Chegando ao que se costuma referir como idade avançada, no meu caso
passados os noventa, as memórias sofrem por vezes uma distorção. Assim acontece
que quando lembro o Dino pela última vez que o encontrei, revejo sempre o estranho
janota que tinha sido, pois numa aldeia onde as calças grosseiras de burel eram
a norma, vestia ele umas de fazenda, que embora remendadas o distinguiam, um
pouco à maneira de um inesperado homem da cidade.
Diferente era também o seu calçado, porque se todos usavam botas cardadas,
a ele viam-no aos domingos e dias de festa com uns sapatos pretos, que davam
nas vistas pelas pontas, afiadas à maneira de bicos de pássaro, mas mais ainda
por em tempos distantes terem sido de verniz.
Como se essas bizarrias não bastassem para o distinguir, na festa do
padroeiro completava ele a vestimenta domingueira com um casaco de riscas
azuis, vermelhas, castanhas, brancas,
galões de borlas douradas, medalhas e sobra de pingentes. Já com muito
uso, esse extraordinário casaco mandara-lho o seu único parente, um primo que vivia na África do Sul, como testemunho de
que tinha subido na vida, e folgadamente ganhava o pão a tocar numa banda de
música.
O que segue ouvi-o, pois já então vivia longe, mas o testemunho é fiel.
Sentindo o fim próximo, o Dino fez saber que quando fosse a enterrar, das
calças ou dos sapatos não fazia questão, mas casaco teria de ser aquele, pois nunca
tinha visto um mais bonito.
Faleceu, e porque já não tinha parentes dividiu-se a aldeia, uns achando
que se devia respeitar a sua vontade, a outros parecendo falta de respeito aparecer
assim diante do Senhor.
Ganharam estes últimos com apoio do padre Vítor, que meses depois teve um
ataque e ficou entrevado. Uns diziam que era porque tinha de ser, os outros
calavam-se, certos e seguros de que Deus não dorme.