terça-feira, novembro 1

Velório

Ontem  à noite fui a um velório, o ritual que a cidade perdeu, mas aqui se mantém,  partilha silenciosa de medos e respeito, dor, recordações do que poderia ter sido mas nunca foi, do que irremediavelmente nunca será, do que sonhámos e se esfumou.
Está a defunta no centro da capela e, todos anciãos, jovem nenhum, sentámo-nos em torno, uma voz reza o terço, outras respondem. Ensimesmados, os nossos pensamentos não acompanham a litania. Os olhos perdem-se num rosto que chora, seguem o mais idoso de todos nós que, quase centenário, acaba de entrar. Erecto, digno, curva-se um instante junto do caixão. Aperta depois a mão a cada um dos presentes, faz uma última vénia à defunta, e assim se despede, recusando ajuda ou companhia que o leve a casa e à solidão em que vive.
Uma mulher abraça a morta, retira o véu que lhe cobre o rosto e beija-a, sufocada de pranto,  talvez a remir um pecado, talvez a chamar a memória de uma alegria para sempre perdida.
A chuva grossa, de tempestade, matraqueia no telhado. Alguns cabeceiam, uma esfrega os dedos nos olhos, aquele vai espevitar o morrão dos círios e, da tremura ou desajeitado, entorna um vaso.
Anunciam a meia-noite. Levantamo-nos e aguardamos, veteranos em formatura, as bengalas por arma, a nossa marcha um marcar passo.