O Zé Guedes bem se arrepende, mas sabe que não tem remédio nem volta que lhe possa dar, a culpa toda sua, o mal está feito, agora paga pela curiosidade que lhe tinha despertado o palavreado do Lousada sobre genealogias, que depois de mandar analisar o seu DNA não se cansava de repetir o espanto de ser loiro, ter a pele muito branca, e 22% do DNA vinha de antepassados berberes de Marrocos.
Primeiro ainda fizera de surdo, porque se lhe dás atenção, quando pega num assunto o Lousada tem um modo tão cansativo de insistir naquilo que quer dizer, que praticamente obriga as pessoas a fechar os ouvidos. Além disso, para ser franco, já lhe chegava o que tinha em casa: uma mulher que nunca adoeceu mas vive a queixar-se, as duas raparigas sempre à porra e à maça com o irmão.
Contudo, por vezes é mesmo como diz o provérbio, água mole em pedra dura tanto dá até que fura, a falar verdade não deixa de ser interessante conhecer a nossa genealogia, e a páginas tantas, depois de algumas hesitações e comparando preços, o Zé Guedes decidiu que se contentaria em saber donde vinham os seus antepassados.
Pagou e esperou. No meio tempo teve encrencas com a administração do condomínio, depois foram as gémeas a anunciar que ou o irmão saía de casa ou saíam elas, e finalmente a Margarida a queixar-se com razão, levada de urgência para o hospital com uma peritonite aguda.
Tinham sido semanas tão sobrecarregadas que quando recebeu o envelope não se deu logo conta do que se tratava e só no domingo à tarde, sozinho em casa, teve vagar para o correio.
Confessa que hesitou, quase se sentiu tentado a deixar para mais logo, mas finalmente abriu o envelope, e ao contrário do seu mau hábito de dar uma vista de olhos apressada ao correio, obrigou-se a ler devagar, caindo de surpresa em supresa, espantado de na sua tão provinciana árvore familiar existirem antepassados da Andaluzia, da Sardenha, da Corunha, de Timor, e o que o fez repetir a leitura umas quantas vezes até acreditar, quatro porcento dos seus cromossomas ligavam-no aos Sérères do Senegal.
Achou graça àquilo, e por um instante hesitou se iria ao espelho ver se descobria no seu rosto algo de africano, mas desistiu, perturbado por uma recordação de quando era miúdo, a de que muitas vezes na praia a avó Isaura lhe dizia para sair do sol, porque se queimaria, se não tivesse cuidado ficava como um pretinho da Guiné. O mesmo diziam-no muitas mães e avós, mas teria havido na família algum segredo que não lhe tinham confiado?