domingo, novembro 17

A maratona do progresso

 

Que com o correr dos anos muito se aprende é afirmação válida em tempos passados, e para outro tipo de pessoa, pois no que me diz respeito, esse suposto muito, que me deveria ter cabido pelas nove décadas de caminho andado, mostra-se excepcionalmente escasso.

Por preguiça não foi, e por ser essa a minha natureza tenho-me desunhado a aprender, a ouvir, a aceitar, a fazer das tripas coração cada vez que a necessidade ou a gentileza o pedem. Também não foi por desinteresse, pois creio raras vezes ter-me poupado o esforço de observar, manter-me ao corrente, aceitar as normas que por vezes me incomodam, mas considero necessárias ou indispensáveis ao bem-comum.

Mau grado a boa disposição e apressada curiosidade, a armadilha com que o progresso me apanhou foi traiçoeira. Mostrou-se com tentações que não destoariam das de Cleópatra, iludiu-me a ponto de, com pressa e excesso de entusiasmo, deitar fora a máquina de escrever, que durante meio século tinha sido o meu arado, e render-me à maravilha do progresso, comprando um computador.

Seria injusto, e faltaria à verdade, se não confessasse que os oito ou nove que até agora “gastei” cumpriram o que deles esperava. Mas o que desde há cerca de um ano e pico me troca as voltas, e com irritante frequência põe à beira da crise de nervos, ou na iminência de por desespero me dar em espectáculo, é a para mim incrível, e estonteante celeridade da mudança de programas, códigos, fórmulas, passwords -  nem por gracejo me atreveria a dizer senhas -  tudo à mistura com um vocabulário que, além de arrevezado, tem toda a aparência do linguajar de iniciados numa seita.

Ao leitor parecerá isto o queixume de um tonto, mas de verdade é apenas a confissão de me ver sem músculo para correr na maratona do progresso.

 

sexta-feira, novembro 15

Bom senso

 

É o bom senso que poucos exprimem, pois no rebanho está o proveito que a moda dá. Aqui

quarta-feira, novembro 13

A Ética da Raiva

 

A Ética da Raiva

                                                                              Bruno Vieira Amaral

 

“Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. E encontrou no templo os vendedores de bois, ovelhas e pombas, e os cambistas nos seus postos. Fazendo um chicote de cordas, expulsou-os a todos do templo assim como as ovelhas e os bois; espalhou as moedas dos cambistas pelo chão e derrubou-lhes as mesas; e aos que vendiam pombas, disse-lhes: «Tirai isso daqui. Não façais da casa do meu Pai uma casa de negócio.»” Haverá quem, do Jesus Cristo retratado pelos evangelistas, prefira o orador cativante do Sermão da Montanha, o semi-deus capaz de trazer os mortos de volta à vida ou de transformar a água em vinho ou o homem que enfrenta com serenidade sobre-humana os seus algozes e recomenda a Pedro que embainhe a espada pois aquele que tomar a espada, na espada morrerá. A mim, não me fascina menos o menino de doze anos a argumentar com os sábios no templo, o defensor de prostitutas e desvalidos e até o Jesus que, em criança, segundo um evangelho apócrifo, fazia pombas de barro que, ao bater das suas palmas, ganhavam vida e voavam. Porém, nenhum Jesus me parece tão real e tão humano como o da passagem que comecei por ler. Aquele Jesus, capaz de indignação e fúria, é um homem sujeito às paixões e aos humores humanos.

Aos que, aqui presentes, já se perguntam se estarão no lugar certo, se não terei trocado o panegírico pela homilia e que terá Nosso Senhor Jesus Cristo que ver com o cidadão que viemos aqui homenagear, recomendo a leitura da última crónica incluída no livro Mazagran. Intitulada “Para Deus”, termina assim: “O meu medo é notar que com os anos me vou tornando razoável em excesso, quase doentiamente tolerante. É disso que quero que me guardeis, Senhor. Dai-me raivas. Mantende viva em mim a capacidade de me enfurecer. Deixai que continue a chamar às coisas pelo seu nome, a criticar sem medo, a rir de mim próprio, e livrai-me até ao último momento das aceitações que crescem com a idade.” Ao contrário da oração que Jesus ensinou aos homens e que os cristãos devotos têm repetido nos últimos dois mil anos, Rentes de Carvalho não pede a Deus o pão nosso de cada dia, o perdão das dívidas, nem que nos livrai do mal. Pede a Deus que lhe dê raivas. Pede a Deus que mantenha viva a capacidade de se enfurecer. Pressinto que o Jesus da preferência do escritor, se é que tem algum, seja o que fez um chicote de cordas e, furioso, expulsou os vendilhões do templo.

É verdade que desde que conheço Rentes de Carvalho, faz agora sete anos, nunca o vi virar do avesso nenhum templo, nem sequer uma biblioteca, templo dos homens de letras, embora já tenha sido testemunha de algumas fúrias logo devidamente aplacadas com uma posta mirandesa ou uns deliciosos camarões al ajillo saboreados na cervejaria Ribadouro, templo da sua breve juventude lisboeta. Indignações e perplexidades, testemunhei várias: com companheiros de ofício que não entende, pasmado perante leitores que o não entendem, envergonhado perante jornalistas que o não leram e perplexo perante mim que, graças aos caprichos da fortuna, o conduzi várias vezes entre Lisboa e Estevais, viagens onde, por mais de uma ocasião, terei dado mostras de inapelável ignorância. No final, são e salvo na aldeia dos seus antepassados, o bom humor recuperado, lá nos despedíamos com afecto, o que me recordava uma das máximas da sabedoria popular a que nunca deixei de dar crédito: mau feitio, bom carácter.

O mau feitio tê-lo-á herdado do pai, homem de repentes que, no fim do jantar, atirava punhadas e rosnava ameaças, e da avó intempestiva que, numa daquelas horas que dizem do diabo e são bem dos homens, pisou aos gritos o corpo da filha. Porém, talvez o mau génio possa também ser um dom cuja renovação se pede a Deus em crónica literária. “Torna-me sábio”, pedia o salmista. “Dai-me raivas”, pede o escritor. A raiva que pede é de natureza diferente da cólera que nasce da frustração ou da fúria que emerge, sem hora e sem sentido, das mais negras profundezas da alma. A raiva que pede é o cordão tenso e vital que o liga ao mundo, que o mantém vivo. O contrário de estar vivo não é estar morto. É viver sem raivas.

Raiva foi o combustível do livro que o celebrizou na Holanda, o país que o acolheu. Com os Holandeses não é uma agradável crónica de costumes, o elogio de um povo perfeito e de uma sociedade idílica, o agradecimento curvado de um imigrante escrito com a humildade cabisbaixa de que sofre o português, sobretudo quando fora do rectângulo do seu conforto e da sua miséria. O país ali desenhado é a antítese da aguarela pastoril pintada por Ramalho Ortigão, que não quis ver além da superfície de moinhos e tulipas. Rentes de Carvalho atreveu-se a olhar para os holandeses como seus iguais para, assim, de cabeça levantada e olhos nos olhos, escandalizar com a lista de defeitos - desde os hábitos inofensivos à avareza, a um certo desinteresse pelos prazeres e, ao contrário da mentalidade que “tanto gosta de apregoar igualdades e fraternidades”, à indiferença pela sorte dos outros – sem deixar de apontar as virtudes. O que a uns terá parecido arrogância, injustificada para mais num imigrante vindo de um país pobre do Sul, naquela altura amordaçado por uma ditadura de décadas, era apenas a rejeição da humildade doentia, da subserviência atávica e dos complexos de inferioridade incapacitantes que nunca foram nem poderão ser os materiais com que se constrói uma relação digna entre seres humanos.

Se o livro tem na raiva o combustível, nunca se transforma numa peça de ódio, num acto de ressentimento. Como escreveu o autor, “não é queixume ou libelo acusatório, antes uma tentativa de compreensão.” O Outro – essa ficção mansa que serve para apaziguar tantas consciências – é aqui, como em toda a obra de Rentes de Carvalho, alguém com quem se convive e contra quem se combate. Rentes de Carvalho não lhe vira a cara, mas também não lhe oferece a condescendência das “aceitações que crescem com a idade.” Investe contra ele, ataca-o e, dessa forma, honra-o porque se honra mais o outro no confronto aberto do que na indulgência que, furtivamente, insulta, amesquinha, ridiculariza.

A lenga-lenga benemérita do Outro tornou-se um depósito de boas intenções da literatura: escritores que escrevem para alcançar o outro e para que os leitores aceitem o outro acabam por criar um caldo pastoso e morno de tolerância que se compraz numa abstracção do outro, sempre fascinante, enquanto se esforça por não ver o outro concreto, tantas vezes repulsivo. Esse outro é uma criação aberrante, todo feito de qualidades artificiais, sem defeitos e sem vida. Para Rentes de Carvalho, a tolerância implícita na criação dessa ficção de alteridade é uma forma de indiferença, uma expressão de superioridade cultural transformada em virtude. A célebre tolerância holandesa é, na verdade, um sentimento misto de superioridade e de indiferença, de uma superioridade que se funda precisamente na indiferença. Quando pede que Deus lhe dê raivas, o que Rentes de Carvalho pede é não ser contaminado pela tolerância que reduz o outro a uma ficção da nossa imaginação, a um títere na nossa farsa humanitária. A raiva suplicada não é cegueira, é, ao invés, o discernimento de se escrever, como diz o autor, ao nível da pele, do sensível. A raiva é essa capacidade de sentir um incómodo físico pela injustiça, pela hipocrisia, pela condescendência alheia. Não é a raiva do impropério cobarde ou a raiva inócua de que falava Miguel Torga quando se referia aos portugueses como uma “comunidade pacífica de revoltados.” Pressente-se na escrita de Rentes de Carvalho que ele sabe que o primeiro passo para nos reconciliarmos com o mundo e com os outros é declarar-lhes guerra.

A prova de que esta raiva não é apenas uma variante literária da popular resmunguice, de que é séria e produtiva, de que se inscreve sobre um fundo ético, é a possibilidade de a virarmos contra nós e os nossos. E a raiva de Rentes de Carvalho nunca é tão justa, tão acutilante, tão necessária, como quando a vira contra os seus. Diga-se em louvor do homenageado que nos seus livros não tem feito outra coisa, quer nas obras de ficção, quer nos diários, crónicas e reportagens, como Portugal, a Flor e a Foice. Nesse livro escrito no pico da febre revolucionária, na época em que todos ostentavam cravos e se declaravam, no mínimo, socialistas, em que os defensores do Antigo Regime desapareceram como que por magia e até os jovens monárquicos se afirmavam revolucionários, já Rentes de Carvalho expunha as falhas da nossa democracia que hoje todos reconhecemos. Mas hoje é fácil. Naquela época, havia um preço pessoal a pagar por quem se atrevia a desafiar com a voz do pessimismo os trinados optimistas dos amanhãs que cantam, para quem ousava destoar do coro esmagador, unânime e burro das grândolas. Apesar disso, honra lhe seja feita, Rentes de Carvalho nunca recuou.

Há uns meses, um leitor muito preocupado com as declarações polémicas de Rentes de Carvalho sobre as eleições holandesas e sabendo que eu o defendera, perguntou-me, já em desespero de causa, se eu não achava que teria sido melhor ele não dizer nada para, ao menos, não perder leitores. Pobre homem, não saberá ele que, quando alguns se prostram e rebolam para os conquistar, perder leitores é coroa de glória? Durante décadas, Rentes de Carvalho viveu como um desconhecido para os seus compatriotas. Quando, nos últimos anos e para benefício de todos nós, isso mudou, nunca se viu nele o revanchismo daqueles a quem bálsamo do reconhecimento tardio não alivia as chagas dos agravos pretéritos, embora certamente não lhe tenha escapado, porque poucas são as coisas importantes que lhe escapam, a ironia de ver uma obra como O Rebate, tão castigada aquando da primeira publicação, ser considerada agora uma obra-prima. Mas a gratidão não pode ser uma mordaça perfumada. O apreço dos leitores não pode ser o punhal traiçoeiro que docemente se crava nas suas costas. Se deve servir para alguma coisa é para reforçar a liberdade do escritor e não para o agrilhoar.

“Não devo nada aos leitores”, declarou, e esse nada sabemos bem o que significa. O escritor não deve obediência aos seus leitores e, graças aos deuses e à segurança social holandesa, Rentes de Carvalho não depende da bondade alheia nem da generosidade dos leitores para viver os seus últimos anos em total liberdade de espírito, com as raivas que Deus tenha a misericórdia de lhe conceder. Seria de uma trágica ironia que um homem que durante décadas viveu à margem dos seus contemporâneos visse agora a sua liberdade cerceada pelo apreço destes, pelas exigências dos que súbita e tardiamente, como é o meu caso, se tornaram devotos dos seus livros. Ao autor a liberdade de escrever o que quer, aos leitores a liberdade de lerem o que bem lhes aprouver e que Deus dê raivas a todos para que possam enfrentar o mundo.

O mundo. Escreve Rentes de Carvalho que Deus criou o mundo numa tarde quente de Maio de 1930, aqui bem perto de onde nos encontramos. Nesse mundo maravilhoso visto do Monte dos Judeus por uma criança de binóculo, o mundo do palácio do bispo e da sé, dos arvoredos do Palácio de Cristal e dos telhados dos armazéns de vinho, dos cargueiros gigantescos na barra e dos homens da estiva à cabeça, neste mundo colorido e confuso, terno e trágico Rentes de Carvalho provou pela primeira vez o sabor amargo da humilhação e aprendeu a lição, nem sempre colhida a tempo, de que o mundo é o lugar dos que nos amam, mas também daqueles que nos ferem, dos que nos aplaudem, mas também daqueles que nos humilham, e que muitas vezes são os mesmos. “A humilhação. Deve ser um dos grandes motores da História. Deve ser o que mais se lembra para a história de cada um. Os pais que se tiveram e os castigos que nos infligiram, as simples pugnas com os camaradas e em que se ficou por baixo.” Isto escreveu um escritor que pouco agrada ao nosso homenageado. Mas é verdade o que escreveu. A humilhação é um dos grandes motores da História, da história de cada um. Não era a humilhação de, estrangeiro e pobre, ouvir os insultos dos holandeses que o levava a chegar a casa à noite e sentar-se a descrevê-los, “anotando os gestos, as palavras, os nomes”? Terá percebido que o animava o mesmo espírito de antagonismo que dele se apoderou no momento da primeira humilhação?

Naquele tempo em que o mundo tinha nascido havia pouco, o pequeno José Avelino entretinha os camaradas com histórias mirabolantes, em que aos guiões dos filmes vistos no cinema acrescentava as voltas da sua imaginação, com viagens de submarino até terras de África, aventuras no Amazonas, episódios de gelar o sangue no castelo do Drácula. Até que um dia, após conluio infantil, os outros miúdos, com a maldade que, na infância, se desculpa com a inocência e que, por isso, nunca mais é tão pura, desfizeram a fantasia do grande contador de histórias e atiraram-lhe à cara a palavra mais dura, dividindo correcta e acintosamente as sílabas, como numa cantilena cruel: al-dra-bão. A humilhação sofrida, por ele, que já intuíra que contar histórias não é o mesmo que mentir, levou-o a declarar uma guerra ao mundo que, de certo modo, ainda hoje continua a travar. Assim, graças ao insulto dos seus involuntários criadores, nasceu um escritor. Se temos de agradecer ao avô José Maria o ter-lhe ensinado as primeiras letras, àqueles companheiros de infância, cujos nomes a história apagou, temos de lhes agradecer um carácter: o de um homem que, já entrado em anos, ainda pede a Deus que lhe dê as raivas para poder combater o mundo e, através da escrita, chegar ao lugar onde se ajustam as contas e se vingam as humilhações.

Vila Nova de Gaia, 18 de Maio de 2018

Bruno Vieira Amaral

 

 

 

 

 

 

 

domingo, novembro 10

A guerra tem modas

 

Que o mundo está constantemente à beira da catástrofe não é novidade. Pelo menos no que a mim respeita, pois desde que ganhei entendimento, até ao noticiário desta manhã, já ouvi essa profecia um mais que cansativo e desmesurado número de vezes. Todavia, se num longínquo antigamente se lutava a pé, a cavalo, corpo-a-corpo, à mocada, depois a ferro e fogo, na versão actual nem a bomba atómica assusta o suficiente. Profetizam os que se  dizem ao corrente do segredo, que será também com dilúvios gerados pelo inimigo, idem furacões, fomes, terramotos, epidemias, maleitas tão bizarras que ultrapassam o que agora somos capazes de imaginar.

Mesmo assim continuará a haver balas e bombardeiros, granadas, tanques, artilharia, pois são indispensáveis para que a indústria funcione, dê lucro. Idem com o resto do material. Por exemplo o bizarro drone, que de repente apareceu e, coisa de nada, ainda atarantados com o nome, e de boca aberta para capacidade do aparato, já ele passava de curioso brinquedo a arma supersónica. Sem demora e mais que certo, outro ultrapassará esse.

Entretanto sofre e morre gente, inescapável efeito colateral, mas nada que por estarmos longe nos tire o sono. Menos ainda aos que se divertem a ser estrategas e “especialistas” da guerra. Em tempos há muito idos, já os avôs desses explicavam à mesa do café, às vezes desdobrando um mapa para que os simples compreendessem, que táctica estavam a escolher “os nossos”, e de que modo iria ser totalmente derrotado o inimigo. Tempos há muito idos, de facto, e então também simples, porque os “especialistas” que agora se mostram na TV, além de jurarem saber tudo de tácticas, garantem estar ao corrente de intenções e segredos que só conhecem os íntimos dos senhores no poder.