“O Calcinhas” e “O Cornetim”
De verdade deve haver curiosos e subterrâneos motivos para certas alcunhas,
como no caso do Abel Catarino, pois não tem ouvido musical e detesta fanfarras,
além de que nem o seu aspecto ou mania que lhe imaginem justifique que quando
não está presente lhe chamem “O Cornetim”.
Para mim continua a ser o Abel
ou o Catarino, o que não me impede, quando falo do Pai, esquecer que era o
senhor Malhadas e apenas recordar que lhe chamávamos “O Calcinhas”. Para isso
tínhamos alguma razão, pois em matéria de vestuário, especialmente calças, o
senhor Malhadas dava preferência a um curioso figurino. Falo de há bem
cinquenta anos atrás, mas ele como que tinha antecipado o que agora é moda entre
certos rapazes, a das calças que só chegam ao tornozelo, o que seria o menos,
não fosse o ele trazê-las presas com suspensórios, mas em vez de as deixar pela
cintura repuxá-las quase até meio do peito, um pouco à maneira dos palhaços.
Singular figura, o senhor
Malhadas: indisciplinado e estroina sargento da GNR durante a vida activa, a
reforma como que lhe aumentara a toleima, e quase nos setenta, tirando proveito
da viuvez, da Viagra e da liberdade dos costumes, era certinho aos sábados à
tarde vê-lo meter-se no carro, não fazendo segredo de que ia a caminho de Badajoz,
onde tinha poiso favorito, e por lá ficava o fim-de-semana, recomendando depois
a um ou outro íntimo a arte das romenas e brasileiras suas favoritas.
Que Deus tenha em paz a sua
alma, e lá no Céu não se deixe afligir pelo filho que ficou entre nós, pois “O
Cornetim” é todo o seu avesso. Além de ser o mais acabado tipo de Chefe da
Secretaria da Câmara, nunca perde uma missa ou falha à confissão, gere com zelo
a contabilidade da filarmónica e dos bombeiros, é sempre mordomo da festa.
Ao contrário
do Pai, que tinha a testa alta e um perfil romano, as suas feições são grosseiras,
assimétricas, entorta-se-lhe a boca quando fala, tem um tique de constantemente
meter a mão no cabelo, parecendo estar a pentear-se. O modo vesgo como encara o
interlocutor desdiz o sorriso que julga simpático, caminha de lado, braços
pendentes, o dorso numa corcunda, o olhar inquieto de quem receia que lhe venha
contratempo ou prejuízo.
Casou tarde,
mas a Margarida tem de seu, por isso são férias no México, todo-o-terreno,
Mercedes na garagem. É amigo do juiz, do notário, do Ferraz da Caixa, do
capitão da Guarda, com eles caça, faz umas patuscadas, sua é a memorável
expressão: "Cá no concelho somos as forças vivas!”