Questão de sorte, genética, carácter ou acaso, há quem
conheça amizades da vida inteira, daquelas que se tornam exemplares e por onde
nunca perpassam arrelias, desconfianças ou traições. São essas amizades excepção,
pois também por sorte, genética, carácter ou acaso, a maioria de nós vive à
mercê das circunstâncias e de um dia-a-dia que pouco espaço deixa para
sentimentos elevados, contentando-se com aparências ou, no melhor, refinando o
fingimento.
Amizades de vida inteira nunca tive, e as poucas que
mantenho obrigam-me por vezes a cansativas cabriolas dos sentimentos e do
vocabulário, porque hoje em dia e como nunca antes, pouco é preciso para ferir
susceptilidades e perturbar sentimentos, ou que nos acusem de traições, de
facadas, de pormos em perigo a felicidade alheia, a paz do mundo, de atentarmos
contra os direitos das minorias, de sermos indiferentes à igualdade de tudo e
todos, mesmo à daqueles que exigem ser desiguais.
De modo que exprimir opinões que não alinhem com as dos que
politica e socialmente se consideram ‘correctos’ é, por enquanto, mais de meio
caminho andado para o insulto, a denúncia, o ostracismo, talvez para o
calabouço num futuro que se anuncia próximo. E assim a cautela manda fechar a
boca e fingir de sonso, não entrar em discussões sobre temas chamados
‘sensíveis’, fazer de surdo quando os ‘bons’ se assanham contra o que tão
facilmente rotulam de fascismo e populismo, os tremores que lhes causam a
escravatura, o aquecimento global, os motores a gasolina, o açúcar, a carne no
talho e sabe Deus quantos outros males. Mas ainda nos cabe uma culpa maior – a
nós, não a eles, que são puros nas acções, nos intuitos, e conhecem a verdade –
a de não sabermos receber de braços abertos e com vivas os estranhos que sem
bater à porta nos entram pela casa adentro, anunciando que estão no seu direito,
e se não acreditamos no que dizem é ir
perguntar à ONU.
Pudesse eu, de boa vontade regressaria ao tempo em que dos
ideais aos filmes no cinema havia muito que era a preto e branco, o mau da fita
tinha uma só cara, a única escolha era ser a favor ou contra. Infelizmente,
essa simplicidade antiga desapareceu, há que estar em permanência atento às reviravoltas,
pois as regras e os conceitos mudam do dia para a noite, a ortodoxia de ontem é
anátema amanhã, não ajuda nem dá alívio saber que seis séculos atrás o Poeta
avisava que em pouco se pode confiar, porque ‘todo o mundo é composto de
mudança, tomando sempre novas qualidades.’