Até certo ponto, o contar
histórias e inventar personagens é actividade de risco, o qual aumenta quando
se publicam num jornal, pois há sempre alguém que julga reconhecer-se no
acontecido, sente ofensa, e em casos extremos não hesita em pedir contas ao
autor. Uns ficam pelo insulto, outros
ameaçam com esperas, garantindo que não hesitarão em chegar a vias de facto,
mas de modo geral é mais trinta e um de boca do que perigo sério, a raiva
amansa e como Eça apontou, porque somos meridionais, “das nossas terras
palreiras da vanglória e do vinho”, o caso esquece.
Felizmente assim é, porque se
por um lado não resisto a contar a metamorfose do Gilberto (pseudónimo),
sentiria verdadeira pena se viesse a perder a sua amizade, embora essa hipótese
não seja grande, pois como ele gosta de dizer nunca pega num jornal, e além
disso há anos que vive longe e isolado nos confins da Galiza, para onde o levou
o casamento e o gosto por uma Natureza rude que, segundo ele, já não se
encontra em Portugal nem mesmo no Gerês onde nasceu.
Vai para meio ano que o Gilberto
quebrou inesperadamente um longo silêncio, surpreendendo-me com um e-mail
em que me dava conta de que depois de muita pesquisa nos sites de
genealogia na internet, em particular os dos mórmons, tinha descoberto que um
dos seus trisavós nascera em Barcelona e fora aparentado com as famílias dos
Mercader, dos Besall, dos Companys e mais umas quantas da nobreza catalã.
Recordo que respondi com aquele
excesso de entusiasmo que esconde a indiferença, levando a hipocrisia ao
extremo de lhe pedir que me mantivesse ao corrente das investigações, pois era
louvável que honrasse a memória dos seus antepassados.
Bem me arrependo agora, mas como
se costuma dizer o futuro a Deus pertence, longe estava eu de imaginar as
consequências do meu fingido interesse. É que tendo descoberto em mim o
interlocutor ideal para a sua obsessão, ele passou a bombardear-me com os
detalhes das suas pesquisas, não me poupando sequer as datas dos ficheiros, os
números de registo de actas e processos, cópias de contratos de casamento, links
para a consulta de jornais antigos que relatam o que foi o poderio da sua
gente.
De vez em quando deixo passar
uns dias antes de responder, esperançado de que ele veja no atraso o discreto
sinal do meu limitado interesse, mas essa estratégia resultou contraproducente,
pois anuncia agora que um destes dias me vem visitar e, para que não duvide de
quem ele agora é, trará consigo o esboço do brasão.