Caro Maurice,
Aí em Menton - concluio isso pelo carimbo do correio – anda um tarado à solta. Um tarado holandês que há meses me bombardeia com cartas onde exige que eu dê testemunho público de agradecimento a este país, o qual não somente me acolheu, mas até agora me permitiu ganhar um confortável pão. Caso insista em não lhe obedecer, promete ele que um dia destes me arrependerei da teimosia.
Fora disso, tendo lido e apreciado pouco um pequeno livro que escrevi sobre o seu povo, traduziu para alguns amigos as passagens que lhe pareceram mais salientes, chegando estes à conclusão geral que, vivesse eu em França e ousasse dizer coisas assim sobre os franceses, não demoraria a que me chegassem a roupa ao pêlo.
Como sabes não é este o primeiro tarado que enfrento e infelizmente não será o último. Às ameaças desse género também já me habituei e, sejam anónimas ou assinadas, vão como de costume para o lixo.
Contudo, por mais de uma vez – e isso irrita-me sobremodo – gente boa, bem intencionada, tem também desejado saber de mim se me sinto ou não grato por ter podido passar na Holanda, em paz e conforto, tantos anos da minha vida. A resposta é um redondo não.
Eu, que faço o meu trabalho, pago os
meus impostos, respeito as leis e as pessoas, que não gozo de mais privilégios
senão os que cabem ao cidadão comum, imagino mal por que carga de água se
espera que me mostre agradecido.
A não ser que de facto as pessoas, julgando fazer uma pergunta, inconscientemente exprimam uma acusação. Que não lhes interesse na verdade ouvir o meu obrigado, mas investigar se, no íntimo, me sinto com o direito de viver em terra alheia. E a minha resposta é um definitivo sim.
Só que, infelizmente, para o emigrante, o ilegal, o exilado, a questão nunca se põe de maneira tão simples. Tenha ele fugido à miséria ou à repressão, ou apenas cedido ao chamado da aventura, as consequências só lhe são reveladas quando a sua decisão se torna irreversível.
Então, pouco a pouco, irá descobrir que o bem-estar material e os ganhos não compensam a perda da sua identidade, da sua língua, do penoso afrouxamento das raízes que o prendiam ao solo em que nasceu. Pouco a pouco irá dar-se conta do frágil equilíbrio da sua existência. Tomará consciência de que nem sempre são voluntários os insultos que o magoam, nem sinceras as lamúrias que os chamados bem-pensantes fazem à sua condição.
E se, por força própria ou ajuda alheia, não conseguir integrar-se na sociedade que o acolheu, não for capaz de conquistar nela um lugar digno, o emigrante, ao fazer o balanço íntimo da sua condição, descobrirá que desde o princípio dos tempos nada mudou: mesmo quando a dádiva é simbólica, o que a faz espera agradecimento; o agradecimento gera a submissão; quem se submete perde a igualdade com o seu semelhante, e a si próprio confere uma posição de segunda ordem, abrindo a porta às humilhações.
E como é força constatar, mau grado os avanços feitos pelas doutrinas da religião e as teorias da política, o primitivismo continua arreigado nas relações humanas. Em muitos casos – o emigrante humilde sabe-o melhor que ninguém – ainda não é a lei que regula a actuação do cacete, mas o cacete que determina o grau de aplicação da lei.
Não vás tu julgar que actualmente tenho razões de queixa. Bem ao contrário. Mas talvez o tempo cinzento e a carta do tarado que vive aí na tua vizinhança tenham contribuído para avivar uns medos recalcados do tempo longínquo em que eu, todos os meses, tinha de ir buscar um carimbo à Polícia, e o funcionário, sem sombra de ironia, me perguntava quando é que resolvia pôr-me a andar.