O Manuel tinha voltado da tropa com a ideia de que não haveria de demorar muito antes de juntar o bastante para a passagem e em dois anos, no máximo, estava no Brasil. Pagassem-lhe o justo e para ele não havia horas, peso ou ladeira. Por ser assim trabalhador contratavam-no até de longe, escolhia os patrões que queria, o Simão não se opôs quando lhe começou a namorar a filha mais velha. Nunca se tinha sujeitado a esperar vez para trabalhar na quinta do lord, nem mesmo depois de o feitor, na taberna, lhe ter acenado com a promessa de que se fosse respeitador e obediente lhe poderia suceder no cargo.
O Manuel encolheu os ombros e sorriu de maneira tão escarninha que o feitor, nessa noite, disse à mulher que não compreendia como um rapaz que pouco mais tinha que a camisa do corpo, se pudesse dar ao luxo de proceder assim.
Na taberna, os que tinham ouvido também o acharam tolo, porque o lugar de feitor na quinta, além de casa de graça, ordenado, um porco e uma pipa de vinho por ano, ainda dava muitos benefícios.
– Tem juízo, rapaz – disse alguém – o teu Brasil é aqui.
– Não trabalho p’ra panascas – rematou o Manuel.
Houve um silêncio, depois as conversas continuaram sobre outra coisa, mas com ele ninguém mais falou, só repararam que ao sair da tasca ia tão tocado que o Pinto e o Camorro lhe deram ajuda até à porta de casa. Sabia-se, mas nunca ninguém se tinha atrevido a abrir a boca a não ser em segredo: no palácio passavam-se coisas que era melhor esquecer. O pessoal, fora o mordomo, era tudo rapaziada nova e bonita, pareciam escolhidos a dedo. Mulher não trabalhava lá nenhuma, nem mesmo na cozinha, e contava-se à boca pequena que a raiva do inglês pelas fêmeas era tão grande, que ele próprio tinha matado a cadela perdigueira que o povo lhe oferecera.
O dito do Manuel naquela noite caiu mal na aldeia e a partir desse momento só as circunstâncias e o lugar da sua morte são indiscutíveis. O resto perde-se em «contam por aí», «diz-se», «parece», mas testemunha que faça fé não há nenhuma e por isso se aceita a versão que segue.
Uma noite foi o Manuel agarrado por desconhecidos que o levaram para uma sala do palácio onde o lord estava à espera e lhe perguntou se era verdade o que contavam, que ele tinha dito que não trabalhava para panascas. É possível que por acanhamento e susto não tenha dado resposta, mas «contam por aí», «fala-se», que lhe tiraram a roupa à força, o deitaram ao chão, prenderam com cordas, e os matulões da quinta, uns a seguir aos outros, o tinham enrabado tantas vezes que perdeu os sentidos.
O próprio lord deu-lhe depois um copo de água, disse- -lhe que se podia ir embora e não se esquecesse de contar na aldeia que também era roto.
Na semana seguinte desapareceu. Segunda-feira viram-no voltar na camioneta da carreira. Repararam que mancava e tinha os olhos avermelhados. «Diz-se», «parece», que tinha estado no hospital da vila, no posto da Guarda, no tribunal, para apresentar queixa, que chegara mesmo a falar com um advogado, a ver se lhe queria tratar do caso e este lhe respondera como os outros: «Não me meto nisso.»
Dois dias depois, uns homens que andavam a trabalhar à beira-rio, viram-no lá sentado mais de uma hora. No sábado de madrugada encontraram-no enforcado no portão da quinta e a aldeia inteira correu a vê-lo, mas o mordomo deu ordens para que lhe deitassem um lençol por cima até as autoridades chegarem.
A «Eccellenza» tinha saído de viagem na semana anterior e quando voltou no Outono estava tudo esquecido.