Nenhum dos seus amigos, e somos muitos, se queixará do modo com que o Taveira recorda gente que conheceu, porque nessas ocasiões como que se dá nele uma transformação radical. O proprietário da Farmácia Caldas surge como grande actor, enfeitiça quem o ouve com arte comparável à que dizem ter os árabes que contam as histórias de Mil e Uma Noites.
Ao jantar do passado domingo quis ele saber se algum de nós se recordava da Denise.
Encolhemos os ombros, dando-lhe assim oportunidade para brilhar no papel costumeiro de prima donna - masculina.
Poderia repetir a narrativa, mas falta-me talento para testemunhar com exactidão, tãopouco seria incapaz de descrever aquela riqueza de gestos e atitudes.
Segundo ele Denise fora legenda. Quando rapariga tinha um corpo formoso,
pernas de entontecer, e começou cedo a tirar proveito da beleza. Casou rica,
divorciou-se, casou ainda mais rica, voltou a divorciar-se. No dizer do Taveira
conseguia transformar os seus gestos em momentos de arte, chegando - as
palavras e a estupefacção são dele- «a essa coisa extraordinária, de com as
suas pernas se exprimir numa verdadeira linguagem».
— Falava com as pernas.
— Realmente era como se falasse — respondeu ele, indiferente à nossa ironia.
Vi-a tempos depois num beberete em que se festejava um aniversário. Infelizmente
envelheceu sem amadurar. A sua voz mantém um artificioso timbre infantil, e
aquele pestanejar e as boquinhas, que de certeza a tornavam atraente na
juventude, agora incomodam como um esgar nervoso.
Quando se sentou os meus olhos seguiram curiosos as pernas que tinham «falado»,
mas surpresos com a curteza da saia e os estragos da idade, mandei-lhes
discretamente que se
afastassem.
Para nós, os velhos o drama começa quando, sem pensar, dizemos a quem nos ouve:
«Sinto-me como se tivesse vinte anos.»