Tais como somos, o mundo não se pode passar de governos, polícias e
exércitos. Não que isso garanta seja o que for, mas mantém viva a ilusão
de que é difícil, não impossível, comermo-nos uns aos outros.
Menos ainda pode o mundo passar-se de religiões, pois só elas garantem a
esperança, verdadeira ou falsa pouco importa, de termos sempre à mão um último
socorro, uma última possibilidade de indulto.
Eu, porém, sem convicção que me ajude a confiar nas instituições políticas, nem
fé bastante que me embale com a existência do Além, vivo um pouco como a
clássica rolha sobre a inconstância das águas: bóio calmamente aqui, sou
atirado para acolá, paro, giro, cai-me a onda em cima, sopra-me a tempestade
para longe, volto a boiar calmo.
Daí que consoante a hora e a disposição eu seja capaz de tudo justificar,
desculpar, defender: as guerras, as violências dos regimes, a atracção das
seitas, as desigualdades sociais, as consequências da opressão, as loucuras, os
crimes. E de logo em seguida sentir contra tudo isso uma sincera revolta.
Observo, mas não participo. Vou boiando. Tipo acabado do cidadão supérfluo.