domingo, janeiro 12

O ramerrão e a cautela

 

Quando nalgumas situações é grande a probabilidade do tropeço, mais urgente se torna descobrir maneira de o evitar ou, caso essa falhe, fazer de modo a limitar os danos.

Contudo, para nosso mal e prejuízo, se a pseudo-sabedoria acima pode valer para momentos como o de atravessar a rua fora da passadeira, esquecer a panela ao lume, ou sair de casa deixando as chaves penduradas na porta, é duvidosa a sua eficácia no ramerrão do dia-a-dia. Tanto mais porque, embora alguns vivam horas de febril actividade, mesmo esses não escapam a perguntar-se por que tem de ser assim, se não haverá maneira de resolver, ou modificar, o que parece imutável.

Nesse imutável entram umas quantas, embora raras ocasiões, a que se poderá escapar uma vez por outra, mas são implacáveis na exigência do regresso à rotina. Higiene, horas de sono e repouso, a alimentação, as funções do corpo, só essas já encheriam a lista, mas há ainda como que os anexos do que implica a vida em sociedade.

Não se aceita – aliás é imprudente – o desvio aos usos, costumes e atitudes a que, por exemplo, obriga o entrar com outros no ascensor do prédio onde se mora. Esse ramerrão conta igualmente – talvez até mais - na rua de um bairro em que todos os vizinhos se conhecem. E nele há que incluir as circunstâncias da vida numa aldeia, pois aí o ramerrão toma como que uma importância de decreto-lei, sujeitando o transgressor a ter de explicar e justificar uma mudança de hábito ou comportamento. Caso contrário, arrisca-se a que o  sujeitem a um mesquinho, mas sempre aborrecido, e muitas vezes duradouro ostracismo, que pode ir do olhar vesgo ao extremo de lhe negarem a fala.

De modo que assim, também no ramerrão é válido o provérbio: cautela e caldos de galinha não fazem mal a ninguém.

 

 

 

sexta-feira, janeiro 10

A vergonha de saber e calar

 

https://observador.pt/opiniao/a-resistencia-ao-populismo-esta-a-corroer-a-democracia/

quinta-feira, janeiro 9

A hipocrisia dos censores

 

https://blasfemias.net/2025/01/08/contricao-de-zuckerberg-e-censura-de-ursula/

domingo, janeiro 5

Partidas e chegadas

 

Um ano findo, outro começado, nada adianta que nos queiram convencer que os dias são mais curtos, pois se de verdade diminuem neles as horas de luz, assusta o multiplicar das que são de negrume e nostalgia, chamando temores insuspeitos, a remoer memórias que se supunham defuntas e enterradas.

Esqueceram-se já os votos de Boas-Festas mandados e recebidos, os postais ilustrados de um carinho de artifício, mais apreciados pelo que devem ter custado, do que pelas sempre idênticas e já cansadas frases, debitadas num estilo que, de tão usado e abusado, se mostra ineficaz no propósito, vira do avesso as boas intenções, muda por vezes em escárnio o que deveria ser gratidão

Sabemo-lo todos, que mútua e universalmente nos iludimos, a pendular entre a criancice e o faz-de-conta, eternos fingidores, cansados de pôr a máscara e logo a seguir tirá-la, cansados de nós próprios, do semelhante que ora nos faz sombra, empurra, passa rasteiras, barra o caminho.

É de evidente mau gosto, e gratuita crueldade, este começar o ano com semelhante perspectiva, tanto mais que pelo mesmo preço, e mais carinhosas consequências, se pode exprimir o contrário, seguindo a tática eficiente e sempre certa de agradar ao freguês, ao amigo, ao patrao, à cara-metade.

Todavia, usando esse modo resta o busílis: diz-se franca e abertamente o que vai na cabeça e no coração, ou segue-se o caminho fácil do agrado e das boas maneiras da cortesia?

Na realidade tudo são horas e humores. Umas vezes por cansaço, noutras porque a digestão foi má e o estômago azedou, mas sobretudo pelo desânimo de nos querermos diferentes, melhores, e nos sentirmos algemados ao destino que nos coube.

 

sábado, janeiro 4

Urologia

 

Veio visitar-me com o pretexto de que não nos víamos há tempos. Conversámos sobre o calor, sobre a rapidez com que os anos passam. Em vez de um segundo copo de vinho branco que lhe ofereci, disse que se eu não me importava preferia cerveja. E como se a minha breve ausência na cozinha o tivesse encorajado, quando me voltei a sentar perguntou-me à queima-roupa se eu já tinha sofrido de impotência.

- Felizmente não. Ainda não.

Os sintomas começara ele a senti-los há muito, mas diminutos e irregulares demais para lhe causarem preocupações. Dizia-se que talvez fosse cansaço, alguma indisposição, a consequência dos saltos de humor a que ninguém escapa ou, sabe-se lá, o primeiro sinal do pêso da idade. E num compreensível reflexo de auto-defesa, mal o sintoma passava esquecia a ameaça. Até ao dia em que teve de enfrentar a realidade.

Com o choque da constatação veio o pânico, o sentimento de desvario de que o mal que o atacava não se limitava ao sexo, mas abrangia uma parte maior do seu corpo, lhe tocava aqui e ali o espírito. Fisicamente tinha a impressão alarmante de ter sido amputado, mas pior ainda era a ausência total de sensações.

O médico auscultou-o, provocou reflexos, fez perguntas pertinentes, apertou-lhe a barriga, percutiu nas costas, arrepanhou-lhe as pálpebras, examinou-lhe a boca.

Assim à primeira vista não descobria causa física ou orgânica e por isso, disse, ia remetê-lo ao urologista. Sabia ele que muitas vezes a impotência tinha uma origem psíquica? Sabia sim, mas o sabê-lo não era conforto, antes aumentava a sua preocupação.

No hospital o urologista anotou distraidamente os dados pessoais, perguntou-lhe se sofria de qualquer doença, se tomava drogas, se fumava, se bebia em excesso. A tudo que não.

- E como está a hidráulica?

- A hidráulica? - O homem teria endoidecido?

- Sim, a hidráulica, a tubagem do aparelho. A erecção matinal funciona?

- Às vezes.

- Óptimo. Então não se preocupe, isso vai passar - e sem mais tinha-o despedido.

Bebemos em silêncio, mas se bem compreendo a expressão do seu rosto ele espera a minha pergunta:

- E então, passou?

- Não sei.

- Não sabes?

- Não. Não me atrevo a tirar a prova.