terça-feira, fevereiro 12

A loucura do elogio


A loucura do elogio

Um defeito assim não deve ser daqueles que vêm do nascimento, é mais provável que tenha começado como um pequeno incómodo da sensibilidade, que  à força da repetição se foi transformando em fastio, e por ter crescido demais se torna uma séria antipatia.
Dá-se comigo o caso que, sejam eles a meu respeito, dirigidos a terceiros, as bacoquices de exagerada cortesia ou as habituais parangonas nos discursos de homenagem, suporto mal os elogios.
Tente agora o leitor compreender o meu estado de espírito na noite em que, tendo aceitado levianamente o convite para jantar de um casal que vagamente conhecia, me vi na situação de verdadeiro refém de duas pessoas que fora de dúvida eram boa gente, mas também maníacos do elogio a um seu afastado parente, historiador falecido havia pouco, para mim um nome de exagerada fama, mas de quem eles eram mais que devotados admiradores.
- É mesmo pena que não o tenha conhecido, porque era um sábio! Um dos  verdadeiros grandes homens deste país E então de uma cultura! A impressão que se tinha ao ouvi-lo falar, era que estávamos ali a beber sabedoria! Sem exagero! Exactamente isso!
É um tique de que sofro, e pouca a esperança de que um dia encontre cura:  continuam eles nesse tom e vão-se-me os olhos a fixar um ponto alto das suas testas, o que os assegura de que continuo a encará-los e me ajuda a procurar distracção no tecto.
- Um grande senhor! E então de uma gentileza!
Esta achega é da cara-metade, e eu, ao sentir que se me franzem os lábios, apresso-me a arrepanhá-los numa careta de assentimento. Segue-se uma pausa, ele retira os óculos com um gesto largo e, como se estivéssemos os três num palco, dá deixa à senhora:
- De facto! Homem de imenso valor! Uma personalidade sem par! E a  obra que nos deixou! Leu A Fulgência da Desordem, que saiu o ano passado?
Aceno que não, mas ela mal nota, esquece que vai na terceira ou quarta repetição e prossegue: - São homens desses que dão grandeza ao país!
Ele não quer ficar atrás, aponta-me o dedo sublinhando o superlativo:
- Personalidade fortíssima! A tocar o genial!
Não param, eu cheguei ao ponto em que sinto um começo de tontura, e deixo de ouvi-los, refugio-me na imagem que guardo do falecido.
Não era sábio, nem culto, nem gentil, mas um ser traumatizado, doentiamente hesitante, sofrendo de medos irracionais,  rara sovinice e um pendor de crueldade. Todavia, no seu caso, como tantos outros, por certo importa menos a pessoa que fomos, do que a imagem que de nós guardam os fiéis.