Quem pertence aos seus íntimos está habituado a que, quando a ocasião se oferece, o Gonçalo tome o modo do sacerdote que quase chegou a ser, não tivesse uma tarde encontrado a Catarina, irem para o café a falar do tempo e, incapaz de resistir ao feitiço, beijar-lhe castamente a face. Reagiu ela com inesperada febre, e quando já casados fizeram o cálculo, concordaram que o mais certo é ter sido nessa noite que geraram o Carlinhos.
O Carlinhos, que durante dez anos foi a menina dos olhos da família, até ao amaldiçoado jantar do que deveria ter sido um festivo aniversário. No momento do champanhe, mais bem bebida do que de costume, à Maria José, prima afastada e médica de alguns deles, ocorreu dizer que o miúdo era mesmo a cara chapada do avô materno.
Ó palavra que disseste! Alguns ainda conseguiram uma sombra de sorriso, outros olharam para o tecto, este e aquele fez de conta que levava a taça aos lábios. Mas como por milagre, logo a seguir esqueceu-se o choque e a alegria voltou. A própria Maria José, um momento ostracizada, sentiu que lhe davam palmadinhas nas costas, outros brindavam com ela de longe, manhosos, piscando o olho de modo cúmplice.
Passou-se isto em tempos ainda não muito distantes, mas que já parecem antigos e atrasados, pois embora tudo então se soubesse, era muito o que por razões variadas se fingia ignorar, ou não merecia mais do que um desinteressado encolher de ombros, poupando-se assim o risco da culpa e as consequências.
Que era garanhão todos o sabiam. Miúda que na fábrica lhe caísse no goto não escapava, e se emprenhasse garantia ele o desmancho. Da Catarina, a filha mais bonita, havia zunzums, e quando casou não foi surpresa ir o seminarista trabalhar na fiação do sogro. O Carlinhos é que não compreende o sorriso dos que lhe dizem que é a cara chapada do avô.