segunda-feira, agosto 28

Aeroportos, estações e urgências

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É um fascínio que nasceu no começo da tarde de um domingo dos meus longínquos dezanove anos, em que, jovem miliciano, aborrecido e triste de me ver obrigado a uma existência que me desagradava, me deixei ficar a uma janela do Quartel da Graça, olhando lá do alto para a cidade, ciente de que de imediato trocaria a minha vida por qualquer uma das que enchiam as ruas, pois de certeza haveria nela mais esperança e razões de optimismo do que na que eu levava.
Foi então que, achando-me sombrio, o Barros, alfacinha de gema, vizinho de camarata e depois amigo para a vida, sugeriu que em vez de estar ali a assombrar-me, esquecesse a tropa e fosse com ele. Apanhávamos o autocarro,  íamos à Portela ver os aviões, ver quem lá estava, e beber uma cerveja.
Surpreendeu-me o edifício, encimado por uma pequena torre de controle e, dada uma vista de olhos à pista e ao único avião que ia levantar voo e me pareceu gigantesco, sentámo-nos na varanda do bar, onde entre sujeitos engravatados, senhoras de chapéu e meninas muito compostas, estariam talvez cem  pessoas, atendidas por um pessoal exemplar na sua postura e deferência.
Admirando aquilo tudo, e com a sensação de ter descoberto um mundo, foi-se-me a melancolia.
Não é só por essa recordação antiga, mas de facto gosto de aeroportos, e quanto maiores melhor. De Gaulle, Atlanta, Dubai, Frankfurt, Schiphol, Heathrow, neles não me interessam os aviões, sim a massa de gente, e nessa massa o grupo que se movimenta com os ademanes de quem não está ali somente para viajar, mas parecendo tomar parte numa misteriosa telenovela. Ele são os óculos escuros, o traje, os acessórios, o ar entediado, o modo desprendido de empurrar o carrinho, de rir para o telemóvel. Gosto mesmo. Tivesse eu tempo, ocasião, e não corresse o risco das autoridades me tomarem por importuno ou vadio, passaria o tempo nos aeroportos, certo de que me viria daí mais proveito do que andar pelas ruas em busca de assunto para as minhas histórias. Tanto mais que esse povo é muito diferente da multidão bisonha que se arrasta pelas estações à espera do comboio.
Agora devo talvez desculpar-me para confessar que, além dos aeroportos, também sinto atracção pelas urgências dos hospitais. Mas lá não é a pose, são os rostos que me fascinam. Defronte daquelas expressões de medo e sofrimento, concluo as mais vezes – erradamente, bem sei – que a humanidade é boa e pronta a arrepender-se. Pena que o arrependimento seja sempre de pouca dura.
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Publicado na DOMINGO CM

segunda-feira, agosto 21

As férias não são remédio


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 O avô aristocrático das nossas democráticas – a tentação é grande de dizer plebeias – férias, o Grand Tour, nasceu por volta de 1550, quando os lordes começaram a mandar os filhos de visita à França e à Itália, na esperança de que voltassem com instrução e boas maneiras.
Nos séculos a seguir, fugindo ao nevoeiro de Londres, os lordes optaram pelo Inverno na Riviera, e atrás deles vieram os colossalmente abastados príncipes russos. Em Fala, memória conta Nabokov que no início do século vinte os seus pais, que nem eram dos mais ricos, viajavam para a Riviera em dois comboios particulares. Num ia o pessoal com a bagagem, mantimentos, cavalos e carruagens. O outro, oferecendo à família o conforto de um hotel de luxo, saía de São Petersburgo dias depois,
Mas o Grand Tour como que saltou dos salões para a rua quando, a partir da década de 30, os sindicatos franceses exigiram o mês de férias pagas. O privilégio foi alastrando,(*) e hoje, mais que um direito, as férias como que se tornaram um fim em si, uma razão de vida.
Ironizar seria fácil, mas injusto, longe de mim contradizer a necessidade que tem de descanso e diversão aquele que se esfalfa a trabalhar, ou a quem as tribulações põem de rastos. Dá-se porém o caso de ser deturpada a minha visão do fenómeno, pois vivo num país onde as férias se tornaram uma espécie de panaceia que, fadigas do corpo, dores da alma, tudo cura ou alivia. Morte de ente querido, desastre, mal-estar, aborrecimentos da vida, quando enfrenta isso o holandês informa logo: vou-me de férias. E vai. Com uma média anual de quatro períodos de férias, nenhum outro europeu lhe leva a palma. A rapaziada que  termina o secundário tira logo um ano para ir correr mundo. No dia do seu divórcio a vizinha veio anunciar que se despedia: tinha as malas feitas e para superar o percalço abalava a gozar um mês de férias em Bali.
Sou eu invejoso? Espírito contra? De modo algum. A razão por certo está do lado dos milhões de turistas que o ano inteiro vão e vêm com o nervosismo de formigas. O que quero dizer é que me custa acreditar no valor terapêutico ou restaurador das férias. Umas semanas de repouso poderão, talvez, muito talvez, aliviar um cansaço, mas viagem nenhuma, exotismo nenhum, liberta dos pesos da alma e do coração.
As férias são bom negócio, mas nem sempre o bom remédio.
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(*) Alastrando devagarinho, note-se. No Canadá, nos anos 50, dez anos de emprego davam direito a três semanas de férias, a gozar quando o patrão decidisse.
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Publicado na DOMINGO CM.