sábado, setembro 13

Por Lisboa com Eça de Queiroz

 

Nascido na Póvoa do Varzim dos amores pecaminosos de uma jovem aristocrata com um juiz, e aí inscrito no Registo Civil como filho de pai conhecido e – caso raro, provavelmente único - de mãe incógnita, o grande escritor realista José Maria Eça de Queiroz (1845-1900) só em 1866, aos vinte e um anos, iria pela primeira vez a Lisboa.

            Entregue de ano para ano a amas, aos avôs, e a amigos da família, de forma a que a sua presença não obrigasse a revelações dolorosas que, eventualmente, poderiam causar dano à carreira do magistrado seu progenitor, o jovem Eça andou de um internato para outro, e cursou em Coimbra a Faculdade de Direito, tendo de Lisboa o mesmo conhecimento livresco e nebuloso que tinha de Paris, os focos culturais dos jovens portugueses do seu tempo.

            Instalado no quarto andar do nr. 26 do Rossio, onde os pais e os irmãos habitavam, e durante os seis anos em que aí, fora curtas ausência, ele próprio iria morar, Eça de Queiroz de tal forma absorveu a cidade que vemos presente em toda a sua obra, e nalguns dos seus romances, é deles parte essencial.

Dotado de um talento invulgar para as Letras, mordaz e elegante na ironia, precedido da fama que como estudante e boémio gozara em Coimbra, o círculo de amigos que criou em Lisboa viria a constituir a mais célebre das gerações literárias em Portugal.

            Com eles penetrou no âmago da vida da capital, travou conhecimento com as suas misérias e esplendores, e breve se lhe tornaram tão familiares as tabernas rascas e as casas de má nota do Bairro Alto e da Mouraria, como os cafés do Rossio e do Chiado, as vidas burguesas e os salões da aristocracia.

            Vestindo fatos brancos, quando a moda e o decoro exigiam o preto; de flor na lapela, para que o julgassem fútil; o monóculo entalado no olho direito, dando ao rosto um esgar sardónico, Eça de Queiroz apossou-se de Lisboa e amou-a, odiou-a, tornou-a ridícula, insultou-a, dissecou-lhe as muitas misérias e as poucas grandezas. Clamou por vezes contra ela com gritos de desespero, para que deixasse de ser a cidade apática e soturna que nesse tempo era. Fustigou-lhe o clero e os políticos, as pretensões da corte, a mesquinhice dos intelectuais, a sujidade das suas ruas, o descalabro dos monumentos.

            Curiosamente, e considerando-se ele próprio lisboeta de gema, foi em Havana e Newcastle, em Cardiff e em Paris, onde praticamente passaria o resto da sua vida, que Eça de Queiroz recriou a Lisboa da sua juventude.

A capital tinha-a ele impresso para sempre na sua alma e nos seus olhos. Andarilho impenitente, poucas ruas ou cantos da cidade continuariam a guardar  segredos para o jovem que, para melhor esconder o seu agudo sentido de observador, se disfarçava de janota e só parecia interessar-se pelo superficial.

Grande parte do enredo dos romances de Eça de Queiroz situa-se numa zona que inclui o centro da cidade, a Baixa com o Rossio, o Chiado e o Terreiro do Paço, mas passa também por Alfama e pela Mouraria, o Castelo de São Jorge, a Avenida da Liberdade (o troço desde a Praça dos Restauradores até à Praça da Alegria era então ocupado  pelo grande jardim do Passeio Público) e se estende ainda desde o Largo do Rato à Praça do Príncipe Real, o Jardim de São Pedro de Alcântara e o Bairro Alto.

Artur, um dos seus personagens provincianos[1] e provável alter-ego  chega pela primeira vez a Lisboa de madrugada, desce do comboio na estação de Santa Apolónia e toma uma caleche que o leva ao hotel: “Ia olhando avidamente as fachadas das casas, os cartazes nas esquinas, a prolongação das ruas… Teve um espanto ao ver de repente os arcos do Terreiro do Paço, o rio, mastreações de esquadras! Pela Rua da Prata, ia lendo avidamente as tabuletas. Quem viveria naquelas altas casas, cerradas ainda? Àquela hora, decerto, os jornalistas, as duquesas, dormiam, depois das agitações intelectuais e amorosas da noite… E uma felicidade exuberante encheu-lhe subitamente o peito.”

Artur hospeda-se no Hotel Espanhol, um estabelecimento de segunda categoria que havia então no nr. 156 da Rua da Prata. E ao anoitecer corre a ver o famoso Café Martinho, instalado defronte da Estação do Rossio  no prédio nr. 18 do Largo D. João da Câmara, onde actualmente funciona uma filial bancária.

Este café, “o espelho da cidade”, durou de 1846 a 1963 e era frequentado pelos intelectuais, os artistas e os políticos da época. Artur não se atreve a entrar, mas acha-o “esplêndido com a acumulação de chapéus altos entre os espelhos doirados, sob uma névoa de fumo de tabaco, no brouhaha contínuo das conversas.”

            Intimidado sobe até à Praça da Alegria e continua até à Praça do Príncipe Real, desce então até ao Jardim de São Pedro de Alcântara, onde se vai encostar às grades do miradouro. “A cidade cavava-se em baixo, no vale escuro, picado dos pontos de luz das janelas iluminadas e, na escuridão, os telhados, os edifícios, faziam um empastamento de sombras mais densas. Aquelas luzes, debaixo daqueles tectos, que fermentação de vida! Quantos amores, quantos mistérios, crimes talvez! Ali, jornalistas compunham artigos, oradores preparavam discursos, estadistas conferenciavam, mulheres aristocráticas, nas suas salas, falavam de amores e, nos pianos ricos, gemiam as cavatinas apaixonadas. Que grande, Lisboa!”

O Chiado, que de facto inclui a Rua do Carmo e a Rua Garrett e vai do Rossio até à Praça Luís de Camões, era então o centro nevrálgico da capital.

Segundo o romancista “o dever de um cidadão era subir e descer duas oun três vezes o Chiado,” acrescentando mais adiante: “o que um pequeno número de jornalistas, de políticos, de burgueses, de mundanos decide no Chiado que Portugal seja – é o que Portugal é.”

            O Chiado reunia então um número considerável de estabelecimentos  determinantes para a vida da cidade, e que Eça de Queiroz assiduamente frequentou. Alguns deles ainda existem, como a “Casa Havaneza” (Largo do Chiado 24), que era então a tabacaria chique de Lisboa e  ponto de encontro obrigatório para a elite da cidade. Hoje só tem uma, mas nesse tempo tinha seis portas, e estendia-se até à Rua Nova da Trindade.

            No nr. 100 da Rua Garrett, ocupado pela Livraria Sá da Costa, existia o importante Café Central, onde o escritor se reunia com os amigos e mais tarde faria dizer a um dos seus personagens que o linguado que lá se comia “parecia frito no céu e o (vinho de) Colares no céu engarrafado.”

            No nr. 108, o prédio do actual Hotel Borges, ficava nesse tempo o então esplendoroso Hotel Universal, palco importante no itinerário romanesco dos personagens queirozianos. O mesmo se pode dizer das Igrejas do Loreto[2] e dos Mártires, no lado oposto da rua, e da Igreja da Encarnação, fronteira a esta última. Nelas, imitando a realidade, alguns personagens escondiam os seus amores sob a capa da devoção. Ou ficavam a cavaquear na Praça Luís de Camões, discutindo talvez o horrível crime cometido no prédio número 105 da Rua das Flores, que desemboca nessa praça. O escritor aproveitaria o caso para sobre ele escrever um romance.

            Paralela a essa fica outra rua muito queiroziana, a do Alecrim. Descendo algumas dezenas de passos está-se no Largo do Quintela. Aí colocou o romancista a morada de um Conde de Abranhos, protagonista do romance com esse título, e caricatura feroz dos governantes da época.

            No mesmo largo acha-se desde 1903 a mais conhecida das estátuas de Eça de Queiroz, representando o escritor e uma figura de mulher simbolizando a Verdade. No pedestal lê-se a legenda que ele usara no seu romance “A Relíquia” (1887): ‘Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia.’[3]

Siga os passos do escritor e suba pela Rua da Misericórdia. Era numa loja dessa rua que ele comprava o papel esverdeado de trinta e cinco linhas em que gostava de escrever. Parava no número 37, para almoçar ou jantar com os amigos no restaurante Tavares, já famoso nesse tempo pelo luxo do interior. Ou iaao Largo do Carmo, ao Hotel Bragança, hoje quartel da Guarda Nacional Republicana, o grande edifício de seis andares que se vê melhor do Rossio, junto do Convento do Carmo.

            Alguns dos seus personagens nunca perdiam a missa na vizinha Igreja de São Roque, mas o autor, ateu, esse preferia seguir um pouco mais adiante, até ao número 103 da Rua da Escola Politécnica, e na Pastelaria Cister ir tomar café e saborear os pastéis de que tanto gostava. O estabelecimento data de 1838 e o autor é nele homenageado com um retrato.

            Volte para o Largo Rafael Bordalo Pinheiro. Desde há muito demolido, era aí que se encontrava o Casino e Lisboa onde, com um ciclo de conferências, Eça de Queiroz e os seus amigos iriam agitar o país.

Realizada a primeira a 22 de Maio de 1871, quatro dias depois de terminada a “semana sangrenta” da Comuna de Paris, Eça de Queiroz apareceu nela pregando a revolução socialista, mas vestido como dandy. E ironicamente, escreveria mais tarde: “É muito mais cómodo encontrarmo-nos com quem represente o proletariado, sossegadamente, na sala do Casino, do que encontrarmos o próprio proletariado mudo, taciturno, pálido de ambição ou de fome, armado de um chuço à embocadura de uma rua.”

Durante a vida inteira Eça de Queiroz manteria o hábito de se atardar  na Livraria Bertrand, na Rua Garrett número 73,a qual, fundada em 1773 e ainda hoje no mesmo local, é a mais antiga das livrarias portuguesas e uma das mais antigas da Europa.

Do mesmo modo que muitos dos seus personagens não perdia os espectáculos no Teatro São Carlos, ali a dois passos. Artur, o protagonista de A Capital, vai lá pela primeira vez com o seu amigo Melchior e chegam atrasados, já no segundo acto: “(…) Olhava a decoração, os camarotes que lhe pareciam muito distantes, a palidez dos rostos sob a luz do gás, e sentia-se envolvido numa harmonia magnífica e incompreensível  em que por vezes seguia, durante um momento, melodias delicadas que o tumulto da instrumentalização bem depressa absorvia. A magnificência orquestral, junto à riqueza social que sentia em redor, deram-lhe uma vaga opressão. Quando o pano desceu, respirou com alívio.

‘Vamos ver o gado!’ disse logo o Melchior, erguendo-se.

Depois da ópera em São Carlos era hábito chique passar pelo Grémio Literário, no número 37 da Rua Ivens, uma transversal da Rua Garrett. O clube, de que ele era sócio, data de 1846 e mantém o ambiente requintado desse tempo. Embora privado, os porteiros permitem por vezes que se faça uma rápida visita às instalações do rés do chão e à varanda, donde se tem uma vista fabulosa da cidade.

Na Rua Ivens desça as escadas da Calçada Nova de São Francisco até à Rua Nova do Almada onde no nr. 72 encontrará a Livraria Férin, estabelecida aí desde 1840 e de que Eça de Queiroz era cliente assíduo.

Depois, passando pela Rua de São Nicolau, atravesse para a Rua do Ouro, vire à direita e logo a seguir está no Terreiro do Paço.

            Pela praça deambulou o escritor, e com ele alguns dos personagens  da sua obra, umas vezes ironizando ferozmente contra os governantes, invisíveis nos seus gabinetes sobre as arcadas; outras vezes comovidos a recordar a história pátria, chorando a grandeza perdida do tempo em que as caravelas partiam dali a caminho da Índia.

            Mas finalmente, governantes e governados, políticos ou artistas, todos se juntavam a discutir e a beber no Martinho da Arcada que, fundado em 1778, é o mais antigo café de Lisboa.

            O caminho de regresso era pela Rua Augusta, talvez com uma paragem ali a dois passos, na Praça da Figueira nr. 18 B, na Pastelaria Nacional, onde se ia abastecer de doces.

Atravessando o Rossio o escritor subia então os 140 degraus que o levavam ao seu quarto andar, abria a porta da varanda, e tinha defronte a estátua de D. Pedro IV[4], sobre a qual, dirigindo-se à figura do monarca, ele um dia escreveu: “Vossa Majestade está no alto de uma coluna esguia, polida e branca como uma vela de estearina, e mostra, equilibrando-se sobre uma bola de bronze, a Carta, - ao clube do Arco do Bandeira.

 



[1] No romance A Capital. Terminado em 1878, este romance seria postumamente publicado em 1925.

[2] Conhecida também por “Igreja dos Italianos”, o templo original já aí se encontrava no séc. 13 e era da devoção dos muitos mercadores e navegantes venezianos e genoveses que então viviam em Lisboa. Tal como o conhecemos foi construído em 1676 e renovado depois do terramoto de 1755. Reconstruído em 1785 é de uma só nave com doze capelas e tem na frontaria, num nicho sobre a arquitrave, uma curiosa imagem de Nossa Senhora do Loreto, envolvida no característico manto afunilado, com o Menino nos braços em jeito de espreitar. No portal sobressaem dois anjos, ladeando o brasão pontifício, atribuído a Bernini (1598-1680). Da autoria de António Sapeiro (c. 1670-1740), os frescos e o tecto datam de 1702 e foram recentemente restaurados.

[3] A estátua original, da autoria do escultor António Teixeira Lopes (1860-1942) era em mármore branco. Repetidos actos de vandalismo levaram as autoridades a substituí-la no Verão de 2000 por uma réplica em bronze.

[4] Inúmeras vezes contada, a história não perde com a repetição: originalmente a estátua representava o imperador Maximiliano do México (1832-1867) e encontrava-se na Alfândega de Lisboa à espera de transporte, quando o imperador foi fusilado. As autoridades portuguesas aproveitaram a ocasião para a adquirir por um preço razoável e mandaram acrescentar à face rapada do arquiduque austríaco a grande barba do 28° rei de Portugal e primeiro imperador do Brasil.

O monumento, com  27,5 m de altura, foi inaugurado em 1870 e compõe-se de um pedestal onde se acham esculpidas figuras alegóricas da Justiça, Prudência, Fortaleza e Moderação, entrelaçadas por festões com os brasões das que eram nesse tempo as dezasseis principais cidades do país. Outras quatro figuras, representando a Fama, decoram a base.

quinta-feira, setembro 11

O incêndio de Lisboa

 

 

Primeiro as recordações. No Verão dos meus dezassete anos, pouco antes de acabarem as aulas, recebi dois golpes duros: com uma carta de seis linhas, Teresa - a das tranças negras e olhos verdes - findava a paixão que nos queimava desde a Páscoa, e no dia seguinte, no parque, descobri-a abraçada a um brutamontes que jogava basquetebol e estudava Medicina. Traição dessas só deixava um caminho: fugir para longe e refazer a minha vida nos braços de outra - de preferência também com olhos verdes e tranças negras.

 Remoendo planos de vingança futura, comecei a juntar em segredo o que me parecia indispensável para uma expedição longínqua e definitiva. Os meus pais, porém, misteriosamente ao corrente dos meus amores infelizes, e mais que satisfeitos com o meu excelente exame, concordaram que eu "fugisse", recomendando mesmo Lisboa como o lugar ideal para arejar a tristeza, fazer novas amizades e descobrir um mundo maior.

Os comboios do norte paravam então no estação do Rossio, no centro a cidade, e aí cheguei às seis da manhã de um domingo de Julho de 1947.

A primeira impressão foi de grande estranheza. Os poucos passageiros desse comboio nocturno e barato, que levara catorze horas para fazer trezdentos e poucos quilómetros, pareceram desaparecer como por mágica.

Para o lado da Avenida e no Rossio não se via vivalma. Nenhum carro, nenhum eléctrico. Fui até ao meio da praça e descobri, parados junto da estátua de D. Pedro, rindo às gargalhadas, três soldados que tinham viajado no mesmo vagão: dois de farda limpa e espingarda ao ombro, o terceiro algemado entre eles, a farda esfarrapada.

Do resto da manhã pouco me lembro. De começo instalei-me na Pensão Tivoli, hoje hotel de luxo, e aluguei depois um quarto na Praça da Alegria. Por essa altura já a tristeza me abandonara, e das raras vezes que a imagem da Teresa apareceu a mortificar-me, lembro-me de ter cuspido vigorosamente para o chão o meu ódio dela e o mau gosto dos primeiros cigarros.

Na primeira tarde, insaciável de agitação e ruído, desci a Avenida pelo lado direito, fui espreitar os teatros e cafés do Parque Mayer, passei os Restauradores e segui até ao Rossio, que logo me pareceu familiar. Depois hesitei um momento à entrada da Rua do Ouro, sabendo que o Terreiro do Paço e o rio ficavam ao fundo. Mas a escolha de há muito estava feita. Antes de virar para a direita e subir o Chiado, parei um instante, acendi outro cigarro, a dar tempo para acalmar dentro de mim o sentimento de solenidade e a emoção que me tomava.

Nos jornais e em todos os livros de Eça - o maior dos nossos romancistas, nessa altura para mim um deus e hoje ainda de longe o meu favorito - o Chiado resplandecia, era único. A burocracia municipal, pobre de fantasia, tinha-o dividido em Rua do Carmo e Rua Garrett, mas isso eram apenas placas nas esquinas, nomes de circunstância a recordar um convento e um dândi.

Mais que um seguimento de ruas, cafés, livrarias, casas de modas, joalheiros e salões de chá, o Chiado tinha o ambiente magnífico de um forum da antiguidade.

Realizavam-se nele harmonias secretas, era simultaneamente lugar de dinheiro, de injustiças, beleza, intelecto, de poderes bons e maus, de esbirros e poetas. A Ópera ficava quase paredes meias com as câmaras de tortura da PIDE. Os grandes burgueses, os aristocratas e os políticos, almoçavam no Grémio Literário, fundado em 1846, e depois, de charuto aceso, iam ali ao lado à Bertrand ou à Sá da Costa, trocar impressões com os escritores. Num grande desdém mútuo, é certo, mas com maneiras impecáveis de um refinamento quase oriental.

Na Benard, no Baltresqui, na Ferrari – "Casa Fundada em 1846, Almoços à Lista e Chá Elegante às 5 da Tarde", anunciava a tabuleta - as condessas, as actrizes e aquelas mulheres a que os romances chamavam demi-mondaines (nenhum dos meus dicionários dava o significado) passavam horas a debicar manjares delicados, beberricando chá e copinhos de Porto.

A "Casa Havaneza" e "A Brasileira", não eram apenas uma tabacaria e um café, mas dois pontos vitais da cidade e do país: aí, entre dois charutos ou dois cafés, faziam-se e desfaziam-se reputações, governos, negócios e promessas.

O Joalheiro Leitão tinha no Chiado um estabelecimento onde se forneciam os reis. O Chiado tinha visto passar os grandes da poesia: Bocage, o maior do seu século; Gomes Leal, um génio igual a Camões; Pessoa; António Botto. Com excepcão de Bocage, "poetas malditos", outras expressão que os dicionários não aclaravam.

Ao cimo, ocupando a área enorme que tinha sido de um convento e de um hospital, ficavam os "Grandes Armazéns do Chiado."

Os jornais garantiam que não havia igual em Paris, e eu, que já então lera Au bonheur des dames (Zola era outro Deus) tremia de excitação ao dar-me conta que daí a minutos lá ia entrar.

A partir desse dia perdi a conta das vezes que subi e desci o Chiado, um circuito que infalivelmente me levava, sempre pelo passeio do lado direito, do Rossio ao Largo de Camões. Depois, pelo passeio oposto, descia para a Rua Nova do Almada, a Rua do Ouro, e voltava ao ponto de partida.

Entretanto, homem do mundo com fato de três peças, aprendi a conhecer a cidade, os seus bons e maus costumes, as ruas elegantes e as da vergonha. Nelas passeei, gozei, bebi e comi, amei, tive sonhos grandes.

No meio tempo esquecera a família e a vida passada, por isso grande foi a minha surpresa quando um dia dei de repente com meu pai. Num tom calmo que eu lhe desconhecia, falando de homem para homem, anunciou que me vinha buscar porque as aulas começavam daí quinze dias, e era bom que me preparasse.

Fiquei sem fala. Aqueles três meses não tinham sido iguais aos do calendário, era realmente verdade que o tempo, às vezes, podia passar como os livros diziam: num relâmpago.

Quando no dia seguinte entrámos no Foguete (o comboio que voava a 100 km/h!), meu pai tirou do bolso um presente para adoçar a amargura do regresso: o relógio que ainda hoje trago no pulso. E num rasgo de generosidade deu-me também a caneta Sheaffer's que eu tanto lhe invejara.

Quando nos serviram o almoço, já perto de Coimbra, perguntou-me se fumava, estendeu-me um cigarro, a caixa de fósforos, e disse que dias antes, na festa de Viana, tinha visto a Teresa e o matulão:

- Achei-a feia, sabes? Tipo de enjoada.

- Teresa? Ah! A Teresa.

 

Voltei a Lisboa e ao Chiado dois anos mais tarde, para a tropa. O meu quartel era na Graça, um antigo convento, aquele prédio desmedidamente longo que se estende por sobre o monte, ao lado do Castelo de São Jorge. Esplêndida vista sobre a cidade. Anos de rebeldia, de raiva impotente contra um Portugal que não mudava e ninguém parecia de facto querer mudar. Os escritores, as condessas, os banqueiros continuavam como sempre, mas para mim tinham perdido o brilho, e as demi-mondaines, afinal, não eram mais que putas de luxo. Os "poetas malditos", esses, passaram a enfurecer-me, por lhes interessar tanto o diminuto mundo da sua estética e dos seus complicados amores, e tão pouco a sociedade que em torno deles apodrecia.

Tudo isso, mas nessa altura estava ainda longe de sabê-lo, era uma seriedade de circunstância, num mundo vasto, de tantas e tão atraentes facetas que se tornava impossível seguir nele um só caminho. Assim era eu durante o dia o militar disciplinado, obediente ao regulamento, e de noite o "revolucionário" com encontros secretos, palavras de passe, longas horas na "Brasileira" à espera do "contacto".

De tarde subia o Chiado a cavalo, de espada, luvas brancas, alamares, seguido pelo ordenança também a cavalo, levando com pompa antiga o correio a casa do general. Mas as noites passava-as a ouvir homens emaciados, precocemente gastos, falar de um paraíso que eles não tinham visto, mas sabiam existir - é sempre asim com as religiões - onde a igualdade reinava, o amor era livre e Josef Stalin, divindade boa e justa, pessoalmente garantia o bem-estar de todos.

Essa fase durou até um novo amor entrar na minha vida e nenhum general ou ideologia tinha então força suficiente contra os feitiços de Kyra, loira radiosa  vinda da longínqua e misteriosa Noruega - com semelhantes hipérboles pensava e escrevia eu nesse tempo.

No dia em que a conheci logo o regulamento me pareceu medieval, a ortodoxia do partido uma aberração. Movendo cunhas e declarando-me inapto para continuar a ser correio-montado sem perigo para o trânsito e para a vida alheia, consegui que me transferissem para a repartição encarregada de classificar a vasta biblioteca napoleónica adquirida pelo Exército, onde o trabalho acabava às cinco.

Romântico sem cura, comprei no Chiado uma guitarra, e o resto das noites desse ano de vida militar passei-as no Bairro Alto, iniciando Kyra nos mistérios do fado e nas subtilezas da língua portuguesa.

 

 

Obrigado a deixar Portugal, só em 1968 iria voltar a Lisboa. Com menos sonhos, nada radical nas convicções, dando de vez em quando graças ao Supremo Arquitecto pelos perigos de que me tinha livrado e as alegrias  que de vez em quando me pusera no caminho.

O meu primeiro romance, Montedor, acabava então de ser publicado, e porque a crítica fora unânime no louvor e descobrira nele duas ou três frases "subversivas", a Livraria Portugal, no Chiado, num golpe publicitário e em desafio às autoridades, reservara-lhe quase uma montra inteira.

Tudo isso aconteceu há tempo suficiente para que não me envergonhe de confessar agora que diante dessa montra passei e parei um número exagerado de vezes.

Nos anos que depois vieram os acontecimentos foram muitos e demasiado díspares, só esporadicamente revivem, são raros aqueles de que, como deste, recordo a data. Um dia de Maio de 1972, com tão extrema cortesia e tais palavras de admiração que se tornava impossível, ou quase, recusar o convite, o Grémio Literário convidou-me para uma conferência.

Pasmado de mim próprio, embora sem falsa vergonha, vi-me a discursar sobre Ramalho Ortigão e o seu livro A Holanda naquele "antro de parasitas da sociedade e abjectos exploradores das massas trabalhadoras" - como eu sobre os seus membros tinha um dia escrito e eles, no momento, tiveram a elegância de esquecer.

Outra recordação com data certa: no dia seguinte ao da revolução de Abril de 1974 vejo um homem correr desesperado Chiado abaixo, perseguido por uma multidão que aos gritos de "Mata que é da PIDE! Mata que é da PIDE!", se aprontava a linchá-lo.

Não esquecerei tão cedo aquele rosto e a expressão do seu terror, a maneira como os olhos exorbitavam, o instante em que ele, tropeçando, se estatelou na calçada. Saída dum canto qualquer apareceu uma patrulha e vi - julguei ver - as armas apontadas à cabeça do homem, esperei pela detonação dos tiros.

A multidão estacara, de repente silenciosa, e só então me dei conta que era contra ela que as armas estavam apontadas e os soldados, levando o homem preso, lhe tinham salvo a vida. 

As lembranças mais recentes são de Maio passado. Tendo ido com um colega holandês fazer um programa de rádio sobre a peregrinação anual de Fátima, passámos em Lisboa o dia anterior. Como já por muitas outras vezes me aconteceu, e por certo continuará a acontecer, não resisto à tentação de mostrar a cidade como se ela de certo modo me pertencesse. Sobretudo o Chiado, claro, palco do meu passado. "Ali comprei a minha primeira guitarra. Ali é a Valentim de Carvalho, com excelentes discos de fados. Ali é a Pastelaria Ferrari. Dali vê-se um sensacional panorama de Lisboa. A Livraria Portugal é do outro lado, mais abaixo. Por ali sobe-se para o Convento do Carmo..."

O colega precisava de comprar um caderno, pelo que entrámos nos "Grandes Armazéns do Chiado" e logo eu, impenitente, o informei sobre o hospital e o convento desmoronados no terramoto de 1755, ruínas que um barão comprara um século depois para construir aquele nosso Harrod's.

Os soalhos de madeira rangiam; nos tectos viam-se ainda pinturas de cenas românticas, datando da inauguração, a exortar em latim as virtudes do Comércio e do Trabalho; os corredores terminavam em delicadas varandas de ferro forjado; o pessoal atendia os clientes com a cortesia e o sorriso doutras eras.

Mais adiante, noutra loja, Peter quis comprar pilhas para o seu gravador e uma esferográfica, mas o proprietário não as tinha. Desfeito em desculpas, ele próprio saíu connosco para o passeio, a mostrar-nos a Casa Batalha (como se eu a não conhecesse, mas condenado às vezes a passar por meio holandês, questão de solidariedade), a Casa Batalha, pois, desde 1635 propriedade e ganha-pão da mesma família.

Feita a compra foi cada objecto cuidadosamente embrulhado e atado, um dos Batalhas acompanhou-nos com deferência até à porta, como se acabássemos de fazer uma transacção de vulto.

"Ali é o Grémio Literário. Ali é a Livraria Bertrand. Ali é  "A Brasileira". Aquela é a estátua de Camões. Mais abaixo está o monumento a Eça de Queiroz...'

 

O desastre. A voz impessoal do locutor da rádio anunciava que um grande incêndio em Lisboa causara uma vítima. Um incêndio com apenas um morto não me pareceu merecer o qualificativo de grande, e logo  o esqueci, certo de que o item nem sequer seria mencionado nos jornais. Profundo foi por isso o meu desespero, ao dar-me conta mais tarde que o locutor não tinha exagerado. O Chiado ardia! A sua voz deveria ter sido outra para anunciar o tamanho da tragédia e me avisar que naquele momento desapareciam muitos dos lugares mais queridos do meu passado!

Voo para Lisboa e, perdido entre a multidão contida pelas barreiras da polícia, posso ver com os próprios olhos o que desapareceu e o que ficou. Desde o Elevador de Santa Justa para baixo não ardeu nada. Por isso lá está ainda essa bela construção de Eiffel e junto dela a Livraria Portugal. Da Rua Ivens para cima salvou-se tudo também, guardamos o Grémio Literário, a Livraria Bertrand, "A Brasileira", a "Casa Havaneza", o São Carlos.

Mas do elevador até à Rua Nova do Almada, virando depois para a Rua de São Nicolau e na parte ocidental da Rua do Ouro, são só terríveis escombros que não tardarão a desmoronar. Olha-se para eles e não se acredita naquela fealdade de pesadelo, a mente simultaneamente regista e recusa o que não tem remédio nem salvação.          

A perda é irrecuperável. Certamente que com vontade e dinheiro será possível fabricar réplicas fiéis, criar para os vindouros ilusões quase perfeitas. Mas há um mundo de diferença entre os ambientes genuínos e a sua imitação, entre o que cresce pouco a pouco à força de calor humano e o que sai da fábrica pronto a servir.

Nunca mais rangerão os soalhos de madeira, nada poderá restituir aos espelhos a patina de século e meio, nas calçadas refeitas desaparecerão para sempre as pegadas dos que lá passaram antes de nós e as nossa próprias.

Segunda-feira de manhã, iluminados pelo sol, os escombros pareceram-me ainda mais terríveis e desesperados, ao mesmo tempo símbolo e sinal de mau agouro num país onde, mau grado a democracia recuperada, a vida da maioria continua a ser uma longa espera impotente e triste entre coisas que apodrecem e coisas que ardem.