quarta-feira, outubro 1

O "Meia-Foda"

 

Quem o não conhece e ouve falar dele, engana-se se julgar que a alcunha do Rui B. Gomes, “ O Meia-Foda”, tem a ver com uma diminuta estatura ou debilidade da sua descendência, pois nesse particular é todo o contrário: o Gomes olha-os do alto do seu metro e oitenta e dois, e ambos os rapazes que gerou vão pelo mesmo caminho.

A alcunha puseram-lha na universidade, onde estudou Astronomia, mas não devido a qualquer fraqueza das suas capacidades intelectuais, pois nelas era bastante acima do mediano, sim pelo tique de parecer incapaz de completar um raciocínio ou expor um assunto com princípio, meio e fim. Desse modo dá por vezes uma irritante impressão de arrogância, felizmente imerecida, mas da alcunha nunca mais se livrou, e é por ela que os colegas de então e os amigos ainda se lhe referem.

Embora nas últimas décadas tenham sido grandes, por vezes radicais, as mudanças dos usos e costumes, muito há que continua igual desde que os humanos descobriram a fala, e com ela as possibilidades da bisbilhotice, que hoje em dia, graças aos meios de comunicação instantânea, pode ir da gentileza à mais odiosa maldade.

Assim aconteceu que num chat em que por acaso acabara de entrar, a Rita, dedicada e fiel esposa há duas décadas, paralisou ao ouvir a Marta referir-se ao Rui como “O Meia-Foda”.

O choque foi de tal ordem que lhe cortou a respiração, incapaz também de parar as tremuras que lhe sacudiam o corpo, a cabeça a fervilhar de recordações, temores que de súbito pareciam fazer sentido, pois de facto não era o marido romântico com que sonhara. Além de que na cama, embora fosse pouca a sua experiência de solteira, nunca ele se tinha mostrado amante fogoso, antes o avesso, o que pelos jeitos outras sabiam, daí a alcunha. Uma vergonha! E de certeza era assim que falavam dela: a Rita, a mulher do “Meia-Foda!”

 

terça-feira, setembro 30

Passatempo

 

Quando ao fim da tarde de sexta-feira entrei no cubículo que nos serve agora de escritório e sala de espera, parei surpreendido ao ver que Nicolas ainda não tinha ido embo­ra.

Sem me enca­rar, concentra­do a atender o telefone ao mesmo tempo que tomava notas, acenou para que eu pegas­se no ausculta­dor. Mas o calor tropical do dia e quase três horas na cadeia a assistir ao inter­ro­gatório de um clien­te preso por suspeita de assalto à mão armada, tin­ham-me deixado de rastos.

Pousei a pasta no chão, des­calcei os sapatos, tirei as peúgas e deitei-me no velho sofá de couro que está junto da porta. Quando Nico­las voltou a insistir com um gesto de urgê­nci­a, apontando o auscultador, abanei com a cabeça que não e fechei os olhos, a sua voz a martelar na minha sonolência:

            ‘...’

‘Parece-me difícil.’

       ‘...’

‘Dezasseis?’

            ‘...’

 'Dos amigos ou das amigas também não?’

            ‘...’

 ‘Nem depois?’

            ‘...’

‘Ou a Polícia, parece-me que sim.’

            ‘...’

‘A decisão não é minha, claro. Aliás, não lhe posso dizer se ele está interessa­do ou se o pode aten­der. Com o trabalho que tem neste momento acho que vai ser difíc­il. Mas vou tentar.’

            ‘...’

- Com certeza.

            ‘...’

‘Sim, sim. Antes não vejo possibilid­ade.’

            ‘...’

‘Terça-feira, vinte e dois. Às du­as? Certo. Quando o doutor Trasberg voltar falo com ele. Se por qual­quer razão não puder, então telefono e marcamos outro dia.’

            ‘...’

‘A sua secretária. Perfeitamente.’

Abri os olhos e Nicolas com um gesto pergun­tou se eu estava de acordo com a data. Acenei molemente que me era indiferente, ou que sim, pouco importava, e ele, repet­in­do a confirmar, despedi­u-se com as corte­sias habituais, pousou com exagerada calma o apa­rel­ho a mos­trar que se continha e apertou a cabeça entre as mãos num cansaço teatral:

‘Que chato!’

 ‘Quem?’

 ‘O senhor Dekker. Fabricante de mecânica de pre­cisão. Self-made man e muito orgulhoso dos seus dois mil e não sei quantos operári­os. Duas empresas aqui, uma na Alemanha, outra na Suíça. Vila em Blari­cum. Vila em Lanzaro­te. Penthouse em Miami. Foi o que me contou com extremo detal­he, antes de dizer que é pai de Alexandra, filha única, dezasseis anos, quase dezas­se­te. O género de rapariga que umas vezes atrai dificul­da­des ou então, quando se começa a abor­recer, simplesmente as cria.

‘Madame Dekker, pari­siense de na­scença, em lágrimas, diz que ne comprends pas. A­lexandra tem tudo: dinheiro, cavalos, liber­dade, uns cheirin­hos de frutos proibi­dos quando lhe apetece - o papá não foi concreto, mas refe­riu os perigos que a juventu­de hoje em dia corre. Fins-de-semana em Paris ou Nice, conforme a es­tação, com uma avó rica e excê­ntr­ica que a estra­ga. Más notas no liceu.’

Nicolas vira a página do bloco:

‘Há coisa de um mês deixou de aparecer em casa, mas de vez em quando telefona a dizer que ninguém se aflija, tudo vai bem, e que nos tempos mais próximos não tem intenção de voltar à rotina doméstica. Que talvez acabe por fazer aquela peregri­nação à Índia de que tantas vezes tinha falado. Ou ao Nepal. Ou ao Tibet. O senhor Dekker não sabe bem, ou não se lembra, diz que tem difi­cul­dade em fixar nomes exóticos. Em todo o caso em di­recção ao Extre­mo Oriente.

Maman aventou a ideia de contratar um detective privado, mas o papá é em absolu­to contra. Porque seria desastro­so para o negóci­o. Iam logo correr boatos e os jor­nais começavam a escrever aquelas histórias do costu­me. Como o grosso da sua clientela é avesso, mesmo indi­rec­ta­mente, mesmo remotamen­te, a ver os seus nomes badala­dos em con­sonância com tudo o que seja negativo, que cheire a escândalo ou problema, desas­tre, etc...        

‘E daí?’

‘E daí diz o senhor Dekker que uns amigos de uns amigos lhe sussurraram o nome de mister Trasberg. Que mister W.D.Tras­berg talvez fosse o homem capaz de, sem zunzuns, se encar­regar de desco­brir o paradoiro da ovel­ha tres­malha­da e con­vencê-la a regres­sar ao curral.

‘Evidentemente que a respeito do escon­derijo a mocinha não diz chus nem bus, mas os pais sup­õem-na aqui em Ams­ter­dam. Talvez numa seita. Ou com algum aman­te. Porque pelos jeitos ela hesita ainda entre os êxtases da carne e os do espírito.’

‘Com krakers nalgum prédio abandonado?’

‘Fora de questão. Caroline é impecável na higiene e quase maníaca do arrumo.’  

‘ O pai esteve na Polícia?’

‘No, sir. Maman teve um chilique quando papá sugeriu a possibilidade. Fora disso ele próprio tem consciência de que ir à Polícia ou informar os jornais vem mais ou menos a dar no mesmo.’

Um bocejo levou-me a espreguiçar, fazendo-me sentir como o cansaço parecia ter-se-me entranhado para sempre no corpo. Estendi o braço para puxar a pasta, retirei dela a agenda, e porque demorava a encon­trar a esferográfica, Nicolas atirou-me um lápis.

‘Sexta-feira, vinte e dois? Às duas?’

‘Certo.’

‘Mais?’

‘A tua irmã telefonou. Diz que volta a chamar no domingo ao fim da tarde. E tenho aqui uma meia dúzia de cartas sem inte­res­se de maior. Contas. Duas intimações. O rol do tribunal para a semana que vem. Um fax da Polícia a pedir detalhes sobre Amin Gubbah...’

‘Nicolas, por favor! Tem dó! Não quero ouvir falar desse sacana.’

‘Prenderam-no em Heathrow. Por um triz quase que escapa­va para a Nigéria. Como ainda tem aquele resto de pena para cumprir aqui, vão extraditá-lo. Queres dar uma vista de olhos?’

‘Não. A única coisa que quero é descansar. Fechas tu a loja?’

‘Fecho. Apareces para um copo?’

‘Talvez, Nikita. Mais tarde. Ou amanhã.’

‘Está bem.’ E com uma surpresa demasiado natural para não ser fingi­da:

‘Já me esque­cia: Made­leine esteve aí. Queri­a falar contigo. Vai a                NewYork uns quatro ou cinco dias e não tem quem tome conta do Maurits.’

Sem responder fiz um aceno de despedida, apanhei as minhas coisas do chão, meti as peúgas nos sapatos, e fechando a porta atrás de mim saí para o vestíbulo des­calço, a gozar a fres­cura do chão de mármore. Durante um instante hesitei se entraria ou não no meu es­critório, mas a fadiga pôde mais. E vagarosamen­te, com os sapa­tos numa mão, a pasta na outra, fazendo o possível por resistir ao sentimento de derrota que tantas vezes me toma nos fins-de-semana, comecei a subir as escadas até ao terceiro andar onde tenho o aparta­mento.

Francamente não sei se devo deitar as culpas às cir­cunstânci­as, ao meu carácter, aos meus ex-sócios, à con­corrência desen­freada dos colegas, ao divórcio ou aos signos do zodíaco. Mas com certeza não faria muita dife­rença se o soubesse, nem isso me ajudaria a resolver os problemas que se amontoam no meu dia-a-dia.

A tabuleta de cobre que, jovens e orgulhosos do nosso talento, cheios de sonhos de riqueza, ­mandámos fazer quase dez anos atrás, conti­nua a brilhar elegan­temente na porta do belo prédio no Singel. Mas talvez porque quisemos demasiado e demasiado depressa, as coisas nunca corre­ram a preceito para Trasberg, Zeltin & Diakonov - Advo­gados e Procu­radores. Aliás, desde que Wladimir Diakonov se passou para a buro­cracia de Bruxelas e Pierre Zeltin teve a sorte de casar rico em Marbella, a tabuleta deixou de corresponder à rea­lidade, pois ambos desde então nem sequer pró-forma são sócios.

É verdade também que uma tabuleta com apenas Willem Trasberg não teria o mesmo cachet, além de que uma mudança da razão social implicaria sarilhos, novas in­scriçõ­es, assentos, carim­bos, papel de carta, despesas que neste momento é melhor adiar. Por agora fecho os olhos. Vou deixan­do correr, na espe­rança de que um dia as coisas acabem por endirei­tar. E se não endireitarem, depois se verá.

Mas de vez em quando, como hoje, tenho a impressão de que o mundo na verdade me não quer. Que me puseram nele por enga­no. Então conheço as horas más em que não consigo des­trinçar se o que me aflige são as tre­vas que anunciam a de­pressão, ou os jogos de um sub­con­sciente que explora as inúmeras possibi­lidades de des­carri­lar.

Nos últimos tempos do nosso casamento, quando as coisas no escritório já corriam mal, ainda cedi às in­sistências de Madeleine para que consultasse um psiqui­atra. Mas por descrença no método ou antipatia pelo ho­mem - um cinquentão gorducho, olhos pequeninos por detrás de óculos redondos, farripas de cabelo cola­das sobre a calva - a única consulta resultou numa expe­riê­ncia desas­trosa.

Porque, como ele logo de entrada avisou, não acre­ditava no simbolismo nem na contribuição terapêutica do divã, à minha chegada indi­cou-me um sofá e sentou-se ele próprio numa apara­to­sa cadei­ra de couro preto atrás da secretária.

E começou a sonda­gem prelimi­nar do costume. Como tinha sido a minha infân­cia? Feliz. A minha juven­tude idem. Ambiente fami­liar burguês, liberal, confortável. Fiz desporto, sim senhor. E viajei, gozei, fui estu­dante apli­cado. Não sou totalmente ignoran­te das coisas da literatu­ra e da arte. Gosto de mulheres. Toco saxofone. Doenças? Nada mais grave que a constipação.

Não, os meus pais nunca me maltra­taram. Nunca abusa­ram do seu poder, nem de mim. Faleceram ambos num aciden­te, no ano em que me inscre­vi como advogado. A herança, prin­cipalmente o prédio onde vivo e tenho o escritório, faci­litou-me enormemen­te o começo da carreira.

Não, não bebo por vício. De longe a longe descui­do-me e apanho uma carraspa­na. Nas noites de Ano Novo. Às vezes nos meus anos. E para resistir à monotonia e ao desconfor­to das longas viagens de avião em classe económica. Mas não bebo para afogar af­lições, nem bebo sozinho. Nas relações sentimentais tenho tido os altos e baixos que todos conhe­cemos. Vida sexual satis­fatóri­a.

Por detrás, ou a cobrir tudo isso, uma fúria latente, desordenada, uma insidiosa insatisfação que sinto para com quase tudo, o estado do mundo e o meu próprio. Um impulso irracional para endireitar, corrigir, proteger, que talvez tivesse sido melhor canalizado se, ao terminar o curso, me tivesse feito padre em vez de entrar na advocacia.

O psiquiatra ouvia-me com um ar de comise­ração e, à força de resmungos, de comentários que me pareciam descabi­dos pela sua  ironia, tentava empurrar-me para o papel do paciente que efabula por incapacidade de avaliar o mau estado em que se encontra. E como se eu estivesse ali tal um réu para ser condenado, ou pecador de quem ele impacientemente aguarda­va arrependimento, o homem, que me conhecia há meia hora, lançou-se num sermão sobre a arrogância e a frie­za, os atalhos tortuosos por onde a psique enferma (pelos vistos a minha) perigosamente resvala, inconscien­te dos abis­mos e das quedas sem possibilidade de salvação.

A sua untuosidade inicial tinha dado lugar ao que com certe­za era tratamento de choque. Levan­tando-se de detrás da se­cretária pusera-se a meio do con­sultóri­o e, voltado para mim, pontu­ava as frases com um movimento enérgico do dedo, tentando impor-me a sua suprema­cia.

Visivelmente trans­torna­do, citando a Bíblia, o psi­qui­atra trans­for­mara-se em missionári­o. No íntimo ainda me apete­ceu sorrir, descrente de que tal coisa pudesse acon­tecer comi­go, que em busca de cura eu me encontrasse nas mãos de um doente. Des­crente também que, transtornado ou não, o homem mos­trasse ter em tão pouca conta a minha inteligência e a minha sensibi­lidade. Que em vez de me tratar como um igual se diri­gisse a mim como a um garoto desatinado, a quem o mestre, a bem ou a mal, vai ensi­nar o bom caminho. Creio que foi isso o que mais me incomodou, me fez levan­tar abrupta­mente, e com um gesto de despedida pôr fim à chara­da.

Mas mau grado o tempo passado, uns três anos, conti­nuo a recordar vivamente o momento, sobretu­do a súbita e profunda irritação que ressenti. E embora nessa altura não lhe tenha prestado uma atenção por aí além, consi­derando-a apenas um episódio carica­to, a cena tornou-se desde então uma etapa relevante - marco mi­liário soaria pretensioso - no conhe­cimen­to que, à força de saltos e trambolhões, até agora conse­gui al­cançar de mim própri­o. Como que a con­fir­mação de que, em determinadas circunstâncias, qualquer coisa no meu íntimo inevita­velmente quebra, e se traduz então num comporta­mento que nem sempre é vantajoso para os meus interesses ou para a paz do meu espírito.

Como se isso não bastasse para me complicar a vida e o trabalho, Deus deu-me de nascença uma impaciência que em geral me torna desagradável. Junte-se-lhe um carácter indivi­dualista que, na forma extrema em que me habi­ta, por vezes é fonte de satis­fação, mas em geral se levan­ta como um muro entre mim e o mundo, entre os meus actos e a vontade alheia.

                                                                 *  *  *

 

 

sexta-feira, setembro 26

"O horror e o massacre em Gaza"

  https://corta-fitas.blogs.sapo.pt/o-horror-e-o-massacre-em-gaza-8564085

quarta-feira, setembro 24

O espantalho

 

Se  o abuso não desgastasse as palavras, a ponto que algumas, quando se empregam, logo se tornam ridículas, ou pior ainda, vazias  - poder-se-ia falar agora de "noite sombria"ou de  "gestação do monstro".

Mas o teatral não cabe aqui. Além disso, se na vida nada é fácil, na História, hélas! nada é simples.

A estes apontamentos talvez se pudesse juntar algum humor e amenizar assim a chegada do sinistro guarda-livros que, durante quase meio século, vai fazer da res publica  portuguesa coisa sua. Talvez se pudesse colorir o espantalho com alguns gracejos. Humanizá-lo. Mas como?

Na Europa dos anos trinta o seu caso não é isolado. Vem nas pegadas de Mussolini, seguem-se-lhe Estaline, Hitler, Franco, outros menores. Menores, no caso de ser aceitável medir os tiranos e os ditadores como se mede o pano – pela quantidade. Um mandou matar quarenta milhões, o outro dez, o outro...  Interessa isso? Em tal escala Salazar é um ditador "bom", os seus mortos são apenas uns poucos milhares, ninharia se ainda lhe fizermos o favor de dividi-los pelos anos em que reinou. Hitler e Estaline são monstruosos, Mussolini um palhaço ridículo. Franco é o inquisidor-mor nascido por engano no século errado, o carrasco sangrento da Guerra Civil e das prisões infames, mas com senso político suficiente para elevar a Espanha ao que ela hoje é.

Entre esses todos Salazar é único: pela mentalidade, pelos objectivos, pela constância padresca com que remou contra todas as marés: as da História, as da política, as da sociedade e as do bom senso. É único ainda pelo modo como soube e pôde, durante tanto tempo, mandar no país e impor a sua vontade . Sabe-se que leu e apreciou Maurras; é quase certo que procurou em Maquiavel a confirmação de que o cinismo na política ultrapassa em eficiência todos os outros meios. Mas bastar-lhe-ia a preparação que tinha tido. Vinha do seminário, do seio da Igreja portuguesa,  a que  na Europa ultrapassava – ultrapassa ainda todas as outras no obscurantismo e no carácter reaccionário.

Em 1928, após dois anos de ditadura militar, a situação económica e financeira do país é tal que o governo solicita junto da Sociedade das Nações um empréstimo de doze milhões de libras, para acudir ao mais urgente. Porém, as condições impostas são de tal modo vexatórias – incluindo uma verdadeira tutela que o governo se vê obrigado a recusá-las. É nesse ambiente que a 15 de Abril  o general Carmona é elevado à presidência da República, e que treze dias mais tarde António de Oliveira Salazar, professor de Economia Política na Faculdade de Direito de Coimbra, é nomeado ministro das Finanças.

Deputado católico durante um dia, em 1921, ministro das Finanças durante uma semana, em 1926, desta feita Salazar vem para ficar e anuncia-o secamente no seu discurso de posse: "Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim de poucos meses. No mais, que o país estude, que faça representações, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar".

Um sacerdote, igualmente catedrático em Coimbra e seu antigo íntimo, Manuel Gonçalves Cerejeira, virá a ser Cardeal-Patriarca de Lisboa. Com um padre e um quase padre , a Igreja e o Fascismo alicerçam-se no país enfraquecido, vão tomar o seu destino em mãos. Mas é preciso esperar ainda.

Ao anúncio da formação de um partido político único (União Nacional) em 1931, alguns militares democratas revoltam-se na Madeira e em Lisboa, mas sem êxito. É como um último espasmo. A próxima revolta séria, mas igualmente vã, irá ocorrer em Beja trinta anos mais tarde.

Ao guarda-livros não se pode dar desculpa, mas tem de se lhe dar um crédito: o de exigir que as despesas não ultrapassassem as receitas, e a submissão absoluta de todos os ministérios ao das Finanças. Desse modo, pela terceira vez em setenta e cinco anos, o orçamento do Estado apareceu equilibrado, e assim se manteve até que sobre ele caiu o desproporcionado peso da guerra colonial na década de 60.

Mas acrescente-se o que os panegiristas sempre passaram por alto e o que os bajuladores nunca quiseram ver: orçamentos equilibrados graças à miséria atroz para quase todos, privilégios desmesurados para um pequeno grupo. Tudo isso em nome de Cristo, da Família e da Ordem, e de uma bizarra concepção da sociedade, infelizmente partilhada por mais, e exposta pela última vez num discurso do ditador proferido em 1967: "Sempre houve pobres, sempre os há-de haver, é preciso que os haja".

A consolidação do poder ditatorial dá-se em 1932. Salazar é nomeado Presidente do Conselho. A Constituição Política de 11 de Abril de 1933 institucionaliza o Estado Novo Corporativo e, juntamente com a Constituição, surge o Acto Colonial para regulamentar a vida das colónias. Nele se afirma: "É da essência orgânica da Nação Portuguesa a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos, e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo Padroado do Oriente".

Este Padroado tinha-nos sido pelo Papa nos princípios do século 16 e incluía. ao lado de benefícios dubitativos para as almas e os corpos dos indígenas, benefícios certos e compensadores para a Igreja Católica. Os laços entre o governo português e o Vaticano vão apertar-se ainda mais, quando a 7 de Maio de 1940 são assinados a Concordata e o Acordo Missionário, "seu complemento – que volta a abrir os territórios do Ultramar à sementeira dos Apóstolos de Cristo".

As aparências não chegavam a ser salvas pela existência de uma Assembleia Nacional, com pretensa capacidade legislativa, e de uma Câmara Corporativa com funções consultivas, pois todo o poder residia em Salazar. Ele apenas em si próprio reconhecia qualidades e inteireza suficientes para guiar a Nação. Nos outros não via mais que títeres, peças sobresselentes que mudava ao grado dos seus humores e interesses, sobretudo quando neles sentia uma ameaça, mesmo hipotética, à sua supremacia. Os poucos que lhe souberam fazer frente eliminou-os pura e simplesmente. Alguns, dotados de inteligência e talento, foram por ele acarinhados, chamados aos postos mais altos, mas não lhes perdoou assim que deram mostras de ambicionar a coroa de delfim. A um que tinha sido ministro e era embaixador em Londres em 1945, desde que tomou ares de se considerar herdeiro, demitiu do posto e relegou ao nada, invocando o motivo de ter ele, numa recepção, apertado a mão do embaixador da Rússia.

A muitos humilhou, mas essas estavam cientes de que a humilhação aceite era a melhor das garantias de sobrevivência. É histórico o caso do ministro que lhe foi agradecer a nomeação e a quem ele, depois, acompanhado-o até à porta, perguntou:

- Onde está o seu chapéu?

- Não uso chapéu, senhor Presidente.

Salazar retirou do cabide um dos seus e meteu-lho na mão:

- Daqui em diante passa a usar.

Identificando o regime com o Estado e este consigo mesmo, Salazar considerava toda a oposição como subversiva, todos os oponentes como perigosos.  E assim logo nos primeiros anos cria uma polícia política (PVDE, mais tarde denominada PIDE e, sob Caetano, DGS), decalcada nas que existiam então na Alemanha e na Itália.

Esse aparelho repressivo vai ser o seu principal apoio, utilizando-o não somente contra os inimigos do regime, mas também como instrumento de coacção sob aqueles cuja fidelidade tendia a esmorecer.

A prisão, a tortura e a denúncia passam a fazer parte do quotidiano português, embora a Constituição de 1933 garanta os direitos fundamentais. Estão lá todos: desde a liberdade de palavra, de associação e de crença, até à imunidade contra a prisão arbitrária. Mas não passa de um papel. Negar aos seus concidadãos o que lhes cabia por direito, talvez tenha sido um dos raros divertimentos do aberrante a quem nunca se conheceu uma paixão ou mesmo uma simpatia, todo voltado para Deus e para o supremo desdém dos homens.

No dia seguinte ao da sua morte o escritor António Alçada Baptista, íntimo do Cardeal Cerejeira, quis saber que opinião tinha este do seu amigo de toda a vida e aliado de sempre. O Cardeal, talvez com o sentimento de que a última hora para si também não tardaria, teve este desabafo: "O Presidente Salazar era um homem de  muitas qualidades. Mas virtudes? Não. Nenhuma".

Não lhe fica mal como epitáfio, mas estamos ainda longe do dia em que uma modesta cadeira, quebrando, põe fim a uma carreira política, excepcional em mais de um aspecto.

O governo, a Assembleia e o funcionalismo relegados ao papel de comparsas. O povo açaimado e conhecendo um atraso e uma miséria medievais. A polícia perseguindo e torturando os oponentes, sobretudo os comunistas que, desde o início serão os adversários mais consequentes e constantes do regime; Salazar é, na verdadeira acepção, senhor e dono do país. Tal como um soberano mantém a sua corte de vassalos. Aos favoritos distribui prebendas, mercês e, para melhor os dominar, permite-lhes que roubem impunemente, reservando para si a auréola de incorruptibilidade, de desinteresse material e ascetismo.

A história da corrupção em Portugal entre 1926 e 1974 talvez nunca venha a ser escrita, mas é interessante recordar como o povo a sintetizou numa anedota:

 Uma noite jantava Salazar em casa do general Carmona, então presidente da República e à mesa reinava um silêncio profundo. Um dos netos do general, ainda criança, voltando-se para Salazar quis saber:

- Senhor presidente, o que é o governo?

Não tendo recebido resposta, na sua inocência fez mais uma pergunta:: - E o que é a ditadura?

Salazar retorquiu irritado: - O menino faça como o avozinho, coma e cale-se.

Na verdade comiam os dignitários, os grandes industriais e os banqueiros. A Igreja comia em doses duplas, e os padres eram os preciosos colaboradores do aparelho repressivo: os "certificados de moralidade"que passavam, e que muitas vezes vendiam, eram um documento indispensável para a obtenção de um emprego, de um passaporte, do bom andamento de um requerimento. E Deus abençoe a separação da Igreja e do Estado, tão bem assente no papel.

O povo, esse, via com pasmo passarem a caminho da Espanha, onde começara a Guerra Civil, comboios carregados de víveres, em cujos vagões a propaganda oficial tinha pintado em grandes letras brancas: "Sobras de Portugal".

Seria pouca coisa, comparado com o que Franco recebia e Hitler e Mussolini, mas esse pouco era tirado a gente com fome, a um país onde a tuberculose, consequência da miséria, era, e seria ainda durante muitos anos, um mal endémico.

Com as "Sobras" iam também 20.000 homens, dos quais lá ficaram 8.000, quase o dobro dos portugueses mortos na Primeira Guerra Mundial.

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in Portugal - a flor e a foice