domingo, novembro 30

Estratégia

“Grande amor da minha vida.”
No decurso da semana anterior ao desastre que o vitimaria, foi assim que Albert Camus (1913-1960) começou as cartas escritas a cinco mulheres diferentes.
Essas e outras tudo lhe perdoavam, por ser grande o seu charme, mas também porque, excelente conhecedor da alma feminina, quando apanhado em flagrante logo se confessava culpado.
Diz quem sabe que é estratégia sem falha.

sábado, novembro 29

Sem mais dor

Ventania, chuva, frio polar. A noite vai cair. Se neste momento a filmassem, a única rua da aldeia valeria como imagem de um mundo que acabou. Nem cães se vêem.

Os citadinos que desconhecem este viver idealizam famílias harmoniosas em volta da lareira, falam de “achas e toros a crepitar alegremente”, de alheiras assadas, risos, copos de bom vinho, histórias de antigamente.

Se o acaso os trouxesse hoje para estas bandas, pronto lhes passaria o romantismo, e de certeza deitavam a fugir. Eu próprio, se me apetecesse, poderia encontrar outro poiso. Mas não é isso que conta. Conta o invisível, temeroso cárcere em que as aldeias moribundas se tornam, a tragédia dos que nelas aguardam que, sem mais dor, a morte os liberte da pena perpétua.

sexta-feira, novembro 28

Luxos da miséria

A atitude sensata seria encolher os ombros, passar adiante, mas nasci com este feitio, e assim descaem-se-me os cantos da boca, vou de sobrolho franzido, vê-se-me na pele o excesso de bílis.

Que coisas são essas que pouco, muito, de longe, ou de mais perto me perturbam? Exemplos?

Nos confins do nordeste transmontano, em Alfândega da Fé, os ingénuos e os menos ingénuos acreditaram que um vigário lhes ia elevar a vila às alturas de metrópole, com uma Tsunami Beach, luxos mirabolantes, empregos chorudos... Não deu certo, mas há lá agora uma Spa (os jornais escrevem SPA, que faz mais gordo) onde a alta-roda irá tratar da pele. Falaremos daqui a uns meses.

Essa gente de luxo e meios come num restaurante algures no Douro, onde um chefe de fama, “fusiona” (!) a cozinha duriense com a da Amazónia. Nada menos. Afirma o senhor que a experiência para os gourmets sai cara, mas vale a pena e os euros. Assim será. E dane-se quem se endivida para comer

Em Mogadouro há uma espectacular Casa das Artes e Ofícios, um teatro do melhor, tão moderno que até tem garagem subterrânea. Tudo luxuoso, caro, vazio. Mas,citando o que me toca de perto, os seis quilómetros da estrada que liga a nossa aldeia à N220 viram asfalto em 1968, e desde então só remendos. Nela são muitos e grandes os buracos, se bem que anteontem tenha havido melhoria: em nove locais – contei-os - foi espalhado areão nas bermas. O asfalto fica prometido para as eleições.

Paro aqui, não vá o azedume estragar-me a saúde.

quinta-feira, novembro 27

Serão

Creio que sim, suponho que não inventam aquelas tragédias para me impressionar. O modo do relato é a meio caminho entre o terror que desastres desses possam acontecer, o exorcismo e, no fundo, o secreto prazer de que caso tão pavoroso tenha sido com outros. Em paz, sossêgo, e boa companhia, gozamos nós o calorzinho da lareira.

Foi o homem que caiu para dentro da enfardadeira e, quando as lâminas já lhe estraçalhavam as pernas, ainda teve ânimo para telefonar à mulher dizendo que ia morrer. Outro foi apanhado pela máquina de rachar lenha e lá ficou. Um terceiro rebolou encosta abaixo com o tractor, tão esmagado que nem sequer...

Vem o café, vêm os doces.

- Ontem na televisão... – começa uma santinha.

Mandam-lhe que se cale. A televisão são tudo tretas, só os tolos acreditam no que lá se vê. Faz-se um longo silêncio, depois alguém recorda que são horas de rezar o terço.

quarta-feira, novembro 26

O meu gosto...

O meu gosto seria participar em conversas que agudizam o intelecto e os sentimentos, conhecer daqueles espírtos superiores que, com ciência e sageza, explicam a diversidade das gentes, o presente do mundo, o seu futuro, os mistérios do Além.
Esse seria o meu gosto. A minha realidade é a do conhecido que, ao entrar no café, me agarra sussurrando: “Gostei daquela história da gaja e do gato.”
Ao mesmo tempo que me liberto do abraço, sorrio, encolho os ombros, tenho uma vaga ideia do que quer dizer. Mas já ele avança a informar que também tem um blogue onde trata “de coisas interessantes da região e faz umas brincadeiras.”
Espero. Vejo-o dar uma piscadela de olho a criar suspense. Embora seja pouca a clientela quer que nos sentemos ao fundo da sala:
- Pois escrevo no blogue umas brincadeiras, e talvez por causa disso vão lá umas gajas. Quer você saber ...
Salva-me um outro conhecido que entra, e a quem aceno com urgência fingida. Desculpo-me. Despeço-me. O que chegou, talvez porque começa logo a contar que foi ao médico, por causa daquela pontada que lhe dá no lado esquerdo, não estranha o meu modo. Veio para tomar o cafézinho. Descafeinado. Com um pastel de nata. Hábito velho. E um cigarrinho, quando fumava. Felizmente perdeu o vício. Faz muito mal. Começou aos dez anos. Foi sorte não ter dado cabo dos pulmões. Antes do almoço ainda vai à farmácia, a ver se lhe aviam a receita dos outros comprimidos. E tem de passar pelo Sousa, que ontem foi à Espanha buscar presuntos. A Fermoselle ou a Zamora, não sabe ao certo. Que o Sousa é um bocado assim, sempre com segredos
- Melhor que o de Lamego. Você gosta de presunto?

Ah! Participar em conversas que agudizam o intelecto e os sentimentos, conhecer daqueles espíritos superiores...