Umas sabem, outras não
Compreendo a Esmeralda e admiro a teimosia com que se agarra
ao seu sonho, mas é pena que seja pessoa que não quer conselhos.
Ao contrário dela eu não
tive um, tive não sei quantos sonhos, mas cedo os perdi. Por volta dos oito
anos queria ser maquinista naquelas locomotivas enormes, pintadas de preto, com
fumo a sair da chaminé. Depois apaixonei-me pelos submarinos, e embora só os
conhecesse das fotografias e de os ver no cinema, fascinava-me a ideia de
navegar num tubo de ferro até ao fundo do oceano. Mas uma tarde, no recreio,
bastou um único beijo da Laura para que acabasse de vez com as fantasias e fosse
espreitar a porta por onde iriam entrar as boas e más andanças da minha vida.
A Esmeralda era ainda pequenina quando viu um circo na
televisão e ficou assombrada, jura que foi como se estivesse alguém a dizer-lhe
que aquilo seria o seu destino. Desde esse momento parece mistério, pois quando
lê os horoscópios encontra sempre uma alusão à vida artística, a viagens, a
aventuras, à fama, ao aplauso.
Já estava casada com o Marcelino quando em ocasiões
diferentes duas ciganas lhe leram a mão e disseram o mesmo: via-se nas linhas, era
esse o seu destino.
Sabe que será trapezista ou equilibrista, nada com cavalos,
ursos, cães ou palhaços. Assistente de malabarista ainda menos, porque não
aguentaria que a fechassem numa caixa, ou que mesmo a fingir a serrassem em
três partes. Também não se vê encostada a uma tábua, em tremuras e a rezar ao
anjo da guarda para que o lançador de facas não falhe a pontaria.
Todos os dias se perde no sonho. Já lhe aconteceu estar no
dentista, no supermercado, na cabeleireira, e de repente ouve os tambores,
começa a subir a escada de corda, espera até que o parceiro lhe atire o trapézio,
agarra-o e sente-se a voar, tudo tão real que baixa os olhos para que ninguém
descubra a sua excitação. Infelizmente o Destino não se compadece, mantém-se
avesso, obriga-a a esperar.
Ainda namoravam quando lho contou e o Marcelino pôs-se a
rir, disse que era maluquice, mas nunca mais falou naquilo. Por isso no passado
domingo foi um choque. Tinham-se deitado, começaram na brincadeira, de repente
ele deu-lhe um empurrão e virou-lhe as costas. Que fosse para o circo, porque
se calhar ia ser boa no trapézio, na cama é que não prestava.
Chorou, amuaram, fizeram as pazes, zangaram-se outra vez quando
quebrou o telemóvel. Palavra puxa palavra desmarcaram as férias, ele ontem
disse-lhe para ir passar uns dias com a mãe, e depois se verá.