Estava em Paris há coisa de dois meses, quando o casal
amigo que era o meu anjo custódio me convidou para passar com eles a Noite de
Natal em casa de gente das suas relações, o que me traria a dupla vantagem de
participar num “Réveillon” da alta roda parisiense e, quem sabe, travar aí
relações que poderiam ser úteis.
O acolhimento que me fizeram não podia ser mais
cordial, eu esforçando-me para não mostrar o espanto que me causava um luxo que
só conhecia dos filmes, não ficar de boca aberta para os decotes das madames e,
na medida do possível, evitar de dar demasiado nas vistas ou, embora falasse um
francês excelente, de participar em conversa que excedesse o escopo dos meus
conhecimentos e acentuasse a modéstia da minha condição, da qual, no meio
daqueles smokings, toilettes de Dior,
Chanel, Fath, Balenciaga, dava prova suficiente o fatinho escuro que vestia,
talhado em Caminha na alfaiataria do senhor Garrido.
Conversou-se, brindou-se com champanhe, eu respondendo
como podia a um ou outro que, estranhando a inesperada e certamente peculiar
presença de um bisonho no meio de tanto
chique, queria saber donde vinha, o que fazia, quem o trouxera à festa, que laços o uniam à gente
da casa.
Um ou outro, não uma ou outra, pois nenhuma das damas
me dirigiu palavra ou deu mostra de notar o intruso, mas em todos era apenas o
relâmpago de uma curiosidade desinteressada, alguns a voltarem as costas a meio
da minha resposta. Sorriam, acenavam a alguém, e ali ficava eu especado, a boca
cheia de dentes, ilha de solidão no meio da barafunda, preocupado se teria de
esperar vez ou, como via fazer, aproximar-me do bufete, onde um cozinheiro de
toque, três ou quatro raparigas e um mordomo de casaca, se curvavam em
salamaleques, ao mesmo tempo que depunham nos pratos o que o conviva apontava.
Ao fim de um longo tempo de desconforto, a curiosidade
e o apetite levaram a melhor, aproximei-me do festim e, julgando que imitava
bem o que vira os outros fazer, apontei isto, aquilo, mais um bocadinho do
outro e, s’il vous plaît, uma fatia desse foie gras.
Fiz de conta que não reparava, mas o olhar do
cozinheiro, as sobrancelhas do mordomo, o sorriso da rapariga que me estendeu o prato foram o
toque de campainha a alertar-me que de certeza tinha borrado a opa, talvez
tanto pela demonstração de gula, como pelo disparatado conjunto de acepipes que
a minha ignorância me levara a escolher.
Felizmente, nunca mais me vi em situação que se lhe
comparasse, mas a ninguém desejo o mal-estar que decorre da mistura de
ignorância, acanhamento, pequenez, e da certeza de que o ambiente nos encara de
maneira igual à que na Índia os brâmanes “vêem” os intocáveis.
Seis décadas passaram, mas a recordação continua viva,
menos pelo para mim então exótico ambiente e do que lá senti, do que pela
desagradável peripécia em que me veria ser causa involuntária.
Vivette e Jean Barthelot, o casal amigo que me levara
à festa, não somente pertenciam à alta burguesia parisiense, eram também gente
que tomava a sério os seus ideais e princípios de conduta, o que a ele,
engenheiro de profissão e herói da Resistência, tinha valido no fim da Segunda
Guerra Mundial ser condecorado com a Legião de Honra.
Que a modos de iniciação no mundo ou de rito de
passagem me tenham levado a tal sítio, a conhecer tal gente e aquele que sabiam
seria para mim um ambiente estranho, não o fizeram por acaso, mas
conscientemente, em sequência das muitas horas de conversa que tinham comigo
quando visitavam Portugal e, se assim posso dizer, abrindo-me os olhos para o
atraso, o regime político e as desigualdades sociais da minha pátria. Não que
eu as ignorasse, mas porque apesar do excesso de leitura as examinava sem
contexto social nem quadro histórico, numa simplicidade de eles e nós, pobre e
ricos, e uma boa dose de aceitação do fatalismo.
Tinham sido ambos carinhosos, pacientes a limar a
minha ignorância da História e da Democracia, e a que visse com outros olhos a
Segunda Guerra Mundial, explicando-me as
consequências políticas e económicas do Plano Marshall, dos conflitos que se
preparavam, das responsabilidade do cidadão.
Agora ali estava eu, ainda presa do meu embaraço no
bufete, procurando descobrir onde me poderia descartar do prato, quando vem
direito a mim um elegante de meia- idade, todo sorrisos, copo na mão,
penduricalho na lapela, a passada desigual e instável de quem já bebeu a conta.
Pára, toca-me ligeiramente no peito com o dedo, sorri,
cerra os olhos, recua um passo, rebenta numa gargalhada que leva alguns a
voltar-se, parece sufocar com o próprio gozo e rouqueja divertido:
- T’es quoi,
toi? Youpin? Bicot? (*)
O choque deve-me ter confundido durante mais tempo do
que julgo, ou durante segundos perdi os sentidos, pois a recordação que guardo
não pode ser fiel. É que em simultâneo oiço que o sujeito continua às
gargalhadas, vejo que Jean o agarra e esbofeteia, Vivette aparece não sei
donde, toma-me o braço e leva-me dali.
Nalguns rostos leio a surpresa com que me encaram e como
se só nesse momento dessem por mim, outros mostram indiferença ou o fastio de
quem presencia um incómodo.
……………………….
(*) “Tu és quê? Judeuzinho? Fode-cabras?”
Referente aos habitantes do Maghreb, Bicot era um pejorativo que eu
desconhecia. Youpin tinha-o descoberto
na obra de Jules Renard (1864-1910) um dos autores favoritos da minha
adolescência. Escritor brilhante, mas de um antissemitismo que não fica atrás
do de Céline (1894-1961).