Nunca é de graça
Conhecem-se há vidas, são amigos do peito, a experiência
ensinou-lhes que nem as suas famílias nem terceiros podem ser convidados para
os seus almoços, pois há pouco quem tenha capacidade ou nervo para aguentar aquelas
discussões. Alguns já se têm assustado, não compreendem que entre amigos se chegue
a tais extremos de discórdia e a gritar daquele jeito.
Para eles é jogo, fazem-no de propósito, se bem que por
vezes ambos se dêem conta de que quase pisam o risco. Mas nessas ocasiões é
como quando no ringue aparece o árbitro: aquietam-se, não se encaram, bebem
calados, para de repente desatarem à gargalhada. Dois miúdos.
Discordam em tudo o que é possível discordar: futebol,
carros, política, mulheres, religião, o presidente Trump, o presidente Marcelo,
os pneus Michelin, a Coreia do Norte, o turismo, os vinhos do Alentejo, os
pauliteiros de Miranda, o SNS, os helicópteros Kamov, o veganismo, as tatuagens.
No último almoço começaram pelos abusos da padralhada, o
Sebastião dizendo que tivesse ele poder sabia muito bem como resolvia o assunto.
O Albino, ainda calmo, pondo água na fervura, a lembrar-lhe que essas coisas
não são de agora, sempre foi assim. Julgava ele que no Convento de Odivelas, no
tempo de D. João V, era só com as freiras? Que não havia por lá miúdos a ajudar
à missa?
De costume seria esse o momento da discórdia, mas em vez de fingir
de zangado e começar aos berros, o Sebastião, com um sorriso beato, ergueu o
copo – ‘À nossa! - dizendo que não se
importaria de ter vivido nesse tempo. Não tanto pelas trezentas freiras, mas
pelas madres-abadessas de Odivelas.
- Parece que eram escolhidas a dedo e, segundo consta, espectaculares
de corpo, de cara, e boas na cama.
- Também li isso em qualquer parte.
- Não leste nada. Nunca pegas num livro, até desconfio que
já nem sabes ler.
Agora sim, agora tinham encontrado o tom e as pessoas já olhavam,
a surpresa foi o sujeito da mesa ao lado
desculpar-se, dizendo que tinha ouvido, era historiador e queria confirmar que
no Convento de Odivelas de facto só chegava a madre-abadessa quem preenchesse esses
requisitos.
- E tivesse língua afiada – acrescentou Sebastião.
- Exactamente. Conta-se que certa vez uma dama da Corte não
se quis levantar à passagem da madre-abadessa, e esta lhe disse: - Claro que
não se levanta de graça quem se deita por dinheiro.
Sebastião sorriu, o historiador voltou ao seu prato, o Aníbal
de cara azeda, baixando a voz: - Vem este com o conta-se! Quem é que conta? Quem
estava lá?