Sábado e domingo estou com barraca na Feira do Livro, no Porto. Novidades aqui só lá para quarta ou quinta-feira
quinta-feira, maio 31
quarta-feira, maio 30
"O Vampiro de Curitiba" no JL
Foi nos fins de 1969 que August Willemsen,
meu colega no Departamento Português da Universidade Amsterdam, me emprestou um
pequeno livro de contos de um autor brasileiro de que nunca ouvira falar.
Estranhei o nome, estranhei a modéstia do
volume, torci o nariz à imagem adocicada e retrógrada da capa, mas já nesse
tempo admirava a inteligência, a erudição e o gosto literário do colega, que
viria a tornar-se um brilhante, se não genial, tradutor da literatura
portuguesa e brasileira, e levei comigo Cemitério
de Elefantes (1964).
Em poucas horas dessa mesma noite o li. Maravilhosa
descoberta. Tudo o que no entusiasmo de Willemsen me parecera exagerado, confirmava-o
o pequeno livro: talento, originalidade, personagens inesquecíveis, a
inesperada abordagem do vocabulário e da narrativa, o modo sintético, a forma
de surpreender que só nos grandes contistas se encontra.
Ao longo de quase meio século tornei-me uma
espécie de missionário da obra de Dalton Trevisan, mas deve ser fraca a minha
arte de convencer, pois mau grado o ter distribuído por amigos muitos e muitos
dos seus livros, deles apenas recebi encolher de ombros e opiniões moles.
Facto é que Trevisan nunca foi homem de
modas. Para desespero dos editores, neste tempo de volumes de setecentas páginas
de muita parra, ele conta as suas histórias com extrema secura e economia, cada
frase como que a explodir de tensão, significado e mau prenúncio. Não são histórias
para divertir, antes convidam ao recolhimento, à introspecção, e por vezes a um
saudável susto.
Tendo, como antes disse, sido incapaz de
propagar o talento de Dalton Trevisan, e nunca imaginando que lhe seria
atribuído o Prémio Camões, escrevi o ano passado um micro-conto e dele tirei o
título para um livro, Os Lindos Braços da
Júlia da Farmácia, informando quem me ouvia ou entrevistava, que era a
minha singela homenagem ao grande, e então quase desconhecido escritor brasileiro.
Um conselho deixo: não percam A Guerra Conjugal (1969); Mistérios de Curitiba (1968); O Rei da Terra (1972); O Pássaro de Cinco Asas (1974); A Polaquinha (1985); O Vampiro de Curitiba (1965); Novelas Nada Exemplares (1959), e o mais
que dele puderem encontrar.
terça-feira, maio 29
Cosme e Damião
Começo por aqui, mas a razão vem adiante. Supõe-se
que Cosme e Damião nasceram na Arábia, no século IV. Gémeos, inseparáveis,
estudaram Medicina e foram exercê-la na Síria, onde ganharam fama de santidade
por não levarem dinheiro aos pacientes, assegurando que os curavam em nome e
com o poder de Jesus Cristo. Apreciando pouco a concorrência,os Romanos degolaram-nos.
Ouvi falar deles pela primeira vez no Rio
de Janeiro, num tempo em que as patrulhas da Polícia eram feitas por uma dupla
de agentes, que os cariocas, com o jeito alegremente zombeteiro e inventivo que
se lhes conhece, tinham crismado Cosme e
Damião.
Ora conheço eu também dois sujeitos que, de
inseparáveis que parecem, embora nada santos, há muitos os não refiro
individualmente e com o nome de baptismo, mas pela alcunha que lhes dei.
Funcionam em duplo, avultam em duplo, os
seus sorrisos parecem réplicas, têm idênticos interesses, e como sozinhos
seriam pouco ou nada, juntam as forças, quase parecem o que desejam parecer. Vivem
em sonho um conto de importância.
Cosme
e Damião se compadeçam e lhes deem cura para a toleima.
segunda-feira, maio 28
Presente e passado
e aqui uns complementos para São Tomé:
Tradução:
“Por ordem de Sua Majestade a Rainha e de
Sua Alteza Real o Príncipe Claus dos Países Baixos, tem o Grão-Mestre (da
Corte) a honra de convidar o senhor e a senhora Rentes de Carvalho-Waalwijk
para um jantar em honra de Sua Excelência o Presidente de Portugal e a senhora
Sampaio, terça-feira 28 de Outubro 1997 às 20.00 horas, no Palácio Real
Noordeinde em Haia.
Smoking/Vestido de noite”
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domingo, maio 27
A pílula
É arte difícil a do convívio com o
semelhante, há oito décadas nela continuo aprendiz. Raro passa dia que não me
engane, que não tropece, constantemente tenho de rever o dito, acertar o passo,
sorrir sem vontade mas porque de mim o esperam, dar a resposta que a pergunta
insinua.
Ontem, numa modesta feira, vem uma
desconhecida para que lhe autografe um livro. Faço como pede, sorrio ao seu sorriso, rabisco o nome, a data, julgo terminada a sessão, mas assim não é: a senhora quer-me pôr ao
corrente do seu amor pela leitura, do muito que lê, em que lugares lê, a que
horas lê, quantos tem na mesinha de cabeceira, os que recomenda, e já na
escola era assim, assim há-de morrer.
Paciento, sorrio, digo-me que este ofício
tem ossos duros, oiço uma voz íntima a segredar: "aguenta, Zé, mais um
bocadinho". Aguento. Mantenho o sorriso. Aceno, digo que sim, que de
facto, pois é, realmente.
Estamos naquilo há longos minutos quando
ela nota que há pessoas à espera, e chega a altura da cena final, a apoteose:
- Já li um livro seu, mas sabe de quem eu
gosto mesmo muito? Quem leio, releio, e nunca me cansa?
Diz quem é o eleito. Não dá conta de quanta simpleza
põe a nu, nem do que a comparação implícita tem de insultuoso.
Engulo a pílula, sorrio à senhora que
segue.
sábado, maio 26
Fingimento
Sonhos e dores, contrariedades, alegrias,
horas mortas, desesperos, o que foi, o que poderia ter sido, decepções e
desejos, memórias, tempo esbanjado. De muito falamos, mas para nossa salvação e
paz muito escondemos.
Daí que o geral das conversas tenha mais de
mau teatro e diálogo de Rilhafoles, do que intercâmbio de adultos. É perda de
tempo, nevoeiro, são cortinas de fumo mal soprado, imitações toscas da dança dos paulitos.
Penso
isto e digo comigo que bem é que assim seja. Deus nos livre de ouvir verdades, para guerras e discórdias já o
fingimento sobra.
sexta-feira, maio 25
Jantares NL
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É anúncio de um dos grandes bancos
holandeses, ilustra o jantar em casa de gente abastada, uso-o eu para dizer aos
jovens portugueses que agora para lá emigram, que não se assustem. Nas famílias
com menos meios é bem mais espartano: um esparregado de couves e batatas
cozidas, uma costeleta ou salsicha, garrafa de leite. Almoço à portuguesa? Nem
pensar.
São
aqui sete à mesa, o vinho vai dar para todos e sobra. Os talheres anunciam que
talvez venha um assado, em fatias de 150 g já se arrota.
Isto é maldade minha, bem sei, mas vingança
contra os parcos jantares que ao longo de mais de meio século tenho comido na
Holanda em casa alheia. Também os tenho tido bons, muito bons, superiormente
refinados nas iguarias, mas esses fogem ao corrente e por isso não contam.
Ocorre-me
a propósito o espanto de um deputado do Partido Socialista holandês que, conhecendo apenas a gastronomia pátria, quando
numa entrevista o interrogaram acerca das suas visitas às embaixadas
estrangeiras, desabafou eufórico: - Comem-se lá esplêndidas refeições
quentes!
quinta-feira, maio 24
Hora esquerda
Ontem à noite, curiosidade, dever de
ofício, desejo de estar ao corrente do que vai no mundo, folheei e, um após
o outro, li umas quantas páginas do começo dos romances de três jovens colegas
há pouco no mercado.
Passaram o exame, mas de nenhum saltou aquela
fagulha que provoca a curiosidade e leva – Não! Obriga! – a continuar a leitura.
Aqui e ali veem-se os andaimes, adivinham-se as pressas, descobrem-se os
jeitos. Tudo isso, porém, é de remediar. Mas coisa essencial em todos faltava:
uma primeira página retumbante. E a primeira página é essencial, tem de ser
como música de órgão, tiro de dinamite ou semelhante.
Pensando nisso fui-me a buscar O Demonio do Ouro – a edição (1927) é a que li em rapaz e tem a, para mim saudosa, ortografia do tempo –
recordado que estava de como Camillo Castello Branco também é mestre nas
primeiras páginas.
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quarta-feira, maio 23
Manhã no Pocinho
Informa a CP na Internet que o primeiro
comboio do Pocinho para o Porto sai às 07.05.
Esta manhã, às 07.05, na estação não há
vivalma, nem aparência de funcionário. Em ponto morto, o diesel do comboiozinho
produz um barulho de inferno. Espalhadas pelas três carruagens, meia dúzia de pessoas, soturnas
e cabisbaixas, parecem estar ali de figurantes numa telenovela de desgraça.
Às 07.15 tudo na mesma. Subo a um banco
para poder ler o horário, colocado a dois metros e pico acima do chão, e impresso
em letra tipo 6. Lá está: 07.05.
Saio da estação e dou com dois cavalheiros
que aproveitam o solzinho da manhã. Não usam
uniforme, mas pergunto se são do comboio. Respondem enfastiados que são
do comboio e a partida agora é às 07.25.
- No horário…
- Agora é às 07.25.
Mais não acrescentam, e pelo trejeito
demonstram que acaba ali a conversa.
Minutos depois ambos os cavalheiros entram no
comboio, o chefe da estação aparece com a sua bandeira, apita, o TGV da linha
do Douro arranca.
Inquiro do chefe e ele, cortês, explica que
"a partida agora é às 07.25, em relação com o conflito laboral dos
senhores maquinistas."
E eu vou-me
dali, resmungando que é essa uma das muitas aberrações que a igualdade
democrática nos trouxe: a demasia de
senhores.
terça-feira, maio 22
Dalton Trevisan
Tarde e más horas lhe chega o reconhecimento oficial com o Prémio Camões. O meu tem-no desde 1969, como assinalei aqui .Vá lê-lo e faça a descoberta de como Dalton Trevisan é um caso muito à parte na literatura brasileira e um extraordinário observador dos corpos e das almas.
segunda-feira, maio 21
O senhor da bomba
Quem sai de Mogadouro pelo IC5 em direcção
a Alfândega da Fé, encontra, desde há pouco, uma nova bomba de gasolina. Porque
fica no caminho tornei-me cliente e, dias atrás, resolvi experimentar o túnel
de lavagem.
Sem me dar tempo a ler as instruções, já o
simpático proprietário tinha posto a maquinaria em funcionamento, e entretanto
fomos falando da crise, do facto de que para agora entrar na vila é precisa uma
grande volta. Falámos também do tempo, dos dois cães que por ali andam, das casas
de alterne na vizinhança, da seca e da má qualidade da couve galega este ano.
Preparava-me para pagar os € 6.50 da
lavagem quando o senhor, aliando o modo simpático à ciência de bom marketeer, disse que era oferta, pois eu
demonstrava ser cliente fiel e ele gostaria que assim me mantivesse.
Agradecido e sorridente, fui-me dali também
satisfeito, porque, embora pessimista inato sobre as coisas da nação, pronto me
alegro com pequeninos gestos ou provas de melhoria. Se bem que, a respeito da
lavagem de carros e dores do patriotismo, outras recordações guarde.
Assim no verão de 1964, depois de muitos
anos de ausência, estou em Moncorvo, entro uma tarde na garagem do senhor Moreira,
que Deus tenha, e pergunto aos funcionários se me podem lavar o carro.
Claro que sim. Volte dali a uma hora e a
coisa está feita.
Hora e meia depois o carro está lavado, mas eles continuam às
voltas no serviço, ora a esfregar com desperdícios, ora com panos, e
finalmente, para minha surpresa, com jornais, porque, como me explicaram,
"a tinta das letras dá um brilho muito especial à pintura dos carros.'
Senti vergonha quando quis pagar. O preço
era uma ninharia, coisa ridícula, um vergonhoso absurdo para recompensar o
trabalho de dois homens e o tempo despendido. Conscientemente corri o
risco de que me julgassem emigrante
parolo ou "brasileiro" endinheirado, mas dupliquei a gorjeta e fui-me
dali melancólico.
Um dia de primavera em 1975 chego de novo à
garagem do senhor Moreira. São outros os funcionários, diferente o modo,
sobranceiro e quase insultuoso aquele "Que quer?" do sujeito que me
olha de lado, o cigarro a pender do beiço.
- Queria lavar o carro.
Quando pergunto se demora, acena um não,
resmunga que espere, não vai demorar nada, e volta-me as costas.
Acende outro cigarro, liga a mangueira, durante
uns minutos chafurda água sobre o carro com o ar e a agitação de quem lhe bate.
- Está pronto São vinte paus.
- Mas então o carro fica assim? Não o seca?
- Já não secamos carros. São vinte paus.
Se ainda é dos vivos, este mecânico
revolucionário, inchado de supremacia proletária, deve andar agora pelos
sessenta, e de certeza lamenta que o Sol tenha brilhado tão pouco tempo. Mas
entre ele e o senhor da bomba de Mogadouro é grande a diferença, muita coisa
mudou, quase me dá vontade de dizer que estamos no bom caminho.
domingo, maio 20
Deboche
Faço o que posso para que a prosa saia arranjadinha, esforço-me para que a parra seja menos do que a uva, atento nas rimas, nos ritmos, cuido do vocabulário, tudo isso na esperança de que quem me lê tire daí algum proveito.
Mas que procura a grande maioria que clica para aqui entrar?
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sexta-feira, maio 18
Há infernos
Há infernos. Entre as quatro paredes há
infernos insuspeitos, com ódios, invejas, fúrias que queimam fundo e mais
lentamente que as labaredas de Belzebu. Infernos de fogo lento, diário, com
pausas inesperadas entre o martírio, não para que se sinta alívio, mas para que
na carne e na alma se renove a dor.
É família grande, creio que nove ou dez.
Vêm daqueles ramos fracos da burguesia que, duas ou três gerações, conseguem
manter uma aparência de prosperidade. A estes tramou-os a revolução e a inocência
do ideal. Foram crentes fanáticos, de uma fé sem medida, a de que o sol iria brilhar para todos, mas para eles com
o calor especial reservado aos eleitos. Esperaram. Não se deram conta das
nuvens, nem da competência e ganância da alcateia, quando a crueza da realidade os sacudiu já não
havia bons bocados, só ossos. Desses conseguiram esmolar um dos mais pequenos,
insuficiente para os nove ou dez que nada mais têm que rilhar.
Entre
as quatro paredes vivem no inferno. Quando saem delas esforçam-se por manter a
compostura, mas dá pena aquele teatro. Nos ademanes, na fala, no vestuário, nos
tiques, tudo denuncia a derrota, tudo aponta para um desenlace que, tirando-os
do inferno das aparências, os lançará no
da pobreza envergonhada.
quinta-feira, maio 17
Parabéns
A cortesia manda agradecer, mas como, se foram tantos? E que palavras dizer, para fugir ao lugar-comum?
Fica então aqui, simples, mas sincero, e para todos, o meu muito agradecido.
quarta-feira, maio 16
O Cayenne dourado
Podia ver e esquecer, mas cenas destas
arrasam qualquer coisa dentro de mim, talvez que contando-as faça o exorcismo e
consiga deitá-las para o lixo da memória.
Feira na vila. Pouca animação.
- Isto está cada vez mais murcho – diz o
senhor que atravessa comigo na passadeira.
E nesse momento ambos nos detemos, porque o
condutor do Cayenne, ou não nos viu,
ou é bruto, dá uma guinada para estacionar e só por milagre lhe escapamos.
Salta de lá, pimpão, rebolando os ombros,
repuxando as calças, a cara-metade a reboque, também ela pimpona e aperaltada.
O meu companheiro conhece-os e informa: são
da aldeia X, estão na Alemanha, ela ganha muito bem nas limpezas, e ele é
qualquer coisa numa fábrica.
Digo comigo que, de facto, deve ser
qualquer coisa, coche assim não o tem qualquer nem quem quer.
Vaidoso, como se fosse coisa sua, o senhor
quer que eu pare e aprecie:
- Já viu a colcha?
Seria impossível não reparar na colcha
branca de croché que enfeita e protege o assento traseiro.
- E as almofadas?
Também vi. Grandes, arcos-iris de seda,
numa o Sagrado Coração, a Virgem de Fátima a abençoar na outra. Do retrovisor
pende um rosário de contas grossas, um crucifixo.
Supondo-me entendido, o senhor, de aspecto
pessoa simples, provavelmente lavrador, sugere que num carro daquela cor deve
entrar ouro.
- Que lhe parece?
Digo-lhe que sim, que também me parece, e
despeço-me, tirando respeitosamente o boné à pessoa e a tão santa ingenuidade.
Vejo o par momentos depois, junto da
carrinha do "Rei do Pito", quando já embrulham o frango e as batatas
assadas.
Volto a vê-los na carrinha de bebidas. Ela,
de braços cruzados, mal equilibrada nos tacões e no aperto da minissaia,
aguarda paciente que o senhor seu esposo acabe de beber. Ele acaba, chupa os
lábios consolado, deposita o copo de plástico nos braços cruzados da madame e,
com um gesto altaneiro do queixo, aponta-lhe o caixote do lixo
terça-feira, maio 15
Aniversário
Por volta das seis, lágrimas nos olhos, assim
começou o aniversário dos meus oitenta e dois anos. Mas ninguém se apiede, que
não foram de dor, só frustração e raiva. Das contas que me pus a fazer, tomado pelo
sentimento da força das raízes que me prendem a este chão, e da animosidade, a
inveja, a bruteza que por vezes leio nos olhos e nos modos. Fizessem eles
sentir-me estrangeiro, que para esses guardam o apreço e o sorriso, os
cuidados, a gentileza. Mas não, não me fazem sentir estrangeiro, fazem-me
sentir estranho, forasteiro, galego de antigamente.
Permitem-se a familiaridade e a arrogância alarve
dos pobres de espírito, e eu, com pena, finjo de surdo, mudo
de conversa, falo do tempo. Não é cobardia, ou pundonor magoado, o que impede
atirar-lhes o que me está nos lábios, mas caridade, pena que sinto de
vê-los incapazes de mudar, iguais aos bisavós, aos trisavós, mesquinhos,
sacanas, manhosos, violentos e cobardes, doutorados em hipocrisia.
Corta-se-me o coração quando os sei
aflitos, necessitados, mas é dar-lhes o negro de uma unha e logo arrebitam, sem
piedade cortam a mão amiga, levam também o braço.
Quando
olho o passado, sorrio feliz, recordo uma vida de dores e fracassos, alegrias
intensas, amor, tristezas fundas, vitórias grandes, derrotas em proporção. E já
não serão muitos os anos que restam, mas
partirei em paz comigo mesmo, grato pelo que me coube. Uma dor levo: a
de não ter visto a minha gente mudar e melhorar, partir ciente que a deixarei
com menos razões de esperança do que quando entre ela nasci.
segunda-feira, maio 14
Muito cansa
Quanto mais gente um escritor conhece, mais
difícil se lhe torna criar personagens, pois “amigos e conhecidos” ficam
alerta, “vêem-se” no João e na Maria, regozijam se a figura lhes parece
simpática; aparecem de mau modo a pedir contas quando não lhes agrada, dedo no ar, tratando
o autor por você:
- Olhe que não quero que me ponha na
internet! Não admito!
Como vou eu provar que aquilo não tem a ver
com ele ou com ela? Que não lhes reconheço virtude ou anomalia que os torne matéria-prima
de razoável ficção? Que me aborrecem? Que os acho mesquinhos, tontos,
pobres-diabos?
Este encontrou num texto meu um personagem
com bigode. Usa bigode, ergo,
aquilo é retrato maldoso, vá de atirar com frases em moda, “não admito
atentatos à minha privacidade, exijo respeito”.
Estoutra pintou o cabelo, a personagem pinta o
cabelo, só pode ser escárnio. E não tem dúvida, pois reconheceu-se mesmo no
modo como a Márcia do meu texto sorri.
- Olhe que não tenho texto com Márcias.
- Ai não? Então deve ter sido noutro. De
qualquer maneira não quero que me ponha na internet.
Muito cansa lidar com gente e fazer de
conta que somos todos sãos do espírito
domingo, maio 13
sábado, maio 12
Nunca digas, desta água não beberei
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Ofereceram-o, longe estava eu de pensar que o iria ler com tanto entusiasmo. Bonecos? BD não é do meu interesse, com O Mosquito e o Pim-Pam-Pum
parei aí pelos onze anos. Mas Marjane Satrapi mudou-me as ideias. Li de
fio a pavio e nenhuma das críticas na badana se me afigura exagerada."Uma
memória gráfica brilhante e invulgar" ; "Uma das memórias mais
originais e expressivas do noss tempo; "Um verdadeiro triunfo". Nem mais nem menos.
sexta-feira, maio 11
A pele, a bolsa ou a vida
São sem conta os modos de cada um para se
afirmar no mundo, e o melhor é esquecermos a moral, a bondade, o respeito, os
gostos, a lei e os costumes, caso contrário não há ponta de que se possa dizer
que é a boa para se lhe pegar.
Esta jovem holandesa, Katinka
Simonse, artista plástica, tendo dificuldade em provar a sua presença entre nós
e a originalidade do talento que supõe possuir, encontrou a resposta no gato que tinha em casa:
quebrou-lhe o pescoço, curou a pele, fez com ela uma bolsa e correu à televisão
a contar a história.
Evidentemente
recebeu atenção, e muita, pelos jeitos foram mais de cem mil os e-mails que recebeu, incluindo aí
ameaças de morte, mas também cumprimentos pela ousadia na procura de novos
caminhos para as artes plásticas. Com esse material está a preparar um livro
para, segundo o seu dizer, “desmascarar a hipocria da internet”.Como tem mais animais em casa, ao mundo resta esperar por qual será o próximo pescoço quebrado e a obra de arte que fará com a pele.