassem à vigilância da PIDE, uma polícia reputada pela sua temível eficácia, e a qual, além dos agentes regulares, contava a todos os níveis da sociedade uma rede de informadores que excedia 200.000?
- Que cumplicidades e silêncios foram comprados com essa falta de zelo?
- Quem detém, e para que chantagens políticas são utilizados, os arquivos da PIDE, os quais continham mais de 3 milhões de fichas com informações sobre outros tantos cidadãos?
- Um dos maiores consórcios ibéricos, a Companhia União Fabril, adquiriu em Janeiro de 1973 a editora Arcádia, a qual, no mês seguinte, publicava Portugal e o Futuro, o livro do general Spínola. Quem indigitou Spínola, um fascista notório, para encabeçar o movimento revolucionário, permitindo-lhe tornar-se depois presidente da República?
- Porquê, e por quem, foi o governo português ameaçado de grandes consequências, caso Marcelo Caetano e o presidente Tomás não fossem mandados para o Brasil, em paz e sem julgamento?
- Que equilíbrios internacionais, políticos e económicos, obstam a uma verdadeira revolução democrática em Portugal?
- Como justificar a posição preponderante que continuam a ocupar no aparelho do Estado, e nos sucessivos governos, os mesmos homens que serviam o regime anterior?
- Como não rir do facto que a quase totalidade do corpo diplomático, que hoje tão calorosamente representa o regime democrático, seja composta pelos mesmos indivíduos que, delatando e informando, fiel e eficazmente representaram e mantiveram o fascismo?
- Entre os capitães revolucionários, alguns tornaram-se generais domesticados, cobertos de honrarias e medalhas, abonados nos ganhos. Outros foram presos, humilhados, desaparecendo no anonimato. Se a revolução, como Saturno, devora os próprios filhos, que razões levaram esta a ser tão generosa com os primeiros?
- Que interesses - para além da incapacidade dos governantes – obrigam Portugal a viver de empréstimos bancários que não pode pagar, coartando-lhe a independência, tornando-o em relação aos seus credores menos que uma colónia, um país vassalo?
A estas e outras incógnitas, os historiadores e os especialistas saberão responder com os argumentos astuciosos da razão de Estado; com as dificuldades que surgem cada vez que se quer escrever a História do imediato; com o perigo que existe em agitar o que está quieto.
Mas a quietude é apenas aparente, pois a miséria nunca foi boa conselheira. E à miséria acrescenta-se a provocação ignóbil do luxo duns quantos, os que se souberam arranjar. Os novos senhores, como os senhores do passado, mandam fazer nos jornais estendal das suas festas, dos seus jantares, dos seus vestidos, do carnaval em que vivem.
Por isso, e mais fundo do que magoa a fome, o frio, a humilhação doem ao povo as esperanças perdidas, as promessas com que o enganaram, o futuro que lhe recusam.

A classe que depois da revolução de 74 passou a dirigir Portugal, não difere da que o dirigia antes. As cumplicidades, os laços familiares, as protecções, os compromissos, os encobrimentos mútuos, apenas repetem os que já existiam.
Os seus membros manipulam habilmente o idealismo de alguns, o entusiasmo de muitos e a esperança da maioria, saíram para a rua e correram mundo, agitando cravos, slogans, gritando que tinham feito uma revolução exemplar: sem sangue, restaurando as liberdades, capaz de irmanar os desirmanados, de repartir os latifúndios, de eliminar a miséria.
Foram bem poucos os que puderam, ou quiseram, ver de imediato que a mudança só tinha sido possível com a cooperação e o apoio daqueles que, desse modo, criavam a possibilidade de manterem o poder.
Democratas eles? Não. Seja qual for o disfarce com que se apresentarem, o credo que disserem seguir, a sua mentalidade e os seus verdadeiros intuitos são os dos opressores. Opressores são também todos quantos os apoiam, os desculpam, lhes possibilitam o governar e, impunemente, o comportarem-se como uma quadrilha.
As revoluções "exemplares" entram nos calendários da História com os seus heróis, os seus santos, as suas datas de aniversário, as bandeiras e os foguetes.
A revolução invisível, a verdadeira, nasce dentro de cada um de nós, cresce e passa como força irreprimível para a alma dum povo, causando as transformações que são os passos em frente a caminho de um país mais justo.


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