“É muito meu entregar-me de alma e coração a algo que realmente importa, e com o mesmo ímpeto perder o interesse, confundir-me a mim próprio com saltos de ideias, mudanças repentinas, alternando doentiamente o entusiasmo com a apatia.
Tirante o que vem dos que me geraram, creio que essa maneira de ser deve muito à maneira e ao lugar da minha criação, a circunstâncias que sem exagero se podem chamar bizarras, e a uma pouco corrente mistura de solitude, curiosidade e temor.
Criei-me a falar sozinho, a brincar sozinho, forçado a inventar um mundo que, pela fantasia, compensasse o escasso território do pátio em que me isolavam, como se o contacto com outros fosse um perigo ou desse peçonha.
Deixa marca o só ter galinhas e cães por companhia, passar os dias com duas mulheres silenciosas, raro ver mais longe do que deixava a porta quando se abria, encolher-me cada vez que meu Pai acontecia passar.
Sofri? Creio que não. Ignorava outro viver, e o que apercebia das vidas alheias causava-me um misto de nojo e insolência, era próximo e ao mesmo tempo distante, estranho como visionar um filme. em parte devia-se isso à circunstância de parecermos o que não éramos, de num meio de pobreza extrema a nossa mediania ter ares de abastança, e meu Pai, «o Senhor engenheiro», assumir atitudes de fidalgo e dono só possíveis num fim do mundo como as quintas do Maçarico.
O ele não ser engenheiro de coisa nenhuma, e de seguida a um vago estudo no que se chamava então a escola de regentes agrícolas se atribuir o título, era astúcia sua, maneira corrente de distinção. e os que dele dependiam, de facto todos, usavam esse tratamento como mostra de respeito, mas era também a maneira segura de, verdadeiros servos, ocultar o ódio e o desprezo que lhe tinham.”
In O Meças - Quetzal, 2016