Muito há que deixou de ser o que era. É muito o que, por ter mudado, baralha os sentimentos, o comportamento, as ideias, as relações.
O enterro estava marcado para as três, mas bem antes começou a rua a encher-se de gente de fora, filhos, netos, primos, parentes afastados que aparecem em ocasiões destas e na festa do padroeiro. Malta que perdeu o ser da aldeia, mas ainda não ganhou por inteiro modos de cidade. Arrogantes, olham de lado ou sem ver, atiram displicentes um olá, mostram como se esmaga a ponta do cigarro com o sapato novo. Chegaram em Audis e Mercedes, jipões, 4WD pintados nas portas, Toyotas para andar na selva.
Exibem uma tafulice pateta, fardados do que julgam moda e é de um caricato de entremez. Deixa uma o coche, mostrando-se de saiinha curta e botas a encher a perna grossa, botas altas, de cavalaria, com esporas e fitas para o estribo. Vem este fardado de cabedal vermelho e branco, montado numa Kawasaki TT com as mesmas cores, o rosto escondido pelo capacete. Pára, mas o motor que ronque, e assim se saiba que também veio. Uma tia espera encostada à parede do cemitério, mãos espalmadas sobre o peito. Será pose devota, mas só noto as unhas em exposição, o brilho de verniz roxo e lantejoulas. Passam duas, apressadas, a morder maçãs. São mesmo da cidade, por isso e para que se veja, levam na outra mão a garrafinha de água.
Veio recado que o padre ainda demora, talvez só chegue depois das quatro. Ouvem-se gargalhadas, piadas grossas, há bruteza nos gestos, impaciências de cidade.
Sento-me numa pedra, na rua que de momento não é minha, mas onde nos mais dias e noites passo sozinho. Entristece-me a recordação da falecida, amiga de muitos anos. Deveria ter outros pensamentos, mas entristece-me também, mais ainda, esta gente que já não me pertence, mudada, travestida, vaidosa de ter trocado o genuíno pelo arremedo.
Por vezes, num funeral, não é só o morto que vai a enterrar.