É arte difícil a do convívio com o
semelhante, há oito décadas nela continuo aprendiz. Raro passa dia que não me
engane, que não tropece, constantemente tenho de rever o dito, acertar o passo,
sorrir sem vontade mas porque de mim o esperam, dar a resposta que a pergunta
insinua.
Ontem, numa modesta feira, vem uma
desconhecida para que lhe autografe um livro. Faço como pede, sorrio ao seu sorriso, rabisco o nome, a data, julgo terminada a sessão, mas assim não é: a senhora quer-me pôr ao
corrente do seu amor pela leitura, do muito que lê, em que lugares lê, a que
horas lê, quantos tem na mesinha de cabeceira, os que recomenda, e já na
escola era assim, assim há-de morrer.
Paciento, sorrio, digo-me que este ofício
tem ossos duros, oiço uma voz íntima a segredar: "aguenta, Zé, mais um
bocadinho". Aguento. Mantenho o sorriso. Aceno, digo que sim, que de
facto, pois é, realmente.
Estamos naquilo há longos minutos quando
ela nota que há pessoas à espera, e chega a altura da cena final, a apoteose:
- Já li um livro seu, mas sabe de quem eu
gosto mesmo muito? Quem leio, releio, e nunca me cansa?
Diz quem é o eleito. Não dá conta de quanta simpleza
põe a nu, nem do que a comparação implícita tem de insultuoso.
Engulo a pílula, sorrio à senhora que
segue.