domingo, outubro 12

Quase um adeus

Este blog faz agora de bóia de salvação. Desde um dia esquecido de Junho de 1938 nunca parei de escrever.  De writer’s block nunca sofri, bem ao contrário, mas o que em Maio passado de súbito me aconteceu, e permanece, é um estranho sentir de desconsolo, inutilidade, deixando-me acanhado, vazio, a perguntar-me como e porquê, ao mesmo tempo certo de que não terei resposta.

Hoje ainda cá estou, mas bem pode acontecer, e desde já peço desculpa, que sem aviso prévio, este meu divertimento termine.

Fica um sincero obrigado a todos os que por aqui passaram, especialmente àqueles que “conheço” há anos e me acompanham desde o princípio.


sexta-feira, outubro 10

Deve e haver

Ter visto a morte defronte dos olhos é expressão corriqueira e inexacta. A morte não se vê, não se deixa ver: sente-se. E não se sente no momento em que o médico, desculpando-se da má notícia, diz que o tumor é maligno; não se sente sequer quando o cirurgião anuncia que nada mais pode fazer, que é caso terminal e o fim chegará dentro de semanas ou meses. Momentos desses são para uns de pânico, de benfazejo recolhimento para os que, abrindo o seu "Deve & Haver", não se envergonham das contas. Duas vezes senti a morte perto, duas vezes a senti afastar-se, fugaz como sombra, sem me dar tempo a fazer o balanço. Noutra altura será. Por agora, e até que ela chegue, estou na fase de ir purgando e descartando, se bem que não me queira desfazer daquelas ilusões que guardo no "Haver", as que emprestam cor aos dias e ajudam a olvidar.

quarta-feira, outubro 8

terça-feira, outubro 7


 

segunda-feira, outubro 6

O Casino

 

"A fotografia mostra um grupo de rapazes sorridentes. Com a caligrafia esmerada dos meus dezassete anos escrevi no verso: Lisboa, 11 de Maio de 1947.

Ano cheio de acontecimentos e novidades, descobertas, primeiras impressões,  sonhos que nunca se realizaram. Vir a ser campeão de salto em altura, por exemplo. Ou milionário. Ter um veleiro de quatro mastros, um harem, dois cães e um rádio portátil da marca Zenith. Viver na Sibéria como Miguel Strogoff. Tocar guitarra. Quebrar lentamente os ossos do professor de Matemática.

O campeonato de remo que nos levara a Lisboa - onde nos iríamos classificar em último lugar - tinha sido adiado por qualquer razão que agora não recordo, deixando-nos à solta na cidade uma semana inteira.

Além de ser a minha primeira visita à capital, gozava, também pela primeira vez, uma liberdade desconhecida. E tudo me fazia encanto. As ruas, as tabuletas das lojas, os eléctricos, os cinemas, a arcada do Terreiro do Paço. Não me cansava de subir e descer o Chiado que,  a acreditar nos jornais desse tempo, igualava em luxo e esplendor as ruas de Paris, "inclusive os Campos Elísios."

Comer sozinho no restaurante! Mandar vir camarões, carne grelhada com batatas fritas, uma caneca de tinto. Pudim de laranja. E café, se faz favor. Sair depois de Lucky Strike na boca, hesitando um instante entre Clark Gable e Humphrey Bogart, para finalmente passar a tarde a cantar com Al Jolson pela soma de quatro escudos, o preço da plateia.

           

Na esquina do Rossio com a Rua do Ouro, onde há agora um estabelecimento que é meio livraria, meio quiosque, tinha eu parado logo no primeiro dia, fascinado pela joalharia que então ocupava o prédio. Não porque me interessassem especialmente as pratas ou as pedras, mas sem fala diante daquela exposição de riquezas acumuladas nas vitrinas.

Os fios de ouro caíam em cascata. As salvas tinham dimensões de rodas de carro. Os diamantes cintilavam em estojos forrados de veludo preto. Montões deles. Havia candelabros da altura de um homem e toledanas embutidas de rubis. Correntes, alianças, os anéis grossos com que as viúvas se fazem inveja. Fruteiras descomunais. Crucifixos de metro em "prata massiça, 99,9% pura." Querubins. "Últimas Ceias". Caravelas de filigrana. Talheres dourados, pérolas, facalhões para trinchar perus, argolinhas de marfim para as gengivas dos bébés. Galheteiros em "prata antiga do Brasil."

As vitrinas eram fechadas por espessos reposteiros azul-escuro, a esconder o interior, bem assim como a porta. Da única vez que a vi abrir-se, um segundo ou dois, as cintilações e fulgores vindos lá de dentro, multiplicadas infinitamente em cristais e espelhos, fizeram com que deixassem de me parecer exagero a história de Ali Bábá e o resto das Mil e uma noites.

Ao mesmo tempo tornou-se-me claro ser verdade tudo o que eu tinha lido sobre riquezas orientais, as minas de Salomão, os tesouros do Négus, os galeões que no passado chegavam a Lisboa com toneladas de ouro e prata: a evidência estava ali.

Lembro que me senti indiscreto, tomado por um vago receio de que, ao ficar assim parado, estorvaria a passagem das princesas, dos nababos, dos monarcas que muito certamente vinham encomendar as suas tiaras e coroas. Recuei uns passos para ver melhor as grandes letras douradas sobre fundo de mármore negro e polido: "OURO - J. BRANDÃO, JOALHEIROS - PRATA".

Depois fui-me pela cidade, alegre com tanta coisa bela, ao mesmo tempo um quê melancólico, ciente que imponências assim pertenciam a outros mundos e o sonho permaneceria na minha vida um dos obstáculos maiores.

Naquela altura Lisboa era uma metrópole a fervilhar de actividade, cheia de gente enriquecida durante a guerra, refúgio doutros chegados ali carregados de fortunas e que, cansados ou contentes, tinham decidido ficar. Automóveis sumptuosos, com choferes fardados, esperavam diante dos palácios e palacetes que então havia nas avenidas. Ou rodavam lentamente, solenes, via-se dentro deles a gente retraída e distante para quem nós éramos a paisagem. Os oficiais iam pelas ruas a cavalo, em uniforme de gala, luvas brancas, pingalim, seguidos por ordenanças que, em bornais vistosos, transportavam os documentos do Poder. Mulheres etéreas, vestidas de seda, e atrás delas as criadas carregadas de pacotes e caixas. Sentia à minha volta a forte trepidação de uma vida nova, o fascínio de mistérios imagina­dos, cultos subterrâneos. Cada olhar cruzado com o meu, o virar de uma esquina, um sorriso, tudo me pareciam prenúncios e sinais.

 

À noite fazíamos uma refeição comum com o "Halteres”, o professor de ginástica, à cabeceira da mesa, e o chefe de equipa, o senhor Barros, sentado na outra ponta. Ambos nos interrogavam demorada­mente sobre como tínhamos passado o dia, por que ruas tínhamos passeado, se o moral era suficiente para vencer no domingo. Depois, sombrio, o "Halteres" repetia que não nos devíamos perder no Bairro Alto, nem ir às mulheres. O que se atrevesse apanhava um gálico que, fora uma possível cegueira ("em ambos os olhos"), infalivelmente levava ao apodrecimento total da "ferramenta."

Sorríamos, pouco impressionados, impacientes para que a refeição terminasse, prometendo que na manhã seguinte, às oito em ponto, não faltaríamos ao treino.

Para premiar a nossa boa conduta, e ao mesmo tempo garantir o entusiasmo e a vitória no domingo que se aproximava, os "chefes" prometeram levar-nos ao Estoril.

- Ao Casino? - perguntámos em coro, descrentes, mas a querer atrair o milagre.

- Ao Casino.

- De tarde?

- Não. Amanhã à noite.

A surpresa era grande demais para palavras ou exclamações. Que nos levassem lá uma tarde, se vencêssemos, compreendia-se. Mas assim sem mais nem menos! Quem podia, e se atrevia, visitava o Casino do Estoril uma vez na vida, em peregrinação, discreto, em bicos de pés, num recato igual ao que se tem nas catedrais e nos museus.

Dizia-se que de uma balaustrada se podiam ver as mesas de jogo, a roleta, as fortunas que o capricho da bola fazia mudar de mão. Por um preço mirabolante tomava-se chá entre milionários, tinha-se direito de assento entre ilustres e poderosos, com um pouco de sorte roçava-se a gente pelo Aga Khan, a filha de Churchill, às vezes um ministro de Salazar.

 Isso às tardes. Mas às noites!... Quem estava ao corrente não tinha palavras bastantes para explicar. Os salões do Casino tornavam-se então Sodoma e Gomorra, acrescentadas do que mesmo em fantasia parecia excessivo. Havia em permanência um show de Paris com bailarinas nuas, trapezistas nuas, cantoras nuas, duas jibóias que ao som de uma música sensual se enrolavam numa rapariga nua. Nua!"

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in "O Joalheiro" ( Os lindos braços da Júlia da farmácia).         

 

 

domingo, outubro 5

Sal na ferida

 

Precoce na leitura, cedo comecei a sonhar e a ter pena do meu país. Aprendi que lá longe havia outros sem medo nem miséria, de leis justas, menos desigualdade, menos desespero, os seus cidadãos e governantes mais interessados no futuro do que em glórias passadas.

Parti, quando a minha hora soou. Ingénuo bastante para me maravilhar, mas cedo consciente do fosso entre a realidade que observava e os sonhos que tivera. Além fronteiras não havia paraísos, mas sociedades onde a esperança de melhoria era um facto, a desigualdade menos gritante, a repressão inexistente, a liberdade um direito sagrado. Fui vendo, estudando, comparando, e continuei a ter pena da terra onde nasci.

Não me entusiasmou depois o florescer dos cravos, e espero o investigador de hombridade que faça a barrela desse momento histórico, mostre os interesses que a ele levaram, ponha nome nos fantoches e em quem segurava os cordéis.

Passaram os anos. Sentindo mais funda a pena, vi o meu país de mão estendida. Com espanto vi-o depois a esbanjar o que não tinha, governantes e governados dando o espectáculo da mais incrível pelintrice, de uma inconsciência que só dos pobres de espírito se espera, tomando por realidade o país de Cocagne.

Vivendo no conforto de uma sociedade rica, justa, bem organizada, materialmente não sofro com a desgraça daquela em que nasci, mas nem por isso me dói menos o esfregar sal na ferida.

Curioso povo, o meu, onde gente supostamente séria e competente enrouquece a gritar que as dívidas dos países não se pagam. Para que fingem? Com que fim iludem? Pagam, e com língua de palmo, que quem dita os termos não é o caloteiro, mas aquele que tem numa mão a faca e o queijo, e na outra a corda com que o enforca.

Com tristeza o digo e consolo não sinto: na minha idade é nula a esperança que tenho de ver Portugal sair do atoleiro e da miséria. Resta-me o sonho de que os que agora são jovens, e os que vierem, construam um país de que se possam orgulhar e não lhes doa como este a mim dói.