"A fotografia
mostra um grupo de rapazes sorridentes. Com a caligrafia esmerada dos meus
dezassete anos escrevi no verso: Lisboa, 11 de Maio de 1947.
Ano cheio de
acontecimentos e novidades, descobertas, primeiras impressões, sonhos que nunca se realizaram. Vir a ser
campeão de salto em altura, por exemplo. Ou milionário. Ter um veleiro de
quatro mastros, um harem, dois cães e um rádio portátil da marca Zenith. Viver na Sibéria como Miguel
Strogoff. Tocar guitarra. Quebrar lentamente os ossos do professor de
Matemática.
O campeonato de
remo que nos levara a Lisboa - onde nos iríamos classificar em último lugar -
tinha sido adiado por qualquer razão que agora não recordo, deixando-nos à
solta na cidade uma semana inteira.
Além de ser a
minha primeira visita à capital, gozava, também pela primeira vez, uma
liberdade desconhecida. E tudo me fazia encanto. As ruas, as tabuletas das
lojas, os eléctricos, os cinemas, a arcada do Terreiro do Paço. Não me cansava
de subir e descer o Chiado que, a
acreditar nos jornais desse tempo, igualava em luxo e esplendor as ruas de
Paris, "inclusive os Campos Elísios."
Comer sozinho no
restaurante! Mandar vir camarões, carne grelhada com batatas fritas, uma caneca
de tinto. Pudim de laranja. E café, se faz favor. Sair depois de Lucky
Strike na boca, hesitando um instante entre Clark Gable e Humphrey Bogart,
para finalmente passar a tarde a cantar com Al Jolson pela soma de quatro
escudos, o preço da plateia.
Na esquina do
Rossio com a Rua do Ouro, onde há agora um estabelecimento que é meio livraria,
meio quiosque, tinha eu parado logo no primeiro dia, fascinado pela joalharia
que então ocupava o prédio. Não porque me interessassem especialmente as pratas
ou as pedras, mas sem fala diante daquela exposição de riquezas acumuladas nas
vitrinas.
Os fios de ouro
caíam em cascata. As salvas tinham dimensões de rodas de carro. Os diamantes
cintilavam em estojos forrados de veludo preto. Montões deles. Havia
candelabros da altura de um homem e toledanas embutidas de rubis. Correntes,
alianças, os anéis grossos com que as viúvas se fazem inveja. Fruteiras
descomunais. Crucifixos de metro em "prata massiça, 99,9% pura."
Querubins. "Últimas Ceias". Caravelas de filigrana. Talheres
dourados, pérolas, facalhões para trinchar perus, argolinhas de marfim para as
gengivas dos bébés. Galheteiros em "prata antiga do Brasil."
As vitrinas eram
fechadas por espessos reposteiros azul-escuro, a esconder o interior, bem assim
como a porta. Da única vez que a vi abrir-se, um segundo ou dois, as
cintilações e fulgores vindos lá de dentro, multiplicadas infinitamente em
cristais e espelhos, fizeram com que deixassem de me parecer exagero a história
de Ali Bábá e o resto das Mil e uma noites.
Ao mesmo tempo
tornou-se-me claro ser verdade tudo o que eu tinha lido sobre riquezas
orientais, as minas de Salomão, os tesouros do Négus, os galeões que no passado
chegavam a Lisboa com toneladas de ouro e prata: a evidência estava ali.
Lembro que me
senti indiscreto, tomado por um vago receio de que, ao ficar assim parado,
estorvaria a passagem das princesas, dos nababos, dos monarcas que muito
certamente vinham encomendar as suas tiaras e coroas. Recuei uns passos para
ver melhor as grandes letras douradas sobre fundo de mármore negro e polido:
"OURO - J. BRANDÃO, JOALHEIROS - PRATA".
Depois fui-me pela
cidade, alegre com tanta coisa bela, ao mesmo tempo um quê melancólico, ciente
que imponências assim pertenciam a outros mundos e o sonho permaneceria na
minha vida um dos obstáculos maiores.
Naquela altura
Lisboa era uma metrópole a fervilhar de actividade, cheia de gente enriquecida
durante a guerra, refúgio doutros chegados ali carregados de fortunas e que,
cansados ou contentes, tinham decidido ficar. Automóveis sumptuosos, com
choferes fardados, esperavam diante dos palácios e palacetes que então havia
nas avenidas. Ou rodavam lentamente, solenes, via-se dentro deles a gente
retraída e distante para quem nós éramos a paisagem. Os oficiais iam pelas ruas
a cavalo, em uniforme de gala, luvas brancas, pingalim, seguidos por ordenanças
que, em bornais vistosos, transportavam os documentos do Poder. Mulheres
etéreas, vestidas de seda, e atrás delas as criadas carregadas de pacotes e
caixas. Sentia à minha volta a forte trepidação de uma vida nova, o fascínio de
mistérios imaginados, cultos subterrâneos. Cada olhar cruzado com o meu, o
virar de uma esquina, um sorriso, tudo me pareciam prenúncios e sinais.
À noite fazíamos
uma refeição comum com o "Halteres”, o professor de ginástica, à cabeceira
da mesa, e o chefe de equipa, o senhor Barros, sentado na outra ponta. Ambos
nos interrogavam demoradamente sobre como tínhamos passado o dia, por que ruas
tínhamos passeado, se o moral era suficiente para vencer no domingo. Depois,
sombrio, o "Halteres" repetia que não nos devíamos perder no Bairro
Alto, nem ir às mulheres. O que se atrevesse apanhava um gálico que, fora uma
possível cegueira ("em ambos os olhos"), infalivelmente levava ao
apodrecimento total da "ferramenta."
Sorríamos, pouco
impressionados, impacientes para que a refeição terminasse, prometendo que na
manhã seguinte, às oito em ponto, não faltaríamos ao treino.
Para premiar a
nossa boa conduta, e ao mesmo tempo garantir o entusiasmo e a vitória no
domingo que se aproximava, os "chefes" prometeram levar-nos ao
Estoril.
- Ao Casino? -
perguntámos em coro, descrentes, mas a querer atrair o milagre.
- Ao Casino.
- De tarde?
- Não. Amanhã à
noite.
A surpresa era
grande demais para palavras ou exclamações. Que nos levassem lá uma tarde, se
vencêssemos, compreendia-se. Mas assim sem mais nem menos! Quem podia, e se
atrevia, visitava o Casino do Estoril uma vez na vida, em peregrinação,
discreto, em bicos de pés, num recato igual ao que se tem nas catedrais e nos
museus.
Dizia-se que de
uma balaustrada se podiam ver as mesas de jogo, a roleta, as fortunas que o
capricho da bola fazia mudar de mão. Por um preço mirabolante tomava-se chá
entre milionários, tinha-se direito de assento entre ilustres e poderosos, com
um pouco de sorte roçava-se a gente pelo Aga Khan, a filha de Churchill, às
vezes um ministro de Salazar.
Isso às tardes. Mas às noites!... Quem estava
ao corrente não tinha palavras bastantes para explicar. Os salões do Casino
tornavam-se então Sodoma e Gomorra, acrescentadas do que mesmo em fantasia
parecia excessivo. Havia em permanência um show de Paris com bailarinas
nuas, trapezistas nuas, cantoras nuas, duas jibóias que ao som de uma música
sensual se enrolavam numa rapariga nua. Nua!"
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in "O Joalheiro" ( Os lindos braços da Júlia da farmácia).