terça-feira, outubro 12

Lord William (1)

Lord William B. chegou a Lisboa na Primavera de 1948, vindo de Itália num dos primeiros paquetes que depois da guerra reiniciaram a ligação entre Génova e o Rio de Janeiro. A sua bagagem causou pasmo, foi motivo de conversa para os estivadores que a tiraram do porão e os mirones que a viram passar. É certo que lord William, como toda a gente, viajava com malas. Apenas muitas mais. Mas às malas segui[1]ram-se caixas, caixotes, grades e arcas, baús, embalagens do tamanho de um quarto, tudo isso formando no cais um montão imponente. Encheram-se três vagões. Com o que ainda sobrava de miudezas carregou-se o camião de um homem que julgou que teria de levá-las ao Estoril, dois passos, e se enfureceu ao descobrir que a viagem era para os confins do Douro, naquele tempo dois dias para a ida, se as estradas estivessem boas, e outros tantos de volta. O desembarque e o despacho tinham sido rápidos e, pelo menos na aparência, sem encrencas na alfândega, a ponto que no entreposto se imaginou, e depois se afirmou, que o lord era primo direito do rei da Inglaterra. Viram-no apertar a mão do comandante antes de descer o portaló, seguido por um sujeito magro, de bengalinha, e dois rapazes que entraram com ele num carro preto com chofer enquanto os guardas automaticamente se punham em sentido e lhe faziam continência. O da bengalinha ficou para tratar do carregamento dos vagões, que se fez nessa mesma tarde. Foi ele também que, com um maço de notas como o homem nunca vira, calou as pragas do dono do camião. Semanas depois lord William instalou-se no solar herdado de um tio e em três anos aquilo estava transformado em palácio, o pessoal da casa passou a andar de uniforme branco, os vinhedos da quinta ganharam fama. Nesses três anos trabalhou lá um exército de pedreiros, carpinteiros, estucadores, electricistas, artistas que tinham deixado tudo num brinco. Contava-se, mas ninguém tinha visto, que num salão inteiro só havia instrumentos de música; que os dois andares e a torre estavam agora com mais de setenta divisões; que dos quartos de dormir do rés-do-chão, cada um com sua lareira de granito polido e tapetes de lã felpuda, bastava abrir uma porta e se descia logo para a piscina de mármore. Havia quem tivesse espreitado de longe, mas a piscina, infelizmente, ficava escondida pelas três alas do edifício e um renque de árvores; apenas se descortinavam lá de vez em quando uns vultos a nadar, ouviam-se gritos de alegria e risos quando o vento estava de feição. A aldeia alvoroçara-se com a chegada do lord. Diziam- -no mais rico que o falecido tio, menos sovina e, além de primo do rei da Inglaterra, parente chegado ou amigo de mais uma dúzia de soberanos e duques. Na generosidade ultrapassou largamente as esperanças, mesmo as dos necessitados que, como é sabido, são sempre desmesuradas. Deu para a igreja, deu para a escola, os bombeiros, a Misericórdia da vila, a sopa dos pobres. Passou a custear a procissão anual e comprou mais andores. Ofereceu um altar novo ao Menino Jesus: dezanove contos daquele tempo. Os doentes e aleijados nem precisavam de pedir: o mordomo, o sujeito da bengalinha, aparecia e desembolsava para a farmácia, as cadeiras de rodas, a visita do médico. Era preciso um especialista? Vinha o especialista. O clube de futebol não tinha campo? Ele deu o terreno, pagou a terraplenagem, mandou instalar um balneário, encomendou a banda de Trancoso para a inauguração, e ainda por cima pagou a merenda e o vinho a todos. Adoravam-no. Quando se mostrava na aldeia, raramente, ou ao vê-lo passar no carro a caminho de Lisboa, do estran[1]geiro, sempre com os dois mocetões loiros, as pessoas faziam-lhe vénia, os chapéus eram tirados com respeito, algumas mulheres e as crianças acenavam-lhe com a mesma maneira solene que tinham para o bispo ou para o andor da padroeira, Nossa Senhora da Boa Hora. Claro que não era perfeito, nem toda a gente lhe ia com a cara. Nunca falava, embora se dissesse que conhecia perfeitamente a língua; e das vezes que alguém, emocionado de reconhecimento, lhe quis agarrar as mãos para beijá-las, ele logo as tinha retirado e escondido, soprando Ós!, muito corado. Também não era bom para empenhos, nem para empregos. Na casa só trabalhavam estrangeiros e gente de fora; aos da terra dava o cavar, a vindima, algumas jornas, mas como o feitor tinha ordens para que a vez corresse por todos e a gente era muita, quem cavava não vindimava, os que ganhavam no Verão só voltavam a ganhar em Dezembro. A maioria não achava bem. Que tivesse as suas preferên[1]cias por este ou aquele, ainda compreenderiam. Se fosse forreta como o tio, um inglês ossudo que andava sempre com um xaile de mulher pelos ombros e pagava menos que os outros proprietários, também lhes pareceria dentro da ordem normal das coisas. Agora esse sistema novo – e o padre a dizer que era justo! – não agradava a ninguém: nem aos que trabalhavam, nem aos que tinham de esperar. Resmungou-se, mas ele deu o campo de futebol e os ânimos tornaram a acalmar, a coisa esmoreceu. Tempos depois, quando a tia Ludovina morreu por não haver ambulância que a levasse ao Porto, ele mal o soube mandou logo comprar uma, os que queriam fazer exigências não acharam quem os apoiasse. Finalmente tinham-se conformado. Por vezes ficava na quinta o ano inteiro, ou então um mês, três meses. Viam passar o carro, mas a bem dizer ninguém sabia se naquela hora ia de viagem ou a passeio, se era ida ou retorno. A generosidade é que continuava a mesma, estivesse ele ou não. Bastava o padre falar ao mordomo, este informava- -se, e no seu português mascavado de italiano dizia «Si, si», os pobres eram ajudados, os doentes recebiam o remédio, o «Bota e Bebe» da loja fornecia os comestíveis. Coisas maiores era preciso esperar que a «Eccellenza» estivesse.

(Continua)