Começa-se com entusiasmo, no
engano de que a inspiração existe, e de súbito faz-se no cérebro um
inexplicável negrume, de nada adianta insistir, não há enredo para contar.
Ficam as pontas soltas dos fios que vou guardando, mesmo sabendo que com eles
nada tecerei.
Deixo correr o olhar, mas é mais
um hábito, passatempo, não me peçam detalhes da paisagem, das margens, se há
barcos no rio ou é muito o arvoredo, quantas as vinhas, porque olho sem ver,
com um interesse menos que passageiro.
Rotina que comecei pouco depois
de para aqui vir. Tomado o pequeno-almoço pego nos jornais e desço para o
miradouro, debruço-me como se estivesse a admirar, mas de facto sem
curiosidade, e dali vou sentar-me onde
fizer sombra.
Os jornais são um pretexto. Se
os abro, se leio distraído um ou outro artigo, nada retenho, porque voluntariamente ou não o
pensamento se me perde em inúteis tentativas de ordenar o que permanece
caótico, descobrir explicação para os altos e baixos, de com teimosia querer
que haja lógica onde tudo parece
contraditório, desnorteante, absurdo.
Deveriam ser de repouso, mas são
momentos cansativos, impedem-me de ver claro em mim próprio, no que me
acontece, o que desejo e o que realmente
está ao meu alcance. Muito brevemente, numa ou noutra altura quase consigo o
milagre de eliminar por inteiro o passado e ver-me apenas no agora, esquecido
das humilhações, da crueldade minha e alheia, das horas de desespero, do terror
que dá a vista do precipício.
O alívio, contudo, é de pouca
dura e sem proveito, o pensamento logo me devolve para o que foi, obriga-me a
remoer o que quero olvidar, parecendo que assim dá aviso de que a prosperidade
que tão inesperadamente me calhou tem um preço.
Vai para três anos, mas a cena,
o lugar, o momento, a pouca luz da manhã nevoenta, o ruído da campainha, o
azedume do carteiro quando me estendeu o bloco para assinar o registo e a
preocupação com que voltei à sala, o tamanho invulgar do envelope, o toque que
por descuido dei à xícara e o café que se arramou, uma insólita buzina, tudo
isso permanece vívido nos pormenores.
Céptico por temperamento,
experiência, e pouco habituado a boas surpresas, limpei a mesa, perguntando-me o que me esperava, que motivo poderiam
ter Veloso, Cabrita, Delcano &
Associados, advogados em Lisboa, para me remeterem aquilo.
O luxo do grosso envelope fazia
contraste com o desarranjo da mesa e a modéstia da minha sala, testemunhava
doutros mundos, ambientes finos, parecia
emanar dele, se não ameaça uma certa altivez, como se mo tivessem enviado por
engano, embora o nome e morada conferissem.
Sorri da minha medrosa
desconfiança, escusando-me com outras ocasiões, trazendo à memória envelopes
que, na aparência inócuos, reservavam más surpresas. Incapaz de decidir,
continuava a encarar o objecto como se fosse coisa viva, desagradável,
finalmente optei por mais um café e fui
buscar a tesoura.