domingo, junho 30

Comer a dois carrilhos

 

É pena perdida vir com sorriso, grande abraço, pancadinha nas costas e palavras de conforto, a aconselhar-me que não dê atenção nem deixe levar pelo azedume. Que cuidado e caldos de galinha são sempre benefício, fora que com os anos que já carrego toda a cautela é pouca, pois às vezes um pequeno nada...

Resmungo o meu acordo em palavras de circunstância, e em pensamento remeto-os com outras para o ventre onde foram gerados.

Voltam eles então ao "tenho amigos da esquerda e da direita", frase tantas vezes lida e ouvida que involuntariamente lhe esqueço o significado e ponho a magicar no que subentende.

Garantias não dá, cabe na mesma lista daquela outra, "também tenho amigos homossexuais",  a ênfase do também a reforçar a existência de uma imaginária virtude.

É coisa do princípio do meu mundo e, talvez porque sou do povo, arrelia que tenho com a chamada classe média portuguesa, que não é classe nem média, sim um corpo social amorfo, que por baixo toca o povinho e na outra ponta se quer fidalga, esquecendo, ou ignorando, que o verdadeiro brasão ganha-se, não se herda nem compra.

A esse tipo de gente, que vai do Zé da Mouca a D. Francisco de Rodrigães Penha d'Alembourg e Castedo – visconde de fancaria - , pouco me custaria fechar os olhos à vaidade, à jactância, à babosice, ao egoísmo de que dá mostra e provas, à infantilidade do comportamento, ao grotesco da sua necessidade de imitar.

O que não lhe perdoo nem esqueço é a alma de “secos e molhados”, o espírito mercantil e a escassez de vergonha, a ganância de comer a dois carrilhos, a habilidade acrobática de ter amigos em todos os pontos da rosa dos ventos da política e da vida.

 

quarta-feira, junho 26

segunda-feira, junho 24

Bofetada na estupidez

 

Bom começo do dia. Aqui

domingo, junho 23

A bomba do fim do mundo

 

A paciência é fingida mas remédio não existe, nem o Matias aceita que se lhe recuse atenção. E assim vá de imitar os comentadores da TV, detalhando pela enésima vez os fortes argumentos que a Rússia possui para se defender do belicismo dos que ele, usando uma expressão perdida no tempo, chama o “Eixo do Mal”.

Do que não tem dúvida, certo como dois e dois serem quatro, é que todos iremos sofrer, numa escala tão nunca vista ou sonhada que nem o Dilúvio serve para comparação. Imagine-se uma bomba atómica sobre Paris, Londres, Roma, Nova Iorque. Fica alguém vivo? Fica alguma coisa em pé?

A pergunta é sublinhada com um arregalar dos olhos, ao mesmo tempo que o braço erguido descreve um vagaroso círculo, parecendo querer assim dar ideia de como a catástrofe será total.

Julgo manter o papel de ouvinte interessado, mas de certeza sou fraco actor, porque ao mesmo tempo que baixa o braço leio-lhe no rosto uma expressão de desânimo, é então que, por simpatia, caio na asneira de o encorajar com banalidades e certezas que não possuo.

Porém, quanto mais faço para que anime, tenha esperança, o queira convencer de que o lado bom é muitas vezes o que leva a melhor, mais ele amua. Por fim, como se tivesse perdido a paciência de sofrer o meu optimismo, esquece a cordialidade do trato social:

- Claro que na tua idade tanto se te dá como se te deu! Mas eu tenho filhos e filhas na força da vida, vou ter netos, quero vê-los crescer num mundo melhor.

- Será o admirável mundo novo - digo eu sem ironia, supondo que conhece o livro de Aldous Huxley,

- Novo e muito melhor do que este!

O entusiasmo da sua concordância não me faz perder apenas uma ilusão, com ele reganho o melancólico sentimento de tantas vezes me ver atordoado, perdido em terra-de-ninguém.