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Patrão da Barca: J. Rentes de Carvalho
“Tudo vale a pena. Se a alma não é pequena”. Longe de mim pôr-me a filosofar sobre a justeza da afirmação de Fernando Pessoa, pois além da escassez de ciência, sou pouco ou nada inclinado a explorar questões esotéricas.
Dá-se também que, com os vagares e o peso dos muitos anos que carrego, no meu dia-a-dia o tempo não sobra. De modo costumeiro resume-se, muito moderadamente, a meia hora de passeio, ajudar no ramerrão doméstico, manter o vício da leitura, e seguir na televisão o que me querem impingir ser, pura e dura, a realidade do que acontece no mundo.
Porém, meia verdade, mentira inteira, talvez sim talvez não, manipulação desavergonhada, ou só metade dela, torna-se cansativo assistir ao espectáculo e, em simultâneo, não conseguir evitar um constante sentimento de desconfiança, por vezes nojo, tão descarada é a falsidade, ou a arrogância de apresentar como testemunho verídico um transparente “embrulho”.
É provável que o desejo de impor uma “verdade” se tenha logo manifestado entre os da segunda geração que Eva pariu. Todavia, até recentemente, os incontáveis milhões que desde esse momento vieram ao mundo com razoável sanidade mental, só em desvairadas fantasias poderiam concluir que a realidade não é a que é, mas a que alguém, ou alguns com suficiente poder, decidirem que seja. Artificial, super inteligente, e à vontade do freguês.
Só que o dito não é para aqui chamado, esse “à vontade do freguês” é modo de dizer, pois já não há freguês no sentido corrente. Nem sequer loja, mas estádios plenos de multidão entusiasmada, gritando e saltando ao mando do deejay, esquecida que é rebanho, e terminada a música, as luzes, o foguetório, a espera o chicote e a mordaça.
À cautela, de maneira a que não haja engano, ou quem isto lê me suponha fraco da cabeça e falho de entendimento: ao afirmar que sempre fui andarilho uso a palavra no sentido antigo, o do indivíduo que não somente anda muito, mas o faz por gosto.
Pode ser genético, dado que os das gerações que me antecederam, se tinham burros ou mulas poupavam antes a força dos animais do que a própria, já que esses eram muitas vezes o seu único capital.
Herdado ou não sempre gostei de andar, e guardo um bocadinho de vaidade pela proeza de, a festejar os oitenta, ter feito a pé a distância que separa o Pocinho da minha aldeia, Estevais de Mogadouro – não os quilómetros lisos da estrada, uns cinquenta, sim bastante mais, com as voltas e revoltas a subir e descer montes, uma ou outra vez errando o caminho.
Recordei a “valentia” desse feito dias atrás, quando o acaso me levou a ler um texto em que era questão das vantagens e benefícos da marcha a pé. Não só físicos mas também mentais, espirituais, e até de vários modos higiénicos. Eram citados os inevitáveis especialistas que, cada um à sua muito especializada maneira, detalhavam a científica e quase obrigatória necessidade de caminhar. Porque não somente se fortalecem os músculos e o esqueleto, mas o organismo inteiro leva como que uma muito benéfica revisão.
Asseguravam também que uma caminhada, definitivamente resulta num estado de espírito que diminui a tensão do cérebro, e o simples desviar os olhos para as florzinhas numa valeta, o voo de um pássaro, a imponência de uma árvore, basta para quebrar o círculo vicioso das preocupações e medos que em tantas horas nos afligem.
Talvez assim seja, mas comigo nunca resultou.
Então não é o país de férias dos super-ricos, das várias realezas, e onde até Elon Musk tem casa?
Desengana-te Aqui
Tempos houve em que a barricada tinha dois lados: num juntavam-se os que queriam atacar, no lado oposto os defensores.
Essa simplicidade há muito teve fim, mas bem pode ter sido ilusão minha, pois com isto dos anos é arriscado fazer afirmações definitivas. Além de que tudo muda, e de tão estranha maneira que, de verdade, talvez já nem se possa usar o termo no sentido antigo. Isso devido a que, desde a luta por direitos e à escaramuça nas ruas, até ao mais que excessivo multiplicar de ideais, partidos, certezas, exigências e modas, hoje em dia tornou-se difícil, de facto quase impossível, tomar uma atitude e erguer uma barricada. O ingénuo que ouse tentá-lo, logo decobrirá que, do lado oposto ao do seu desagrado ou exigência, não vai encontrar um oponente, nem meia dúzia deles, mas mais do que quantas formigas saem a correr dos buraquinhos subterrâneos, assim que lhes cheira a açúcar ou rato morto.
Ficasse o transtorno por aí, poder-se-ia apelar à calma e restos de bom-senso, mas tanto esse como aquela vão indo a caminho das raridades, de modo que sendo prioritária a paz de espírito e desejável o descanso do corpo, resta o clássico encolher de ombros.
Parece uma atitude cobarde, mas está longe de sê-lo. Sabem-no em demasia os que já se viram em palpos de aranha ao descobrir que não há barricadas que separem, e resultam sempre mal as imitações de Dom Quixote.