segunda-feira, novembro 10

Entre fardas e fatos, o Diabo escolha

Ouvir-me dizer do resultado das próximas eleições presidenciais que tanto se me dá como se me deu, é porta aberta para os graciosos da piada fácil, pois com um pé na cova, seria de esperar ver-me mais ocupado com as perspectivas do Além, do que pelas consequências de um festival, várias vezes repetido ao longo de quase meio século, e cujos resultados só na aparência causam surpresa, pois vençam os da esquerda, da direita, do centro, de cima, de baixo ou do lado, e as fanfarras toquem marchas vitoriosas, quando o barulho acalma e a poeira assenta, repara-se então que foi para inglês ver.

Pode, eventualmente, dar-se uma mudança dos robertos encarregados do espectáculo, mas os cordelinhos continuam nas mãos que os manejam e de facto mandam, de forma que com eleições ou sem elas, não há razão para num futuro próximo esperar sérias mudanças ou reais melhorias.

Contudo, talvez não seja descabido assinalar, que se na essência pouco mudou, alguma esperança há: já não temos rei, somos uma república democrática, estamos longe do tempo em que Eça de Queirós vociferava  n’As Farpas que “as eleições fazem-se pela compra da consciência a dinheiro, ou pela promessa, pela lisonja, pelo dolo, pela mentira. Não há integridade nem limpeza de carácter que resista à influência degradante e sordidíssima da uma campanha eleitoral... A campanha eleitoral é uma navegação pestilencial pelo cano de esgoto de todas as imundícies da conveniência, do egoísmo e da ambição.”

Convenhamos, pois é facto: melhoraram as maneiras, as condições e o sistema, é menos agreste o vocabulário, embora isso não impeça o que é de sempre e de esperar: que os punhais continuem escondidos na manga à espera da boa ocasião, e se vigie o andamento do concorrente para que a rasteira não falhe. Assim tem sido como temos visto, ganhe  beltrano ou sicano não haverá mudança na paisagem.

Pode dar-se o caso de que o Chega, com a sua massa de “desprezíveis”, cause  um pequenino abalo, o que seria sem consequências de maior, pois os “democratas” sabem como proceder em situações dessas, jurando que todos os democratas são iguais, mas por vezes alguns calhem ser mais iguais dos que os outros. Demonstraram-no eles nas eleições de 2017 na Holanda, quando o PVV de Wilders foi o segundo partido, mas logo sujeito a um cordão sanitário, e por comum acordo dos “justos” banido de governar, relegando a uma segunda classe os 1.372.941 cidadãos que nele tinham votado.

Que isso tenha sido possível na Holanda, com uma tradição secular de democracia, não causou abalos só resmungos. De modo que milagre de Fátima, ou uma rebeldia das “massas” as leve a votar no Chega, dando-lhe também um improvável segundo lugar, nada mudará. Tanto mais que embora os dados pareçam ser lançados em público, o jogo faz-se de facto e sempre nos bastidores.

Teremos então muito do mesmo, e eu, cansado da monotonia e possuindo alguma experiência na escrita de romances, além de um razoável conhecimento da História pátria, não resisto à tentação de fingir de Bandarra e arriscar umas profecias do que pode vir a acontecer.

Começando pelos astros, e com suficiente margem para o rigor das datas, a impressão é a de que há um tempo para cá são interessantes as repetições. De 1910 a 1930 tivemos a gripe espanhola, gigantesca catástrofe; a implantação da República, um desastre; logo depois a tragédia da Grande Guerra, e quase em simultâneo o milagre do Sol em Fátima, seguido anos mais tarde pela chegada de Salazar, o salvador da Pátria.

Agora, desde o começo de 2020 temos o Covid-19 e as suas variantes, se bem que o número de mortos felizmente nem longe se compare ao da Pneumónica. Também é improvável uma mudança do regime, que aliás para ninguém seria bem-vinda. Uma guerra mundial pode vir a qualquer momento, se assim desejarem os que têm poder para a declarar. De modo que no aguardo de tempos mais serenos resta-nos a esperança de vermos repetir o milagre do Sol a rodar no alto, anunciando à Lusitânia a iminência da chegada do salvador providencial.

Que um candidato à função já por aí anda sussurram-no alguns, e até o próprio parece tomar gosto na fantasia. Embora a minha ideia não conte, e certo de que no Céu não me ouvem, quero todavia deixar dito que se mantém nula a minha simpatia por uniformes à frente dos destinos da pátria.

Essa nobre tarefa é mais avisadamente confiada a paisanos com algum traquejo na arte de governar, mesmo quando são malabaristas e certificados troca-tintas.

 

sábado, novembro 8

Viajantes

 

Viram mundo. Provam-no com relatos, fotografias, vídeos, por vezes até uma dúzia de linhas de gazeta. Viram mundo, viajaram muito, foram aos longes onde tudo é exótico, mas só defeito de nascença ou desarranjo da cabeça explicará tanta boçalidade.

Comentam o que viram com um entusiasmo que quer passar por original e é apenas um triste refogado. Conhecem gente. Mencionam datas, casos. Viveram tantas situações em simultâneo que se diria terem herdado a ubiquidade antonina. São simples. Arrepanhando os lábios ou de queixo descaído, sofrem da pedantice triste dos que papagueiam fiapos de conhecimento mal atado. Têm opiniões. Aborrecem. Viram mundo, mas ao ouvi-los pergunta-se a gente em que desertos se terão perdido.

 

quinta-feira, novembro 6

Saber da vida

 

Nesta época de gentileza e bondade, escreveu alguém a felicitar-me, afirmando que sei muito da vida.

Assim fosse, assim não é. A muita idade e as várias andanças, incluindo nestas um ou outro momento de euforia, os pontapés do Destino, os dos semelhantes, e os trambolhões que por descuido ou tolice se dão, nada ajudam a compreender da vida. Impedem que se repita um ou outro transtorno, mas a vida, feliz ou infelizmente, é caminho para o qual não há mapa nem bússola.

Vamos andando, paramos aqui e ali, derrapamos nas curvas, caímos na valeta, fazemos o possível por ir direitos e a direito. Depois, cansaço ou susto de ver a meta perto, abrandamos o passo, criando nos que ainda vêm longe a ilusão de que conseguimos chegar até ali por sabedoria e esperteza.

Na verdade, porém, não escolhemos a rota, nem sequer caminhamos pelo próprio pé. Somos empurrados. A uns leva-nos a aragem, a outros o suão, muitos  aproveitam o vento içando velas, os desatinados enfrentam o ciclone.

Saber da vida? Nem sequer sabemos donde vem o vento ou quem o sopra.

 

sexta-feira, outubro 31

Sobre "Ernestina" - Júlia Costa

 

O silêncio tem nome, chama-se Ernestina. Viveu em Trás-os-Montes, mas podia ter vivido em qualquer aldeia onde o tempo se arrasta como uma mula velha e os homens falam pouco, mas mandam muito. Ernestina não é só a mãe de José Rentes de Carvalho, é a mãe do silêncio português. Aquele que se instala nas cozinhas, nas camas, nos olhos, aquele que não grita, mas que pode matar.

Ernestina não é heroína, é sobrevivente, e isso, à época, neste país, já é quase um milagre. Ela é metáfora da mulher que não teve tempo para ser mulher, da mãe que não pôde ser filha e da vida que não chegou a ser vivida. E o mais absurdo é que há milhares de Ernestinas por aí. Algumas ainda vivas, outras enterradas em silêncio, como se nunca tivessem existido.

J. Rentes de Carvalho. Ernestina

No seu livro, o autor não escreve uma biografia, escreve um exorcismo. Ernestina é a mulher que não teve direito a personagem, nem a enredo. Teve uma vida de espera, de ausência, de dor sem nome. E o silêncio, essa espécie de animal viscoso, foi-lhe fazendo companhia: sentava-se à mesa, dormia ao seu lado, entrava-lhe pelas paredes. Um silêncio que não consola, mas que sufoca.

Mas há algo de profundamente poético nesta dor. Uma beleza áspera, como pedra molhada. Porque o silêncio, quando bem escutado, revela mais do que mil discursos. E este livro escuta, escuta o que nunca foi dito. Escuta o que foi calado por vergonha, por hábito ou por medo. Escuta o que Portugal, talvez ainda não tenha aprendido a dizer.

Rentes de Carvalho não nos oferece redenção, oferece-nos uma crónica da invisibilidade, e fá-lo com uma escrita carregada de palavras antigas e termos em desuso e que parece ter sido lavada com vinagre: ácida, limpa, sem perfume. Cada frase é uma bofetada e cada memória, uma ferida que não cicatrizou. Não há floreios, nem piedade, há verdade, e essa verdade dói porque nos obriga a confrontar o que preferimos esquecer: que a nossa história está cheia de Ernestinas que a literatura, tantas vezes, ignorou.

Este livro é um ato político, não no sentido partidário, mas no sentido mais profundo da palavra, é uma tomada de posição contra o esquecimento, e é também uma provocação: será que sabemos realmente quem foram as mulheres que nos criaram? Ou limitamo-nos a repetir clichés sobre mães abnegadas e esposas discretas?

Ler Ernestina foi resistir ao esquecimento e à indiferença. Foi um convite à escuta, à empatia e à memória, e foi também um alerta: há vidas que só existem se forem contadas e há autores, como o José, o filho da Ernestina e neto da Elisa, para quem escrever é salvar, sendo esses os que nos mostram que, às vezes, escrever sobre quem nunca teve voz é um ato de amor.

 

Júlia Costa é cristã na essência, católica por tradição. Ligada à paróquia da Amadora, na Pastoral Juvenil e na Promoção da Comunidade. Mãe de uma filha, avó de três netos. Profissionalmente na área da contabilidade, embrenhada em números, mas desde sempre fascinada pela palavra.

 


quinta-feira, outubro 30

Bolaño who?

 

 

Vidas atrás escrevi um guia de Portugal que, entre algumas boas qualidades, tinha a má de ser relativamente pesado, e daí incómodo para quem com ele ia de viagem.

Aproveitando o acaso de um encontro no supermercado, uma leitora anónima desfez-se em elogios ao meu trabalho, e já ia nas despedidas quando lhe ocorreu queixar-se do quilo e pico do calhamaço.

Sorri a concordar, mas logo se me foi a boa disposição quando ela me pôs ao corrente da solução que encontrara para o desconforto do peso: ia simplesmente cortando as folhas correspondentes aos locais que tencionava visitar.

Lá mantive o sorriso, e até acrescentei que achava engenhosa a ideia, mas por dentro senti-me mais que ofendido. A pouca vergonha! Aquilo era o meu livro! Aquilo eram quase quatro anos de trabalho, muitos milhares de quilómetros pelas más estradas dos anos 80, um estômago danificado por desagradáveis almoços, a coluna entortada por péssimos colchões. E atrevia-se ela ao sacrilégio de lhe arrancar-lhe as folhas!

Desde há um tempo que de várias partes me moem a paciência com Bolaño. Que “ o 2666 é um livro e tanto”, que passei há muito a idade de ter opiniões infundadas, que é mesmo o primeiro grande romance deste século, etc. De modo que ontem fui à livraria, comprei a tradução holandesa e de volta a casa, estranhando que as forças me faltassem, pus o livro na balança. Um quilo, quinhentas e cinquenta gramas; mil e setenta páginas; seis centímetros de lombada.

Ora acontece que leitura a sério, para mim, é feita na cama e no silêncio da noite, o que com um livro destes não é fazível nem confortável, nem aconselhável, pois por menos se arranja uma hérnia no pescoço. O calhamaço necessita do apoio de uma mesa, e eu não gosto de ler livros à mesa, além de que logo me doem as costas.

Foi então que me veio a recordação da leitora anónima e a de uma caixa com bisturis que comprei com outra finalidade e agora faz jeito.

Já pedi desculpa a Bolaño, daqui a nada vou cortar o “2666” nas cinco partes que o compõem.

domingo, outubro 26

Exercícios

Seria excessivo deitar o manto da caridade sobre a maluquice alheia. Não é preciso tanto. Ao fim e ao cabo para quase tudo há desculpa, defeitos todos temos, uma pitada de compreensão também ajuda. Mesmo assim, porém, basta às vezes um detalhe mínimo e lá se vão as boas intenções.

Casal burguês, idosos a aparentar juventude nos hábitos, no vestuário, nas paragens exóticas das suas férias, na vontade de se manterem saudáveis com a ajuda de verduras, yoga, natação e ginástica matinal. Têm assinatura para os concertos, para o teatro, vão aos museus, não perdem exposição nenhuma daquelas que o jornal diz que se devem visitar. De vez em quando lêem um livro. Muito de vez em quando, nostalgia dos anos 70 e da juventude perdida, arriscam uma discreta troca de pares.

Até aqui vulgar de Lineu, como se dizia antigamente, tudo do mais mediano, previsível, fácil de catalogar. Dá-se porém o caso de que a estes dois, que nem sequer sabem que existe um Almanach de Gotha, se lhes meteu na cabeça que têm sangue azul. Que são nobres. Melhores. Superiores. Cavando genealogias encontraram na dela, em mil setecentos e tantos, uma bastarda de conde, na dele um remoto barão.

Um raio que os parta! Entre os exercícios de yoga e a ginástica matinal, ocupam-se agora a passar a esponja sobre três séculos de gerações de que se envergonham.