A
Ética da Raiva
Bruno Vieira Amaral
“Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a
Jerusalém. E encontrou no templo os vendedores de bois, ovelhas e pombas, e os
cambistas nos seus postos. Fazendo um chicote de cordas, expulsou-os a todos do
templo assim como as ovelhas e os bois; espalhou as moedas dos cambistas pelo
chão e derrubou-lhes as mesas; e aos que vendiam pombas, disse-lhes: «Tirai
isso daqui. Não façais da casa do meu Pai uma casa de negócio.»” Haverá quem,
do Jesus Cristo retratado pelos evangelistas, prefira o orador cativante do
Sermão da Montanha, o semi-deus capaz de trazer os mortos de volta à vida ou de
transformar a água em vinho ou o homem que enfrenta com serenidade sobre-humana
os seus algozes e recomenda a Pedro que embainhe a espada pois aquele que tomar
a espada, na espada morrerá. A mim, não me fascina menos o menino de doze anos
a argumentar com os sábios no templo, o defensor de prostitutas e desvalidos e
até o Jesus que, em criança, segundo um evangelho apócrifo, fazia pombas de
barro que, ao bater das suas palmas, ganhavam vida e voavam. Porém, nenhum
Jesus me parece tão real e tão humano como o da passagem que comecei por ler. Aquele
Jesus, capaz de indignação e fúria, é um homem sujeito às paixões e aos humores
humanos.
Aos que, aqui presentes, já se perguntam se estarão no
lugar certo, se não terei trocado o panegírico pela homilia e que terá Nosso
Senhor Jesus Cristo que ver com o cidadão que viemos aqui homenagear, recomendo
a leitura da última crónica incluída no livro Mazagran. Intitulada “Para Deus”, termina assim: “O meu medo é
notar que com os anos me vou tornando razoável em excesso, quase doentiamente
tolerante. É disso que quero que me guardeis, Senhor. Dai-me raivas. Mantende
viva em mim a capacidade de me enfurecer. Deixai que continue a chamar às
coisas pelo seu nome, a criticar sem medo, a rir de mim próprio, e livrai-me
até ao último momento das aceitações que crescem com a idade.” Ao contrário da
oração que Jesus ensinou aos homens e que os cristãos devotos têm repetido nos
últimos dois mil anos, Rentes de Carvalho não pede a Deus o pão nosso de cada
dia, o perdão das dívidas, nem que nos livrai do mal. Pede a Deus que lhe dê
raivas. Pede a Deus que mantenha viva a capacidade de se enfurecer. Pressinto
que o Jesus da preferência do escritor, se é que tem algum, seja o que fez um
chicote de cordas e, furioso, expulsou os vendilhões do templo.
É verdade que desde que conheço Rentes de Carvalho, faz
agora sete anos, nunca o vi virar do avesso nenhum templo, nem sequer uma
biblioteca, templo dos homens de letras, embora já tenha sido testemunha de
algumas fúrias logo devidamente aplacadas com uma posta mirandesa ou uns
deliciosos camarões al ajillo
saboreados na cervejaria Ribadouro, templo da sua breve juventude lisboeta. Indignações
e perplexidades, testemunhei várias: com companheiros de ofício que não
entende, pasmado perante leitores que o não entendem, envergonhado perante
jornalistas que o não leram e perplexo perante mim que, graças aos caprichos da
fortuna, o conduzi várias vezes entre Lisboa e Estevais, viagens onde, por mais
de uma ocasião, terei dado mostras de inapelável ignorância. No final, são e
salvo na aldeia dos seus antepassados, o bom humor recuperado, lá nos
despedíamos com afecto, o que me recordava uma das máximas da sabedoria popular
a que nunca deixei de dar crédito: mau feitio, bom carácter.
O mau feitio tê-lo-á herdado do pai, homem de repentes que,
no fim do jantar, atirava punhadas e rosnava ameaças, e da avó intempestiva
que, numa daquelas horas que dizem do diabo e são bem dos homens, pisou aos
gritos o corpo da filha. Porém, talvez o mau génio possa também ser um dom cuja
renovação se pede a Deus em crónica literária. “Torna-me sábio”, pedia o
salmista. “Dai-me raivas”, pede o escritor. A raiva que pede é de natureza
diferente da cólera que nasce da frustração ou da fúria que emerge, sem hora e
sem sentido, das mais negras profundezas da alma. A raiva que pede é o cordão
tenso e vital que o liga ao mundo, que o mantém vivo. O contrário de estar vivo
não é estar morto. É viver sem raivas.
Raiva foi o combustível do livro que o celebrizou na
Holanda, o país que o acolheu. Com os
Holandeses não é uma agradável crónica de costumes, o elogio de um povo
perfeito e de uma sociedade idílica, o agradecimento curvado de um imigrante escrito
com a humildade cabisbaixa de que sofre o português, sobretudo quando fora do
rectângulo do seu conforto e da sua miséria. O país ali desenhado é a antítese
da aguarela pastoril pintada por Ramalho Ortigão, que não quis ver além da
superfície de moinhos e tulipas. Rentes de Carvalho atreveu-se a olhar para os
holandeses como seus iguais para, assim, de cabeça levantada e olhos nos olhos,
escandalizar com a lista de defeitos - desde os hábitos inofensivos à avareza,
a um certo desinteresse pelos prazeres e, ao contrário da mentalidade que
“tanto gosta de apregoar igualdades e fraternidades”, à indiferença pela sorte
dos outros – sem deixar de apontar as virtudes. O que a uns terá parecido
arrogância, injustificada para mais num imigrante vindo de um país pobre do Sul,
naquela altura amordaçado por uma ditadura de décadas, era apenas a rejeição da
humildade doentia, da subserviência atávica e dos complexos de inferioridade
incapacitantes que nunca foram nem poderão ser os materiais com que se constrói
uma relação digna entre seres humanos.
Se o livro tem na raiva o combustível, nunca se transforma
numa peça de ódio, num acto de ressentimento. Como escreveu o autor, “não é
queixume ou libelo acusatório, antes uma tentativa de compreensão.” O Outro –
essa ficção mansa que serve para apaziguar tantas consciências – é aqui, como
em toda a obra de Rentes de Carvalho, alguém com quem se convive e contra quem
se combate. Rentes de Carvalho não lhe vira a cara, mas também não lhe oferece
a condescendência das “aceitações que crescem com a idade.” Investe contra ele,
ataca-o e, dessa forma, honra-o porque se honra mais o outro no confronto
aberto do que na indulgência que, furtivamente, insulta, amesquinha, ridiculariza.
A lenga-lenga benemérita do Outro tornou-se um depósito de
boas intenções da literatura: escritores que escrevem para alcançar o outro e
para que os leitores aceitem o outro acabam por criar um caldo pastoso e morno de
tolerância que se compraz numa abstracção do outro, sempre fascinante, enquanto
se esforça por não ver o outro concreto, tantas vezes repulsivo. Esse outro é
uma criação aberrante, todo feito de qualidades artificiais, sem defeitos e sem
vida. Para Rentes de Carvalho, a tolerância implícita na criação dessa ficção
de alteridade é uma forma de indiferença, uma expressão de superioridade
cultural transformada em virtude. A célebre tolerância holandesa é, na verdade,
um sentimento misto de superioridade e de indiferença, de uma superioridade que
se funda precisamente na indiferença. Quando pede que Deus lhe dê raivas, o que
Rentes de Carvalho pede é não ser contaminado pela tolerância que reduz o outro
a uma ficção da nossa imaginação, a um títere na nossa farsa humanitária. A
raiva suplicada não é cegueira, é, ao invés, o discernimento de se escrever,
como diz o autor, ao nível da pele, do sensível. A raiva é essa capacidade de
sentir um incómodo físico pela injustiça, pela hipocrisia, pela condescendência
alheia. Não é a raiva do impropério cobarde ou a raiva inócua de que falava
Miguel Torga quando se referia aos portugueses como uma “comunidade pacífica de
revoltados.” Pressente-se na escrita de Rentes de Carvalho que ele sabe que o
primeiro passo para nos reconciliarmos com o mundo e com os outros é
declarar-lhes guerra.
A prova de que esta raiva não é apenas uma variante
literária da popular resmunguice, de que é séria e produtiva, de que se
inscreve sobre um fundo ético, é a possibilidade de a virarmos contra nós e os
nossos. E a raiva de Rentes de Carvalho nunca é tão justa, tão acutilante, tão
necessária, como quando a vira contra os seus. Diga-se em louvor do homenageado
que nos seus livros não tem feito outra coisa, quer nas obras de ficção, quer
nos diários, crónicas e reportagens, como Portugal,
a Flor e a Foice. Nesse livro escrito no pico da febre revolucionária, na
época em que todos ostentavam cravos e se declaravam, no mínimo, socialistas,
em que os defensores do Antigo Regime desapareceram como que por magia e até os
jovens monárquicos se afirmavam revolucionários, já Rentes de Carvalho expunha as
falhas da nossa democracia que hoje todos reconhecemos. Mas hoje é fácil.
Naquela época, havia um preço pessoal a pagar por quem se atrevia a desafiar
com a voz do pessimismo os trinados optimistas dos amanhãs que cantam, para
quem ousava destoar do coro esmagador, unânime e burro das grândolas. Apesar
disso, honra lhe seja feita, Rentes de Carvalho nunca recuou.
Há uns meses, um leitor muito preocupado com as declarações
polémicas de Rentes de Carvalho sobre as eleições holandesas e sabendo que eu o
defendera, perguntou-me, já em desespero de causa, se eu não achava que teria
sido melhor ele não dizer nada para, ao menos, não perder leitores. Pobre
homem, não saberá ele que, quando alguns se prostram e rebolam para os
conquistar, perder leitores é coroa de glória? Durante décadas, Rentes de
Carvalho viveu como um desconhecido para os seus compatriotas. Quando, nos últimos
anos e para benefício de todos nós, isso mudou, nunca se viu nele o revanchismo
daqueles a quem bálsamo do reconhecimento tardio não alivia as chagas dos agravos
pretéritos, embora certamente não lhe tenha escapado, porque poucas são as
coisas importantes que lhe escapam, a ironia de ver uma obra como O Rebate, tão castigada aquando da
primeira publicação, ser considerada agora uma obra-prima. Mas a gratidão não
pode ser uma mordaça perfumada. O apreço dos leitores não pode ser o punhal
traiçoeiro que docemente se crava nas suas costas. Se deve servir para alguma
coisa é para reforçar a liberdade do escritor e não para o agrilhoar.
“Não devo nada aos leitores”, declarou, e esse nada sabemos
bem o que significa. O escritor não deve obediência aos seus leitores e, graças
aos deuses e à segurança social holandesa, Rentes de Carvalho não depende da
bondade alheia nem da generosidade dos leitores para viver os seus últimos anos
em total liberdade de espírito, com as raivas que Deus tenha a misericórdia de
lhe conceder. Seria de uma trágica ironia que um homem que durante décadas viveu
à margem dos seus contemporâneos visse agora a sua liberdade cerceada pelo
apreço destes, pelas exigências dos que súbita e tardiamente, como é o meu
caso, se tornaram devotos dos seus livros. Ao autor a liberdade de escrever o
que quer, aos leitores a liberdade de lerem o que bem lhes aprouver e que Deus dê
raivas a todos para que possam enfrentar o mundo.
O mundo. Escreve Rentes de Carvalho que Deus criou o mundo
numa tarde quente de Maio de 1930, aqui bem perto de onde nos encontramos. Nesse
mundo maravilhoso visto do Monte dos Judeus por uma criança de binóculo, o
mundo do palácio do bispo e da sé, dos arvoredos do Palácio de Cristal e dos
telhados dos armazéns de vinho, dos cargueiros gigantescos na barra e dos
homens da estiva à cabeça, neste mundo colorido e confuso, terno e trágico
Rentes de Carvalho provou pela primeira vez o sabor amargo da humilhação e
aprendeu a lição, nem sempre colhida a tempo, de que o mundo é o lugar dos que
nos amam, mas também daqueles que nos ferem, dos que nos aplaudem, mas também
daqueles que nos humilham, e que muitas vezes são os mesmos. “A humilhação.
Deve ser um dos grandes motores da História. Deve ser o que mais se lembra para
a história de cada um. Os pais que se tiveram e os castigos que nos infligiram,
as simples pugnas com os camaradas e em que se ficou por baixo.” Isto escreveu um
escritor que pouco agrada ao nosso homenageado. Mas é verdade o que escreveu. A
humilhação é um dos grandes motores da História, da história de cada um. Não era
a humilhação de, estrangeiro e pobre, ouvir os insultos dos holandeses que o
levava a chegar a casa à noite e sentar-se a descrevê-los, “anotando os gestos,
as palavras, os nomes”? Terá percebido que o animava o mesmo espírito de
antagonismo que dele se apoderou no momento da primeira humilhação?
Naquele tempo em que o mundo tinha nascido havia pouco, o
pequeno José Avelino entretinha os camaradas com histórias mirabolantes, em que
aos guiões dos filmes vistos no cinema acrescentava as voltas da sua
imaginação, com viagens de submarino até terras de África, aventuras no
Amazonas, episódios de gelar o sangue no castelo do Drácula. Até que um dia,
após conluio infantil, os outros miúdos, com a maldade que, na infância, se
desculpa com a inocência e que, por isso, nunca mais é tão pura, desfizeram a
fantasia do grande contador de histórias e atiraram-lhe à cara a palavra mais
dura, dividindo correcta e acintosamente as sílabas, como numa cantilena cruel:
al-dra-bão. A humilhação sofrida, por ele, que já intuíra que contar histórias
não é o mesmo que mentir, levou-o a declarar uma guerra ao mundo que, de certo
modo, ainda hoje continua a travar. Assim, graças ao insulto dos seus
involuntários criadores, nasceu um escritor. Se temos de agradecer ao avô José
Maria o ter-lhe ensinado as primeiras letras, àqueles companheiros de infância,
cujos nomes a história apagou, temos de lhes agradecer um carácter: o de um
homem que, já entrado em anos, ainda pede a Deus que lhe dê as raivas para
poder combater o mundo e, através da escrita, chegar ao lugar onde se ajustam
as contas e se vingam as humilhações.
Vila Nova de Gaia, 18 de Maio de 2018
Bruno Vieira Amaral