terça-feira, fevereiro 12

O Calcinhas e o Cornetim



“O Calcinhas” e “O Cornetim”

De verdade deve haver curiosos e subterrâneos motivos para certas alcunhas, como no caso do Abel Catarino, pois não tem ouvido musical e detesta fanfarras, além de que nem o seu aspecto ou mania que lhe imaginem justifique que quando não está presente lhe chamem “O Cornetim”.
Para mim continua a ser o Abel ou o Catarino, o que não me impede, quando falo do Pai, esquecer que era o senhor Malhadas e apenas recordar que lhe chamávamos “O Calcinhas”. Para isso tínhamos alguma razão, pois em matéria de vestuário, especialmente calças, o senhor Malhadas dava preferência a um curioso figurino. Falo de há bem cinquenta anos atrás, mas ele como que tinha antecipado o que agora é moda entre certos rapazes, a das calças que só chegam ao tornozelo, o que seria o menos, não fosse o ele trazê-las presas com suspensórios, mas em vez de as deixar pela cintura repuxá-las quase até meio do peito, um pouco à maneira dos palhaços.
Singular figura, o senhor Malhadas: indisciplinado e estroina sargento da GNR durante a vida activa, a reforma como que lhe aumentara a toleima, e quase nos setenta, tirando proveito da viuvez, da Viagra e da liberdade dos costumes, era certinho aos sábados à tarde vê-lo meter-se no carro, não fazendo segredo de que ia a caminho de Badajoz, onde tinha poiso favorito, e por lá ficava o fim-de-semana, recomendando depois a um ou outro íntimo a arte das romenas e brasileiras suas favoritas.
Que Deus tenha em paz a sua alma, e lá no Céu não se deixe afligir pelo filho que ficou entre nós, pois “O Cornetim” é todo o seu avesso. Além de ser o mais acabado tipo de Chefe da Secretaria da Câmara, nunca perde uma missa ou falha à confissão, gere com zelo a contabilidade da filarmónica e dos bombeiros, é sempre mordomo da festa.
Ao contrário do Pai, que tinha a testa alta e um perfil romano, as suas feições são grosseiras, assimétricas, entorta-se-lhe a boca quando fala, tem um tique de constantemente meter a mão no cabelo, parecendo estar a pentear-se. O modo vesgo como encara o interlocutor desdiz o sorriso que julga simpático, caminha de lado, braços pendentes, o dorso numa corcunda, o olhar inquieto de quem receia que lhe venha contratempo ou prejuízo.
Casou tarde, mas a Margarida tem de seu, por isso são férias no México, todo-o-terreno, Mercedes na garagem. É amigo do juiz, do notário, do Ferraz da Caixa, do capitão da Guarda, com eles caça, faz umas patuscadas, sua é a memorável expressão: "Cá no concelho somos as forças vivas!”